Opinião

Direitos humanos são eixo central da nova Lei de Migração

Autor

  • André de Carvalho Ramos

    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (largo São Francisco) professor titular e coordenador de mestrado em Direito stricto sensu da Escola Alfa Educação e procurador regional da República.

26 de maio de 2017, 16h20

Foi publicada nesta quinta-feira (25/5) a nova Lei de Migração (Lei 13.445/17), que revogou expressamente o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80) e a Lei 818/49 (que regulava a aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade).

São 125 artigos, aprovados a partir do projeto original do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), em um trâmite com ampla participação da academia, sociedade civil e partidos da situação e oposição, retratando um consenso pluripartidário em torno do projeto.

A adoção de um novo marco jurídico regulatório das migrações atende a um pleito antigo e a uma necessidade urgente de revogação do Estatuto do Estrangeiro de 1980. Na era da intensa mobilidade humana internacional, surgem (i) oportunidades para o Brasil se beneficiar da diversidade e do multiculturalismo, bem como (ii) deveres de proteção para impedir a construção jurídica de vulnerabilidades e a superexploração de migrantes, em prejuízo à toda sociedade.

O eixo central da nova lei é a proteção de direitos humanos na temática das migrações, intuída já na escolha da epígrafe: trata-se de uma lei de migração, aplicando-se ao migrante que vive no Brasil e, inclusive, ao brasileiro que vive no exterior. O reconhecimento da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos como princípio de regência da política migratória brasileira (artigo 3º, I) é decorrência da proteção da dignidade humana, vetor axiológico da Constituição (artigo 1º, III) e dos tratados de direitos humanos celebrados pelo Brasil.

Ao contrário do agora revogado Estatuto do Estrangeiro (adotado na ditadura militar e inspirado na doutrina de segurança nacional), a nova lei é fruto da constatação de que negar direitos, gerar entraves burocráticos na regularização migratória, atuar com arbítrio e sem coerência, são condutas que não reduzem o deslocamento de pessoas, mas apenas degradam as condições de vida do migrante, bem como prejudicam empresas, trabalhadores e a sociedade em geral.

A lei avança ao prever uma série de princípios e diretrizes que conformam a atuação dos órgãos públicos à luz da gramática dos direitos humanos. Ao migrante é garantida, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, assegurando-lhe também os direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos (artigo 4º, caput e inciso I).

Estabelece-se, com o novo marco legal, a regra geral de vedação da discriminação e proibição do arbítrio na entrada, permanência e saída compulsória do migrante, com várias menções ao direito de ser informado e de obter assistência jurídica integral. Essas normas serão valiosos instrumentos para orientar a ação de agentes públicos envolvidos nas questões migratórias e deverão pautar a interpretação do Poder Judiciário, quando provocado para coibir abusos e discriminações.

Visando facilitar a regularização dos migrantes que entram no país, foram trazidas as seguintes novidades: i) racionalização das hipóteses de visto (com destaque para o visto temporário para acolhida humanitária); ii) previsão da autorização de residência; iii) simplificação e dispensa recíproca de visto ou de cobrança de taxas e emolumentos consulares, definidas por mera comunicação diplomática. Ainda, os integrantes de grupos vulneráveis e indivíduos em condição de hipossuficiência econômica são isentos do pagamento de taxas e emolumentos consulares para concessão de vistos ou para a obtenção de documentos para regularização migratória.

Importante inovação é o regramento do impedimento de ingresso. Foi assegurado que ninguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política, possibilitando-se a responsabilização dos responsáveis pela prática de atos arbitrários na zona primária de fronteira.

No âmbito dos direitos dos migrantes que estão no país, foram eliminadas proibições constantes do Estatuto do Estrangeiro — tal qual a restrição ao direito de associação para fins lícitos e expressão política — que se chocavam com a Constituição. Na nova lei, assegurou-se o acesso igualitário e livre dos migrantes a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social (artigo 3º, XI).

A retirada compulsória também foi regulamentada, com destaque para novas regras sobre os institutos da (i) repatriação, (ii) deportação e (iii) expulsão, além da previsão para atuação da Defensoria Pública da União nos procedimentos, o que inibe atos arbitrários ou discriminatórios.

A lei traz também previsões sobre asilo, proteção do apátrida e redução da apatridia, e normas referentes à opção de nacionalidade e naturalização.

Todavia, a nova a lei de migração, tal qual o Estatuto do Estrangeiro, manteve a disciplina de matérias estranhas ao tema do migrante, como a cooperação jurídica internacional em suas espécies (i) extradição e (ii) transferência de sentenciados.

De se lamentar a grande maioria dos vetos impostos no momento da sanção presidencial, em especial o referente à garantia do direito à livre circulação dos povos indígenas em terras tradicionalmente ocupadas (artigo 1º, § 2º), e o relativo à anistia e regularização migratória (artigo 116).

Alguns dos vetos podem ser contornados pela via interpretativa, tal qual o que eliminou a previsão do acesso a serviços públicos de saúde ao visitante, que pode ser superado pela previsão constitucional de universalização do direito à saúde. Já outros vetos simplesmente não gerarão efeito, tal qual aquele que eliminou a definição de "migrante" contida no artigo 1º, §1º, I, mas manteve, ao longo da lei, o uso do termo. Além disso, o apoio da sociedade civil na manutenção da íntegra do projeto pode implicar em derrubada de alguns vetos — no futuro — pelo Congresso.

Com esse novo marco jurídico, o Brasil dá importante passo para tratar as migrações como verdadeiros ganhos (materiais e imateriais) para nossa sociedade, até hoje escondidos pelo discurso xenófobo. O passado, o presente e o futuro do Brasil estão relacionados com as migrações: nada mais justo e favorável aos interesses nacionais que tratar o migrante com dignidade, estimulando-o a contribuir, tal qual ocorreu ao longo de nossa história, ao desenvolvimento de uma sociedade plural, desenvolvida e justa.

Autores

  • é procurador regional da República. Professor de Direito Internacional Privado e do Programa de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP. Membro da Comissão de Especialistas do Ministério da Justiça para elaborar proposta de anteprojeto de Lei de Migração.

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