Tribuna da Defensoria

A Defensoria como custös vulnerabilis e a advocacia privada

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é defensor público do estado do Ceará professor mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e doutorando pela Universidade de Fortaleza.

23 de maio de 2017, 8h05

A atuação do defensor público como órgão interveniente no processo penal, na condição de custös vulnerabilis — terceiro interessado em nome próprio e não como representante direto de uma das partes da demanda penal, seja como acusação, em relação ao querelante ou ao assistente, seja na defesa, em que o acusado já estará suficientemente representado por advogado particular — atende fielmente ao cumprimento da missão constitucional da Defensoria Pública e se harmoniza com as disposições constitucionais fundamentais do Estado Democrático de Direito[1] e com as normas infraconstitucionais vigentes.

De fato, especialmente nas ações e incidentes que tenham como escopo a liberdade, a obtenção de algum benefício previsto na execução penal ou, ainda, o esclarecimento de questão essencial relativamente ao preso provisório, a atuação custös vulnerabilis guarda perfeita conformação com os marcos normativos regentes, entre outros o disposto nos artigos 1º, 3º e 134, caput e parágrafos, da CRFB, nos artigos 1º e 4º, XI e XVII da Lei Complementar 80/94 – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Londep), nos artigos 81-A e artigo 2º, parágrafo único, e, ainda, artigo 41, VII e artigo 42, os últimos quatro da Lei 7.210/85 – Lei de Execuções Penais (LEP).

A Defensoria Pública é, como expressão e instrumento do regime democrático, constitucionalmente responsável pela promoção dos direitos humanos, objetivando a proteção dos valores fundamentais que facultem o desenvolvimento pleno de cada ser pessoa[2], para:

“…fazer cumprir o objetivo de redução das desigualdades e erradicação da pobreza (art. 3º, III, CRFB), garantindo a todos o acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CRFB), como forma de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CRFB), independente de origem, cor, raça, posição social, gênero ou orientação sexual, convicção filosófica, política ou religiosa, idades, dentre outros (art. 3º, IV, CRFB) é que o constituinte originário erigiu em favor dos necessitados (art. 5º, LXXIV, CRFB) uma instituição especialmente dedicada a sua orientação, defesa e promoção jurídicas: a Defensoria Pública (art. 134, caput, CRFB)[3]”.

A atuação do defensor público nessas hipóteses se dá em presentação da própria Defensoria Pública, em nome próprio, e no regular exercício da Procuratura Constitucional dos Necessitados[4], e integra um Sistema de Justiça e Proteção Social[5] contra todas as formas de vulnerabilidade[6] a que estejam submetidos os indivíduos ou as coletividades, conforme inscrito no artigo 134 e reforçado pelo artigo 1º da Londep e artigo 185 do novo CPC[7] e em consonância com os fundamentos, objetivos, direitos e garantias proclamados pela Constituição Federal e concretizados pelo legislador na Londep.

O múnus da Defensoria Pública não se liga exclusivamente à proteção daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica, senão em diversas outras situações relacionadas a direitos indisponíveis, como a vida, a liberdade, a dignidade, a saúde, ou, ainda, indivíduos ou coletividades especialmente protegidas, como crianças, adolescentes, mulheres vítima de violência, idosos, doentes, populações de rua, abrangendo outras vulnerabilidades sob o prisma organizacional, com “o real acesso à promoção efetiva e concreta dos seus interesses, como responsável pela consecução do estado democrático de Direito”[8].

A Londep prescreve que é dever da Defensoria Pública, na proteção desses grupos sociais vulneráveis que merecem proteção especial do Estado (artigo 4º, XI)[9], a atuação através de todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela (artigo 4º, X)[10].

Em matéria penal, a Defensoria Pública tem como missão atuar nos estabelecimentos penitenciários, visando assegurar às pessoas presas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais (artigo 4º, X e XVII, LC 80/94), constituindo-se órgão de execução penal (artigo 61, XVIII, Lei 7.210/84), que deverá velar pela regular execução da pena, da medida de segurança (artigo 81-A, Lei 7.210/84) e da prisão provisória (parágrafo único, artigo 2º, Lei 7.210/84):

(LONDEP) Art. 4º (…) XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais;

(LEP) Art. 61. São órgãos da execução penal:

(…)

VIII – a Defensoria Pública.

(LEP) Art. 81-A. A Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva.

(LEP) Art. 2º (…) Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária.

Assim, a Defensoria Pública é órgão interveniente na execução penal para a defesa em todos os graus e instâncias das pessoas encarceradas, que se configuram, individual e coletivamente, uma massa vulnerável organizacionalmente, como dizia Carnelutti: “O mais pobre de todos os pobres é o preso, o encarcerado”[11].

Diferencia-se o atuar como custös vulnerabilis daquele efetivado como amicus curiae, porque neste a Defensoria Pública atua como amigo da corte, possui restrição recursal aos embargos de declaração e necessita comprovar a repercussão social da controvérsia, enquanto que, naquela, trata-se de atuação em prol do vulnerável, sendo também cabível interpor todo e qualquer recurso (até porque, muitas vezes, a própria instituição poderia ter ajuizado a demanda em nome próprio, como nos casos de ações civis públicas ou Habeas Corpus) e, ainda, porque a demanda pode ter cunho exclusivamente individual, relacionado à dignidade humana e aos direitos fundamentais da pessoa.

Ressalte-se, contudo, que tanto nas hipóteses de custös vulnerabilis quanto de amicus curiae a intervenção da Defensoria Pública pode ser dar por requerimento das partes, de ofício ou por iniciativa própria[12].

A intervenção defensorial custös vulnerabilis tem como escopo aportar, em prol do vulnerável, argumentos, informações e documentos aptos a instruir sobejamente o processo, de forma a possibilitar ao julgador uma cognição ampla e profunda da problemática posta, enfrentando com maior grau de certeza e confiança o mérito do pedido, sem com isso dispensar ou substituir o importante papel desempenhado pelo causídico particular representante judicial do preso, uma vez que o advogado privado presta serviço público e exerce função social (artigo 2º, parágrafo 1º, Estatuto da OAB) indispensável à administração da justiça (artigo 133, CRFB), cuja atuação livre está protegida (artigo 7º, I, Estatuto da OAB).

Concretamente, é hipótese de intervenção institucional como custös vulnerabilis a atuação da Defensoria Pública em sede de Habeas Corpus coletivo impetrado por advogado particular que visa beneficiar um sem número de pessoas privadas de liberdade, como o levado a efeito no HC 143.641, ainda pendente de julgamento, em que a Defensoria Pública carreou aos autos importantes argumentos, informações e documentos relativamente às mulheres presas grávidas e mães de crianças de até 12 anos, como forma de complementar ou melhor fundamentar o pedido de substituição da prisão preventiva pela domiciliar[13].

Outra hipótese é a atuação nos pedidos de relaxamento feitos por advogado particular em comarcas do interior do estado, estando o acusado preso na capital, cercado de dificuldades para mobilizar sua defesa, limitações lógicas de locomoção e de contato com o mundo exterior[14], inclusive com seu procurador judicial. Em caso assim, o Núcleo da Defensoria Pública que oficia junto à Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto, em Itaitinga (CE), realizou atendimento ao acusado G.B.S., que contava com causídico particular, cujo processo já se encontrava com instrução encerrada, entretanto aguardando que o juízo intimasse a acusação para a oferta de memoriais escritos. O Núcleo ingressou com petição requerendo a imediata intimação das partes para apresentação dos memoriais a fim de evitar dilatação desnecessária na prisão provisória. Tal intervenção foi acolhida pelo advogado particular constituído que, dialogando processualmente com o que denominou de diligente provocação, reiterou o pedido da Defensoria Pública, o que demonstra perfeita compatibilidade e complementariedade entre as atuações, conforme já alertava Ferrajoli[15].

A atuação diuturna junto aos estabelecimentos prisionais, com as prerrogativas que são asseguradas à instituição e aos seus membros, apresentando as vantagens organizacionais ao demandar[16], a Defensoria Pública pode colaborar com o contraditório substancial, como interveniente, sem com isso dispensar ou substituir o importante papel desempenhado pelo causídico particular, que é o defensor natural.

É com este espírito de colaboração, como amicus vulnerabilis, que a Defensoria Pública concretiza a dimensão organizacional do princípio fundamental do acesso à Justiça[17], literalmente ao lado da advocacia, postadas às portas dos tribunais para que nunca mais se fechem aos necessitados.


[1] ROCHA, Jorge Bheron. In http://emporiododireito.com.br/defensoria-publica-autonoma
[2] ESTEVES, Diogo, SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 356.
[3] ROCHA, Jorge Bheron. O Histórico do Arcabouço Normativo da Defensoria Pública: da Assistência Judiciária à Assistência Defensorial Internacional. In: Os Novos Atores da Justiça Penal. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 266.
[4] Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista de Informação Legislativa, v. 29, n. 116, out./dez. 1992, p. 79-102.
[5] MAIA, Maurílio Casas. Luigi Ferrajoli e o Estado Defensor enquanto Magistratura Postulante e Custos Vulnerabilis. In Revista Jurídica Consulex – Ano XVIII – nº 425 – Outubro/2014, p. 59.
[6] STF – ADI 3.943-STF e EREsp 1.192.577.
[7] Para ver mais sobre a aplicação subsidiária do CPC ao CPP, ver Sistemas Processuais: A Questão da Aplicação Supletiva e Subsidiária do Art. 15 do Novo CPC. ROCHA, Jorge Bheron. In O Novo Código de Processo Civil e a perspectiva da Defensoria Pública. Roger, Franklyn (org) Juzpodivm: Salvador. 2017.
[8] ROCHA, Jorge Bheron. Estado Democrático de Direito, Acesso à Justiça e Defensoria Pública. Revista Jurídica da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 78-105, jan/dez 2009.
[9] Art. 4º (…) XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado.
[10] Art. (…) X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
[11] CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Trad. Carlos Eduardo Trevelin Millan. São Paulo: Editora Pillares. 2009. p. 24.
[12] A experiência prática já demostrou que a intervenção custös vulnerabilis se dá a requerimento da família do preso ou mesmo do advogado constituído, que, da mesma forma que o juiz da causa, solicita a intervenção da Defensoria Pública em razão de seu atuar diretamente dentro dos estabelecimentos prisionais, podendo colher de forma rápida e circunstanciada prontuários, declarações e inspeções.
[13] http://emporiododireito.com.br/defensoria-publica-intervem-em-hc-a-presas-gravidas-e-maes-de-criancas-ate-12-anos.
[14] TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2012. p. 237-238.
[15] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 4ª Ed. 2014 . p. 537.
[16] CAPELLETTI, MAURO; GARTH, BRYANT. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Grace Northfleeet. Sergio Antonio Fabris Editor. 1988. Pag 21.
[17] FENSTERSEIFER, Thiago. Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Forense. 2017, p. 226. 

Autores

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Penal e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sócio-fundador do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia (ILAEDPD) e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep) e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!