Resolução 400/2016 da Anac não pode afetar os direitos dos usuários
24 de maio de 2017, 8h00
As questões conflituosas oriundas da aplicação daquela resolução podem ser agrupadas em dois conjuntos que englobam a possibilidade de alteração do contrato de transporte aéreo de passageiros e o traslado das bagagens dos usuários. A reestruturação do negócio jurídico pode dar-se em decorrência de conduta gerada pelo próprio passageiro ou pelo transportador. O usuário do serviço poderá remarcar a passagem aérea, desistir desta ou não se apresentar para o embarque (no show), sendo-lhe impostas sanções. Admitiu-se a modificação do serviço de transporte aéreo de pessoas pelo prestador de forma programada ou não, configurando-se por meio dos atrasos para a decolagem, da preterição quanto ao embarque de passageiro e do cancelamento de voo.
Em relação às bagagens dos consumidores, estabelece a Resolução 400/2016 que se trata de um contrato acessório e, consequentemente, a empresa não é obrigada a transportá-la de forma gratuita, eliminando-se a anterior franquia vigente. Tornou-se também possível a isenção de responsabilidade em face de itens frágeis, fixando-se valores para a compensação financeira do usuário diante de problemas com os itens que compõem a bagagem. Outras duas questões relevantes constituem a presunção de regularidade da bagagem recebida pelo consumidor e a exigência de que este declare bens cujos valores indenizatórios sejam elevados.
Destina-se, nessa senda, o presente artigo a analisar as normas que versam sobre o contrato de transporte aéreo de passageiros em cotejo com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, através de uma interpretação sistemática baseada no diálogo das fontes em busca de soluções que maximizem os direitos da parte contratual mais vulnerável — o usuário do serviço executado.
1. Da alteração do contrato de transporte aéreo pelo passageiro
A possibilidade de os consumidores desistirem das passagens aéreas sem ônus desde que adquiridas com antecedência igual ou superior a sete dias da data de embarque, comunicando o seu objetivo no prazo de até 24 horas, a contar do recebimento do seu comprovante, prima facie, parece ser um benefício alcançado com a Resolução 400/2016. Entretanto, a liberdade tarifária reiterada pelo artigo 2º desse conjunto normativo possibilitará que as empresas de transporte aéreo fixem multas exorbitantes para as hipóteses em que a desistência por parte do passageiro dê-se em período inferior a uma semana, como já se observa no campo concreto. Mesmo que o consumidor apresente um motivo plausível para o cancelamento da passagem ou para o no show, sofrerá penalidades caracterizadoras de vantagem exagerada vedada pelo artigo 39, V, do CDC[1].
Limitou-se a Anac a prever que, em caso de remarcação ou resilição solicitada pelos passageiros, “as multas contratuais não poderão ultrapassar o valor dos serviços de transporte aéreo”, bem como que “as tarifas aeroportuárias pagas pelo passageiro e os valores devidos a entes governamentais não poderão integrar a base de cálculo de eventuais multas” (artigo 9º, caput e parágrafo único). Previu ainda que os transportadores deverão oferecer ao consumidor pelo menos uma opção de passagem aérea cuja multa não ultrapasse o percentual de 5% sobre o valor total para as hipóteses de reembolso ou remarcação.
Na prática, as empresas que fazem o transporte aéreo de passageiros darão vazão às costumeiras práticas abusivas, fixando multas altíssimas quando o pleito de desistência for superior a uma semana, quando o consumidor pugnar pela remarcação ou não comparecer para embarque. Elas poderão reter até 99% do valor pago, visto que a única regra imposta é no sentido de que a multa não abranja o valor total do serviço.
2. Da modificação do serviço aéreo de traslado de passageiros pelo transportador
A modificação unilateral planejada do contrato de prestação de serviço de transporte aéreo de passageiros, no que concerne a horário e itinerário previstos, foi acatada pelo artigo 12 da resolução, exigindo-se tão somente que seja comunicada aos passageiros com antecedência de, no mínimo, 72 horas. Não sendo os usuários informados em tal prazo ou se o horário de embarque ou de aterrissagem ultrapassar 30 minutos em voos domésticos ou uma hora em traslados internacionais, o fornecedor deverá disponibilizar reacomodação e reembolso integral. A exegese literal e perfunctória desse dispositivo poderia conduzir à reflexão infundada de que a empresa transportadora, em caso de alteração planejada, não estaria obrigada a indenizar os consumidores em razão dos danos materiais e morais sofridos. Contudo, as transformações geradas, de forma potestativa ao conteúdo dos negócios jurídicos firmados, são práticas arbitrárias vedadas pelo CDC e que suscitarão as reparações necessárias.
A Anac legitimou os atrasos dos voos como se fossem normais e admissíveis, determinando apenas que a empresa fique, a cada 30 minutos, informando aos passageiros a previsão do horário de partida. Absurda essa situação, posto que a agência reguladora deveria determinar que as transportadoras cumprissem rigorosamente os horários previstos, exceto nas hipóteses de força maior ou de caso fortuito externo. Por outro lado, a assistência material garantida para os consumidores, a depender do tempo de espera, não elide o direito destes de peticionarem pela indenização devida perante o Poder Judiciário. Não serão as facilidades de comunicação, alimentação e hospedagem que solucionarão todos os problemas dos usuários que se deparam com atrasos na partida e a consequente chegada dos voos nos seus destinos. Os danos materiais e morais devem ser reconhecidos pelo Poder Judiciário mesmo que o passageiro seja reacomodado em outro voo e consiga embarcar[2].
O overbooking foi admitido, expressamente, pela Resolução 400/2016, mediante a aceitação da preterição injustificada de passageiros, visto que os seus artigos 22 e 23 permitem que o número de passageiros para o voo exceda a disponibilidade de assentos na aeronave, devendo o transportador procurar por voluntários para serem reacomodados em outra aeronave por meio de compensação negociada. Inaceitável que as pessoas comprem passagens aéreas e fiquem receosas de que não conseguirão embarcar diante do excesso de passageiros legitimado escancaradamente pela autarquia reguladora. Desrespeita-se o direito do consumidor ao fiel cumprimento dos termos contratuais e da sua boa-fé objetiva em se programar para embarcar em determinado voo e horário.
Dando continuidade à inadmissível violação ao teor da Lei 8.078/90, a Anac considera que não haverá preterição se houver a reacomodação do passageiro voluntário em outro voo. Mesmo que o consumidor aceite viajar em outra aeronave, não significa que esteja impedido de ingressar em juízo para peticionar os danos materiais e morais sofridos. Culminando a relegação do microssistema consumerista a segundo plano, a resolução fixa valores para as hipóteses de preterição, ferindo literalmente o direito à reparação integral dos usuários do serviço de transporte aéreo em face dos danos sofridos. Como se pode admitir que a compensação financeira no importe de 250 DES (Direitos Especiais de Saque), para voo doméstico; ou de 500 DES, ocorrendo voo internacional, satisfará todos os prejuízos acarretados para o consumidor?
3. Do transporte das bagagens dos usuários do transporte aéreo
Na Resolução 400/2016, observam-se três problemas cruciais envolvendo as bagagens dos passageiros, quais sejam: a eliminação da franquia existente; a modificação do prazo decadencial para reclamação; e a tentativa de limitação do valor da indenização em casos de extravio ou violação do conteúdo transportado. As normas que disciplinam tais hipóteses transgridem frontalmente a Lei 8.078/90, que, como elucubra Cláudia Lima Marques, encontra-se composta de normas de ordem pública, “a reconhecer a superioridade da lei em relação à autonomia da vontade do indivíduo”[3]. Constituem normas, ipso facto, “inderrogáveis pela ação da vontade do indivíduo, a regular de maneira imperativa e imediata as questões jurídicas que tratam”.
Com base no artigo 734 do Código Civil, o transporte de pessoas necessariamente engloba o próprio passageiro e a bagagem que traz consigo, demonstrando que, no ordenamento jurídico brasileiro, o traslado de tal instrumento consiste em prestação imanente ao contrato. A impropriedade jurídica da extinção da franquia para as bagagens foi tão premente que o Ministério Público Federal, em sede de ação civil pública, obteve, inicialmente, êxito quanto à suspensão dos seus efeitos com o escopo de resguardar os interesses e direitos dos consumidores.
Outra disposição arbitrária presente no artigo 17 da resolução corresponde à exigência de que o passageiro apresente declaração todas as vezes que a bagagem contenha itens que supere o limite de indenização de 1.131 DES. Ora, primeiro, o consumidor, em regra, por sua reconhecida vulnerabilidade técnica e informacional, sequer tem conhecimento do que consiste o direito especial de saque; segundo, não possui, normalmente, plenas condições de avaliar, especificamente, o valor dos itens que serão transportados.
A tentativa de isenção de responsabilidade do transportador aéreo presente nos artigos 32 e 34 manifesta-se evidente, uma vez que prevê que o simples recebimento da bagagem despachada constitui presunção de que foi entregue em bom estado quando o passageiro não protesta. Nesse mesmo viés, estabelece a possibilidade de eliminação da indenização para os danos acarretados a itens frágeis e impõe que, em casos de violação da bagagem ou avaria, o interessado questione a situação no prazo de sete dias.
Quanto ao extravio de bagagem, os prazos para restituição de sete ou 21 dias, tratando-se, respectivamente, de voos domésticos ou internacionais, não significam que o consumidor não deva ser indenizado ao ter aguardado para a entrega dos seus pertences. Nota-se ainda que, no caso de a bagagem não ser localizada, o parágrafo 3º, incisos I e II, do artigo 34, contempla norma prejudicial ao consumidor, visto que aduz que o ressarcimento de despesas poderá ser deduzido dos valores pagos a título de indenização final. Não se poderá jamais olvidar que o CDC, no artigo 6º, inciso VI, resguardou como direito básico do consumidor a reparação integral dos danos sofridos.
Conclusão
A análise econômica dos resultados das normas jurídicas constitui uma importante faceta da contemporaneidade e contribui para que se possa ter uma noção ampla dos fenômenos decorrentes da aplicação do Direito. Alegam as empresas prestadoras dos serviços de transporte aéreo de passageiros que a novel arquitetura das condições gerais editada pela Anac contribuirá para a redução do custo final dos bilhetes e a intensificação da concorrência. Contudo, de acordo com o princípio da vedação do retrocesso social, devem prevalecer as normas que protegem os interesses e direitos dos consumidores, consagradas nos planos constitucional e legal. Nessa senda, a resolução em epígrafe deverá ser interpretada e aplicada em consonância com a Lei 8.078/90.
[1] Sobre o contrato de transporte aéreo de passageiros, consultar: TAPIA, Belen Ferrer. El Contrato de Transporte Aereo de Pasajeros. Sujetos, Estatuto y Responsabilidad. Madri: Tecnos, 2015; THEODORO JÚNIOR. Humberto Theodoro. Do Transporte de Pessoas no Novo Código Civil. Revista dos Tribunais, vol. 807/2003, p. 11 – 26, jan. 2003; VALDIVIA, Ricardo Rueda. La responsabilidad del transportista aéreo en la Unión Europea. Granada: Ed. Comares, 2002.
[2] Com relação ao contrato de transporte aéreo de passageiros, tratam do tema: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Contrato de transporte de pessoas e o novo Código Civil. In: PEREIRA, Antônio Celso Alves; MELLO, Carlos Renato Duvivier de Albuquerque (org.). Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; ALMEIDA, Carlos Alberto Neves. Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo. Coimbra: Almedina, 2010.
[3] MARQUES, Cláudia Lima. A Responsabilidade do Transportador Aéreo pelo Fato do Serviço e o Código de Defesa do Consumidor. Antinomia entre Norma do CDC e de Leis Especiais. Revista de Direito do Consumidor, vol. 3/1992, jul.- set. 1992, p. 160. Cf. também: BENJAMIN, Antonio Herman V. O transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, n. 26. São Paulo: Revista dos Tribunais. abr.- jun., 1998. p. 33-44.
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