Opinião

Sistema de votação de lista fechada contraria o princípio democrático

Autor

  • Rodrigo Cyrineu

    é advogado Mestre em Direito Constitucional e membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

26 de maio de 2017, 6h30

A crise política sem precedentes hoje vivenciada reclama reformas no desenho institucional brasileiro, exsurgindo daí defensores da denominada “lista fechada” para as eleições proporcionais, a qual se antagoniza com a atual “lista aberta”.

Consoante leciona Jairo Nicolau (2012, 61), o sistema de “lista fechada” consiste em “deixar que os partidos definam a ordem dos nomes antes das eleições”, enquanto que na “lista aberta” se consubstancia em “deixar que o ordenamento final dos candidatos derive apenas dos votos dos eleitores”.

A discussão a propósito do modelo de lista esconde outro tema ainda mais polêmico e delicado: o financiamento da política. Isto porque, a adoção da “lista fechada” se não pressupõe, ao menos inclina os reformadores à adoção do financiamento público exclusivo.

Aí está, portanto, a primeira problemática do modelo. Em obra dedicada ao tema do financiamento da política, Ana Cláudia Santano (2014, 85) advoga a adoção de um modelo misto, uma vez que “os sistemas puros provocam muito mais distorções”. Se a reforma visa justamente corrigir distorções, parece sensato manter o modelo misto de financiamento, afastando o modelo exclusivamente público propiciador da adoção do modelo de “lista fechada”.

Além disso, há o entrave de legitimidade das agremiações nos dias atuais. Aliás, não é de hoje que os partidos sofrem relutância da camada social, porquanto Alan Ware (1996, 1) afirma que os partidos sempre sofreram um sentimento de rejeição e desconfiança por grande parte da opinião pública.

Atualmente, entretanto, a repulsa e a falta de adesão às greis torna muito difícil — senão impossível — a eficácia, em termos de avanço democrático, do pretendido sistema de “lista fechada”, porque a adoção desse modelo implica na diminuição do papel do eleitor e do aumento do papel partidário na composição das cadeiras parlamentares, em franco contraste com as crescentes exigências de mais participação nas decisões públicas.

A democracia não é uma solução pronta e acabada, senão um fator político-institucional em constante transformação, seja esta para melhor ou para pior. Em assim sendo, não parece salutar fortalecer um corpo intermediário de decisão, o partido político, em detrimento do destinatário final da decisão coletiva, o cidadão-eleitor, sob pena de se retroceder em termos de ambiência democrática.

A igualdade intrínseca que pressupõe qualquer regime minimamente democrático conduz à adoção de soluções que otimizem a participação de todos, e não o contrário. Robert A. Dahl (2001, 77), ao dela tratar, já asseverava que “as igualdades e as desigualdades podem assumir uma variedade quase infinita de formas”. E, após citar desigualdades decorrentes de fatores da vida plenamente aceitáveis, termina por rechaçar a desigualdade “nas oportunidades de votar, de falar e de participar no governo”.

É de todo contrária à lógica de maior participação a alteração da formação das listas, de forma a se transferir do eleitor para a agremiação partidária a ordenação da lista de colocados, porquanto no fim se trata de diminuir o alcance decisório do cidadão-eleitor soberano, aumentando o espectro de influência dos dirigentes partidários.

Ainda mais com as recentes exigências de adoção de formas de democracia direta ou semi-diretas, como bem pontuado pelo professor Carlos Blanco de Morais no V Seminário Luso-Brasileiro de Direito – Constituição e Governança realizado em Lisboa, em palestra proferida no dia 18 de abril de 2017, transferir o papel central de ordenação das listas aos partidos políticos é mesmo inaceitável.

Jorge Miranda (2015, 124) obtempera que só há falar-se em governança democrática “quando o povo tem meios atuais e efetivos de determinar ou influir nas diretrizes políticos dos órgãos das várias funções estatais”, defendendo a ideia de povo como “titular último” da decisão coletiva, não se coadunando com essa ideia, reforça-se, a prévia determinação das listas pelos dirigentes partidários.

Se há, hoje, a discussão a propósito da possibilidade fática e da conveniência de se adotarem modelos de deliberação direta via recursos tecnológicos modernos, ou mesmo a submissão de mais temas a plebiscitos e referendos, de forma a atalhar o próprio modelo representativo em favor da atuação mais efetiva do cidadão, sugerir a ordenação da lista dos candidatos proporcionais pelo partido político pode ser tido como algo verdadeiramente retrógrado e alheio à evolução do pensamento político contemporâneo.

Não bastasse isso, importante não olvidar a pífia ambiência democrática observada no seio das greis, cujo funcionamento se dá, como bem constatou Raymundo Campos Neto (2017), de maneira oligárquica, ao arrepio do princípio da igualdade de oportunidades, o que desfavorece ainda mais a adoção do modelo de “lista fechada”.

Victor Nunes Leal (2012, 47), em sua conhecida obra Coronelismo, Enxada e Voto, denunciava o mal do mandonismo, por ele denominado de coronelismo, em sua época, advertindo que o eleitor de então, numa economia essencialmente rural, completamente desinformado e com precárias condições materiais, quase sempre dependendo da caridade de seu patrão, o qual ele tinha, na expressão do autor, na condição de “benfeitor”, não tinha alternativa, senão lutar com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estavam, portanto, os votos de cabresto.

A recordação — e o gancho histórico — não é despropositada. Embora não se possa mais falar nesse tipo de eleitor, haja vista a incontroversa evolução social observada e a transferência da economia essencialmente rural para a essencialmente urbana, com maiores condições de aquisição de informação esclarecida (ensino universal), o coronel da fazenda de ontem passa a ser o coronel partidário de hoje, o qual, na condição de líder absoluto inconteste frente às dificílimas possibilidades de contestação interna corporis, passa a ditar os rumos da legenda no âmbito da respectiva base de atuação.

Em assim sendo, não há independência cívica e reais condições de igualdade, porquanto para se lançar candidato num cenário desses, onde o monopólio das candidaturas pelas agremiações só agrava o quadro de asfixia democrática, o cidadão-eleitor precisa se submeter aos caprichos dos dirigentes, que ao longo do tempo, sem nenhuma contestação eficaz, puderam enraizar seu comando mediantes filiações em massa de aliados e designações de subalternos para ocupar posições partidárias estratégicas.

Aliás, a título de obiter dictum, a constatação lamentável do parágrafo anterior parece sugerir a quebra do monopólio de candidaturas como única alternativa eficiente para se promover a democracia interna nos partidos, pois só assim as greis se reinventarão para que novas lideranças se sintam atraídas a engrossar as fileiras das legendas.

É bem verdade que o modelo de listas, aí incluída a fechada, é entendido como respeitador do princípio da imediaticidade do voto, como bem pontua J. J. Gomes Canotilho (2003, 302) ao tratar do princípio democrático no seu caráter instrumental. Embora se guarde reservas a respeito do assunto, ao entendimento de que cabe ao eleitor definir sua preferência votando não só no partido, mas também — e sobretudo — no candidato que melhor lhe aprouver (o desenho do sistema eleitoral brasileiro, singular em comparação com os demais existentes, onde o eleitor, há tempos, vota no partido e no candidato, parece exigir, à luz do voto direto incorporado na CF/88, que haja a escolha da legenda e, passo contínuo, do representante que melhor atenda aos anseios do cidadão, o que pode ser fator decisivo para a não aplicação da doutrina de Canotilho no Brasil), ainda assim não haveria falar-se em respeito integral ao aludido princípio.

É que a interpretação constitucional jamais pode se desgarrar da evolução social, jurídica, política e institucional, de modo a se evitar retrocessos. Aliás, é próprio da teoria dos direitos fundamentais evitar o retrocesso, havendo quem defenda a existência do princípio da vedação ao retrocesso, como é o caso de Ingo Wolfgang Sarlet (2012, 442), dentre outros, de modo que diminuir a escolha do eleitor, hoje dupla (legenda + candidato), para singular (legenda — lista ordenada previamente), atenta contra a Constituição Federal, já que reduz significativamente o núcleo do direito à participação nas escolhas coletivas.

De mais a mais, a Convenção Americana de Direitos Humanos assegura a todos os cidadãos o direito de “participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos” (artigo 23.1, a), “de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores” (artigo 23.1, b) e “de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país” (artigo 23.1, c).

Indaga-se: seria possível garantir a livre expressão da vontade dos eleitores mediante prévia ordenação das listas pelas agremiações partidárias, quando o atual modelo, em contrapartida, já oferece espectro decisão mais amplo? A resposta é desenganadamente negativa.

Tais direitos integram o bloco de constitucionalidade brasileiro, tal qual leciona Ingo Wolfgang Sarlet (2013, 517). Essa dimensão amiga dos direitos fundamentais, quando o propósito é a recepção de fontes não necessariamente do direito doméstico, também é chamada por Lotar Michael e Martin Morlok (2016, 110) de dimensão amiga do direito internacional público, isto é, “na aplicação dos tratados, as margens para a sua interpretação devem ser preenchidas de maneira conforme aos direitos fundamentais”.

É, também, o que Valério de Oliveira Mazzuoli e Luiz Flávio Gomes (2010, 106) chamam de princípio homine, isto é, “as fontes plúrimas do direito atual (pós-moderno) estabelecem entre si um “diálogo” (dia = dois; logos = lógica; duas lógicas) e, assim, passam a admitir “dupla lógica” para que se encontre (e se possa aplicar) o melhor direito (o que melhor teja o ser humano, homine) no caso concreto”.

Daí o porquê do modelo de “lista fechada” não ser salutar.

O que se percebe, a título de conclusão, é que não podemos adotar soluções simples para problemas complexos. A adoção da “lista fechada” seria uma simples solução buscando corrigir uma distorção profunda do nosso sistema representativo, com a qual não se pode concordar, sobretudo por contrariar o princípio democrático, de matriz constitucional.

É de Dahl (2001, 154) a advertência: “a reforma de uma constituição ou a criação de uma nova deve ser levada muito a sério. É uma tarefa tão difícil e complexa quanto o projeto de uma nave tripulada para a sondagem do universo”. As discussões que tomam a atenção hodierna da nação a propósito da reforma política demandam amplo debate e profunda reflexão.

Thomas Jefferson disse certa vez, embalado pelo otimismo das revoluções francesa e norte-americana, que seria bom haver uma revolução em cada geração. Dahl (2001, 158), entretanto, aduz que “essa idéia romântica foi por terra durante o século XX pelas incontáveis revoluções que falharam trágica ou tristemente – ou, pior, produziram regimes despóticos”.

Sugere Dahl, então, o que no todo se aproveitaria para a questão brasileira atual, a reunião, a cada vinte anos, de um grupo de estudiosos, líderes políticos e cidadãos bem informados para avaliar o seu documento fundante (geralmente uma Constituição), não apenas à luz da experiência, mas sobretudo mediante a comparação com outros regimes democráticas mais bem sucedidos.

A se concordar com Dahl, já estamos com quase nove anos de atraso para a dita reunião. De todo modo, o que é certo é que a República, e sobretudo a Democracia, definitivamente não são para amadores.


Bibliografia
CAMPOS NETO, Raymundo. A democracia interna nos partidos políticos brasileiros. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

DAHL, Robert. A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

MICHAEL, Lothar; Morlok, Martin. Direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2016.

MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

NICOLAU, Jairo. Sistemas eleitorais. 6ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 4ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SANTANO, Ana Cláudia. O financiamento da política. Curitiba: Ithala, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao artigo 5º, §2º. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F; STRECK, Lenio L.; _________ (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

WARE, Alan. Political Parties and Party Systems. Great Britain: Oxford University Press, 1996.

Autores

  • Brave

    é advogado, membro-fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e especialista em Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Eleitoral pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!