Compra de dólares

Juiz não pode ser vítima de manobras do tipo epigrafado (o caso Temer)

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22 de maio de 2017, 16h19

Fiel a compromisso ético de não intrometimento em hipóteses de infração penal entregues a outros especialistas, o velho e rodado escriba não se intromete no gravíssimo incidente envolvendo o presidente da República, diferentemente de outros mais açodados. Prefira-se, portanto, falar em dinheiro, mais precisamente em dólar, cujo valor fictício ondeia diariamente na Bolsa — e fora dela.

Previna-se, antes, o ouvinte interessado: este criminalista não entende muito de câmbio e Bolsa de Valores. Já lhe é difícil administrar os ganhos profissionais, deixando isso a critério da mulher. Aliás, muitos fazem o mesmo, com relevo para Waldir Troncoso Peres, nosso ícone maior, cuja efígie afixamos na parede do restaurante Itamarati, famoso por ter sido palco, inclusive, de debates antecedentes à eleição de muitos governadores do estado de São Paulo e de um presidente da República. Waldir ganhava, e, segundo consta, Carminha, sabiamente, guardava o dinheiro sobrante.

Dentro do introito, enquanto ouvia, ontem, noticiários sofregamente empanzinado pela Globo e editoras outras, o escrevinhador teve, além da angústia, uma sensação esquisitamente presente: algo cheirava mal naquele composto, não se falando, evidentemente, no episódio do aprochegamento do delator nas falas com o presidente da República, isso na casa do visitado, levando no corpo o chegante, muito bem preparado, o aparelho gravador da conversa.

Este cronista, anos atrás, assistiu a um filme em preto e branco correspondendo ao conflito entre o FBI, hoje meio desmoralizado, e a máfia. O infiltrado, primeiramente, teve as pilosidades peitorais raspadas, porque o captador eletrônico, ainda rústico, precisaria ser colado com esparadrapo, atividade duplamente perigosa, porque, se descoberto o espião, seria morto com certeza, além da dor provocada pelo descolamento do instrumental.

Agora, em Brasília, deve ter sido diferente, pois até nos vestibulares são usados microtransmissores aptos a recolhimento de informações a muitos metros de distância. De qualquer maneira, o visitante-alcagoeta deve ter sido recebido sem maiores entraves, não se despindo na portaria para as verificações de estilo. O Brasil tem dessas coisas. Na América do Norte inspiradora dos nossos policiais e representantes do Ministério Público Federal, até Obama passava pelos detectores de metal. No Brasil, visita é visita. Não passa por vexames.  

O objetivo da crônica, entretanto, é outro. Durante a transmissão dos terríveis acontecimentos, este velho marinheiro, repita-se, teve uma sensação anômala: alguma coisa não batia naquilo tudo. Foi dormir pensando nas consequências diretas e indiretas da delação, ouvindo, inclusive, trechos às vezes inaudíveis dos diálogos mantidos com o presidente. Isso foi na quinta-feira (18/5). Na sexta (19/5) de manhã, o escriba se cientificou de que o delator, mais o outro, prestando delação recompensada ao Ministério Público Federal lá pelo mês de março, haviam admitido o pagamento da multa de R$ 200 e poucos milhões, recebendo, em contraposição, garantias de imaculabilidade com referência a procedimentos criminais, tudo acompanhado de um adminículo sedutor, pois os passaportes, limpos, permitiram, inclusive a viagem desimpedida a país outro, notadamente à América do Norte, fato consumado em relação a um deles.

As condutas humanas têm a chamada relação de causalidade inafastável. Nesse diapasão, anote-se que a chamada colaboração recompensada teria sido consumada há dois meses, explodindo o escândalo, entretanto, só após noticiário emanado de jornal do Rio de Janeiro. Coincidentemente, o ministro Fachin, muito austero no cumprimento das atribuições de relator, liberara o teor das gravações correspondentes ao visitante posto na berlinda.

O impacto repercutiu no país inteiro e no estrangeiro, ressoando na Bolsa de Valores, cuja sensibilidade, às vezes, dera reação ante um espirro mais forte de político atuante ou preso importante. O dólar estava valendo R$ 3,13. Explodiu a R$ 3,34. Uma diferença de mais ou menos 7,5%. Assim, qualquer investidor previdente ou portador de antenas bem ligadas, mais quem tivesse informação privilegiada, nisso incluídos os delatores, já estaria comprando a moeda estrangeira com muita forme, esperando o momento adequado para desentocar o papel precioso.

Consta nas esquinas que a empresa mantida pelos delatores, entre a multa a pagar e os lucros obtidos com o estocamento dos dinheiros adquiridos a preço mais baixo, obteria lucro inebriante, não se contando atividades paralelas correspondentes à venda de ações a preço mais alto, anteriormente ao evento. Em suma, reduzido a miúdos o incidente gerado pela aziaga recepção do colaborador premiado na casa do presidente da República — e casa era —, pois ali reside Temer, a relação causal deu ao Ministério Público Federal a possibilidade de intervir nos meandros das consequências, tornando-se parte inocente na aferição de um benefício milionário outorgado à empresa posta em realce. Um “negócio da China”, diga-se de passagem, pois não se tem notícia, na história da delação premiada no país, e no mundo, de benefício tão amplo concedido a qualquer, com certeza floreado pela intervenção do Poder Judiciário, peça importantíssima intrometida no jogo.

Realmente, não fosse o empenho da força-tarefa dos eminentes procuradores da República, não fosse a aparatosa e sofisticadíssima preparação da Polícia Federal no corpo do colaborador, não fosse o sigilo imposto pela colheita dos depoimentos e chegança ao cultíssimo relator ministro Fachin, não fosse a cooperação do procurador-geral da República, não fosse a liberdade absoluta deferida aos confitentes, mantidos estes com os passaportes nos bolsos, não fosse, finalmente, o escândalo correspondente à divulgação da alcaguetagem, o excelente resultado financeiro da negociação não teria acontecido.

A esse arredondamento se chama concausa, ou seja, a soma de causas concomitantes levando ao resultado final. Em outros termos, a sucessão de movimentos funcionou como relógio bem azeitado, parecendo reedição de ficções postas em filmes hollywoodianos. Presentemente, começando-se a perceber o encadeamento polimorfo da conduta dos partícipes, maioria deles entusiasticamente voltada à luta contra a corrupção, os meios jurídicos começam a iluminar as sombras do labirinto: o ministro Fachin há de perceber que, por força das atribuições e, quiçá, da necessidade na recomposição da moral nacional, cooperou para o êxito de um magnífico golpe de mestre, enredando-se na implantação um bom magote de gente extremamente honesta, despontando a Polícia Federal e a Procuradoria da República no mesmo estilo. Ali não há ingênuos. Entretanto, a sofisticação do sinuoso empreendimento passou despercebida.

O presidente da República fez parte do enredo, sendo cooptador infeliz do resultado vantajoso a encher os bolsos de alguns, acompanhando-o nisso o Poder Judiciário. Visando a elucidação de suspeitas de cometimento de fato infracional, o relator Fachin se inseriu no êxito do negócio financeiro em tramitação. É quase inacreditável, mas aconteceu.

O fim do drama ainda não se apresentou, é óbvio, mas a suprema corte, nesta altura dos acontecimentos, deve estar reunida, num revoar de togas, a saber quem, quando e como há de se desenrolar a novela cruel. Precisará, é claro, consultar economistas, contabilistas e especialistas em câmbio, investigando os contornos da operação, porque o Poder Judiciário, o Ministério Público e a própria Polícia Judiciária não podem ter complacência com a hipótese a se aperfeiçoar. Juiz não pode ser vítima de manobras do tipo epigrafado. Há, no meio disso tudo, gênios enredados nos diversos movimentos dos colaboradores premiados. Dando certo o esquema, pagas as devidas comissões, restará um lucro de muitos bilhões de reais, a serem degustados, se a tanto se chegar, nas “Ibizas” da vida.            

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