Opinião

As condutas de Michel Temer e Aécio Neves à luz da Súmula 145 do STF

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19 de maio de 2017, 17h20

Como foi amplamente noticiado, o presidente Michel Temer foi gravado em conversa com o empresário Joesley, presidente do frigorífico JBS, que firmou acordo de delação premiada.

Na conversa, após o empresário ter afirmado que estaria pagando uma espécie de mesada ao ex-deputado Eduardo Cunha para comprar o seu silêncio, Michel Temer teria incentivado a conduta, dizendo, em tom imperativo, “mantenha isso daí”.

O senador Aécio Neves também foi gravado, solicitando ao empresário a quantia de R$ 2 milhões para custear a sua defesa no âmbito da operação "lava jato".

Não há dúvida de que se cuida de um grave problema de decoro, em se tratando de dois altos mandatários da nação.

Sem embargo, deixando de lado os aspectos estritamente éticos das referidas condutas, pretendemos analisar aqui, em breves linhas, se os fatos imputados ao presidente e ao senador, ainda que, eventualmente, formalmente tipificados em lei, podem ser considerados materialmente típicos.

Para tanto, será preciso pontuar, em primeiro lugar, que toda a ação divulgada pela imprensa estaria sendo monitorada pela Polícia Federal, com o auxílio do empresário Joesley, que, já na condição de delator, estaria atuando como agente colaborador da Polícia e do Ministério Público.

Esse o contexto, merecerá nosso registro, além dos precedentes que a geraram, a Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”[1].

A propósito, em um dos julgados que deram ensejo à Súmula 145, o Supremo considerou que: “… se se trata de flagrante engendrado pela vítima, garantido pela polícia, nulo é o auto de prisão em flagrante e suas consequências criminais” [2].

Em outro caso, em que a acusação que recaía sobre o acusado era a de ter praticado corrupção passiva, o Supremo Tribunal Federal, embora registrando que o fato, se comprovado, poderia ensejar processo administrativo para demissão do funcionário público, concluiu não haver crime na hipótese do acusado ser preso em flagrante após a “vítima” ter procurado a polícia para surpreendê-lo recebendo vantagem supostamente oriunda da prática de corrupção [3].

Num terceiro caso, que, a exemplo dos outros dois acima mencionados, gerou a Súmula 145, o Supremo deu provimento ao Recurso Extraordinário 15.531, para absolver um acusado de extorsão, ex-empregado de uma companhia, que procurara o então diretor para, sob ameaça de fazer publicar artigos que colocassem em dúvida a idoneidade da empresa, exigir o pagamento de determinada quantia em dinheiro.

Como o então diretor recebera prevenido o ex-empregado da companhia, convocando agentes de polícia, que aguardavam o desenrolar dos fatos em sala contígua, o Supremo concluiu que “arquitetada, por essa forma, a armadilha para surpreender o recorrente, certo é que o interesse tutelado pela lei penal estava previamente resguardado e, portanto, isento de qualquer ameaça, livre do mais insignificante risco”.

Consignou-se, ademais, que:

[…] sem a realização do fato, ou sem o resultado, e, ainda, sem o perigo de dano, imediato, não há crime ou tentativa punível. O que se revela é a simples intenção em praticar o delito, é o elemento moral da figura delituosa. O elemento material, o perigo, este, de fato, inexiste, uma vez que o patrimônio do lesado esteja devidamente assegurado pelos agentes da autoridade pública.

Em face do exposto e das provas a que nos referimos, é evidente que a consumação do delito foi provocada; que o fato se tornou fictício em virtude do patrimônio da companhia estar assegurado pela autoridade pública[4].

Por estar livre do mais insignificante risco, vez que o interesse tutelado pela lei penal estava previamente resguardado, entendeu o Supremo que a ação era penalmente irrelevante, dadas as circunstâncias fáticas que tornaram o fato fictício e não real.

Nesse sentido, discorrendo a respeito da ação controlada e infiltração por agentes, Delmanto observa que, na hipótese em que a “própria autoridade policial tiver interagido e com isso estimulado o agente durante a ação controlada, já com vistas a efetuar a prisão em flagrante”, “que pode, por exemplo, ocorrer em casos de corrupção ativa (CP, artigo 333), deixará o agente policial de ser mero observador que acompanha a ação criminosa, como preceitua a disciplina legal da ação controlada, podendo caracterizar verdadeiro flagrante preparado, o que torna impossível a configuração do crime, não havendo ofensa a bem jurídico qualquer”[5].

No caso em análise, embora não tenha havido prisão em flagrante, é possível dizer, com Delmanto, que, pelo fato da própria autoridade policial ter interagido e estimulado o agente durante a ação controlada, deixando o interesse tutelado pela lei penal previamente resguardado, não houve ofensa ou perigo de ofensa a qualquer bem jurídico.

Com efeito, assim como nos casos julgados pelo Supremo, e que fizeram nascer a Súmula 145, não houve, nos diálogos travados entre o presidente Michel Temer, o senador Aécio Neves e o delator Joesley Batista perigo objetivo e muito menos real ao interesse tutelado pela lei penal, visto que o bem jurídico protegido estava previamente resguardado pela precedente atuação das autoridades e livres do mais insignificante risco.


1 Brasil, Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 145, Tribunal Pleno. Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 82.

2 Brasil, Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 38.758, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gonçalves de Oliveira, DJ 14/12/1961.

3 Brasil, Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 40.289, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gonçalves de Oliveira, DJ 17/12/1963.

4 Brasil, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 15.531, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ribeiro da Costa, DJ 09/09/1951.

5 Delmanto, Celso; Delmanto, Roberto; Júnior, Roberto Delmanto; Delmanto, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 122.

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