Liberdade ameaçada

"Lava jato" viola a lei ao divulgar conversa grampeada de Reinaldo Azevedo

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23 de maio de 2017, 19h18

A lei que regulamenta as interceptações telefônicas proíbe o uso das gravações que não estejam relacionadas com objeto da investigação. Além disso, a Constituição prevê o sigilo de fonte como uma garantia ao direito de informar. Mas isso não impediu a divulgação de conversa entre Andrea Neves,  irmã do senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG), com o jornalista Reinaldo Azevedo.

O caso foi revelado pelo site BuzzFeed, que publicou também a transcrição da conversa, que não poderia fazer parte do processo nem divulgada pela autoridade. Nela, nada de relevante ao processo é dito: nem a Polícia Federal considerou haver indícios de crimes nas conversas. O jornalista e sua fonte falavam sobre o cenário nacional, sobre o PGR, Rodrigo Janot, e sobre a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia. 

Na conversa interceptada e tornada pública, Reinaldo Azevedo criticava também uma reportagem da revista Veja, onde trabalhava até esta terça-feira.

Azevedo enxerga na iniciativa uma tentativa de intimidá-lo. Ele vinha criticando a atuação do Ministério Público na operação "lava jato" e, mais recentemente, voltou sua verve contra o PGR, Rodrigo Janot, por causa do acordo de delação premiada assinado com o Grupo J&F, que controla a JBS.

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Criticado por Reinaldo Azevedo, Janot culpa a PF pela divulgação das conversas.

"Se estimulam que se grave ilegalmente o presidente, por que não fariam isso com um jornalista que é critico ao trabalho da patota?”, escreveu o jornalista, fazendo referência ao MPF, em comunicado publicado no Facebook.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, classifica o episódio como “um ataque à liberdade de imprensa e ao direito constitucional de sigilo da fonte”. O episódio, afirma o ministro, “enche-nos de vergonha”.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), diz ver "com preocupação" a violação do sigilo de fonte . "A inclusão das transcrições em processo público ocorre no momento em que Reinaldo Azevedo tece críticas à atuação da PGR, sugerindo a possibilidade de se tratar de uma forma de retaliação ao seu trabalho", afirma a entidade.

Além de ignorar o sigilo previsto na Constituição, a interceptação viola também o artigo 9º da Lei 9.296/1996, que trata das interceptações, por ser uma gravação que não interessa à prova, lembra o jurista Lenio Streck. “É grave isso que foi feito em relação ao jornalista Reinaldo Azevedo. Isso já acontecera no caso da divulgação da parte da conversa de Aécio com Gilmar Mendes, que não é investigado. E também acontecera na conversa entre Dilma e Lula”, diz.

Ele critica o ato ilegal: “Ao que consta, formalmente ainda não estamos em um estado de exceção. Ninguém está seguro em conversar mais com ninguém na República. A Constituição parece que já não nos protege. Parece que estamos em mundo panótico, sob o olho invisível do poder. No caso, sob a escuta ‘invisível’ do poder”.

O constitucionalista Eduardo Mendonça, do escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça e Associados, explica que o caminho para interceptações que não têm qualquer relação com os crimes investigados é o segredo de Justiça. "Não se pode simplesmente apagar, para que as partes possam verificar se a seleção de trechos feita pelas autoridades é legítima, mas também não se deve torná-las públicas, pois são conversas pessoais."

"É um grave problema do Direito brasileiro a falta de parâmetros objetivos para definir o que deve ser divulgado e quando", diz Mendonça. Ele defende que todas as pessoas que sejam vítimas de interceptações tenham o direito de ser avisadas posteriormente, mesmo que não tenha sido aberto um processo. "O Estado não tem o Direito de ouvir as pessoas em suas vidas privadas sem sequer dar satisfação", afirma.

A PGR divulgou nota dizendo que a não foi responsável por tornar pública a conversa privada de Reinaldo e Andrea Neves. Em nota divulgada nesta terça-feira (23/5), a entidade disse que ainda não recebeu o processo e qualquer documento que tenha sido incluído nos autos é de responsabilidade da Polícia Federal.

Ataques repetidos
O ataque à imprensa por meio da quebra do sigilo de fonte tem se repetido no Brasil. Em outubro, o jornalista Murilo Ramos, da revista Épocateve seu sigilo telefônico quebrado em decisão da juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12ª Vara Federal de Brasília. A medida foi adotada para apurar quem passou à revista um relatório preliminar de pessoas suspeitas de manter dinheiro irregularmente no exterior.

No mesmo mês a decisão foi cassada pelo desembargador Ney Bello, do no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que disse: “O dever de investigar atos ilícitos praticados por terceiros não tem mais peso constitucional que o direito a um imprensa livre. Se é certo que a sociedade precisa de segurança jurídica, também é certo que precisa de uma imprensa sem medo e amarras”. 

O caso se soma a uma lista de ações que criam embaraço ao exercício do jornalismo. No início do ano, três repórteres, um infografista e um webdesigner da Gazeta do Povo, do Paraná, sofreram 41 processos em 19 cidades do estado por juízes e promotores que se sentiram ofendidos com a divulgação de seus salários acima do teto constitucional pelo jornal.

Em ação coordenada, todos os pedidos foram idênticos, pedindo direito de resposta e indenizações por danos morais, que somam R$ 1,3 milhão. De acordo com a Gazeta, os pedidos são sempre no teto do limite do juizado especial, de 40 salários mínimos. Como corre no juizado, a presença dos jornalistas em cada uma das audiências se torna obrigatória. As ações foram suspensas no Supremo pela ministra Rosa Weber — o mérito da ação ainda não foi julgado.

A "lava jato" também entrou na lista. No início deste ano, o juiz federal Sergio Moro, que toca a operação em primeira instância, determinou a quebra do sigilo telefônico e telemático do dono do Blog da Cidadania para saber quem passou informações a ele — embora o inquérito no qual a medida foi adotada não investigasse o jornalista. Também foi ordenada a apreensão de documentos, celulares, computadores e até arquivos digitais.

Depois de criticado publicamente, Moro proferiu outro despacho para dizer que blogueiros não são jornalistas e não gozam da mesma proteção constitucional. E "acusou" o Blog da Cidadania de divulgar opiniões políticas.

Leia a nota publicada por Reinaldo Azevedo:

Pela ordem:

Comecemos pelas consequências.

Pedi demissão da VEJA. Na verdade, temos um contrato, que está sendo rompido a meu pedido. E a direção da revista concordou.

1: não sou investigado;

2: a transcrição da conversa privada, entre jornalista e sua fonte, não guarda relação com o objeto da investigação;

3: tornar público esse tipo de conversa é só uma maneira de intimidar jornalistas;

4: como Andrea e Aécio são minhas fontes, achei, num primeiro momento, que pudessem fazer isso; depois, pensei que seria de tal sorte absurdo que não aconteceria;

5: mas me ocorreu em seguida: "se estimulam que se grave ilegalmente o presidente, por que não fariam isso com um jornalista que é critico ao trabalho da patota”.

6: em qualquer democracia do mundo, a divulgação da conversa de um jornalista com sua fonte seria considerado um escândalo. Por aqui, não.

7: tratem, senhores jornalistas, de só falar bem da Lava Jato, de incensar seus comandantes.

8: Andrea estava grampeada, eu não. A divulgação dessa conversa me tem como foco, não a ela;

9: Bem, o blog está fora da VEJA. Se conseguir hospedá-lo em algum outro lugar, vocês ficarão sabendo.

10: O que se tem aí caracteriza um estado policial. Uma garantia constitucional de um indivíduo está sendo agredida por algo que nada tem a ver com a investigação;

11: e também há uma agressão a uma das garantias que tem a profissão. A menos que um crime esteja sendo cometido, o sigilo da conversa de um jornalista com sua fonte é um dos pilares do jornalismo".

*Texto alterado oàs 23h23 do dia 23 de maio de 2017 para correção e acréscimos.

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