Opinião

O controle da verdade na colaboração premiada e na ação controlada

Autores

  • Bruno Silva Rodrigues

    é sócio-fundador do escritório Bruno Rodrigues Advogados presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro especialista em Direito Penal e Processo Penal pela George-August Universität Göttingen (Alemanha) pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ) e especialista em Direito Penal e Processo Penal Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

  • Rafael Serra de Carvalho

    é advogado do Bruno Rodrigues Advogados pós-graduado em Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Lisboa) e em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst-Rio).

18 de maio de 2017, 15h11

O processo criminal é, mesmo com determinadas limitações, como explica Julio Maier, um método regulado juridicamente para averiguar a verdade sobre uma acusação. A busca da verdade, no entanto, não é o único objetivo perseguido no curso de um procedimento de natureza criminal, coexistindo outros valores que, por vezes, assumem, inclusive, uma maior envergadura[1].

Ocorre que, nos dias atuais, consoante observou Geraldo Prado, nota-se a tendência por parte das agências responsáveis pela persecução penal de construírem a verdade sobre os fatos no processo penal, discursivamente, valendo-se de supostas evidências obtidas através dos mais variados meios de investigação de prova[2]. Entre eles destacam-se a colaboração premiada e a ação controlada.

Assim, em um ambiente de investigação e atribuição de responsabilidade penal marcado pelo sequestro e manipulação de evidências, tais meios de investigação passam a ocupar lugar de destaque, pois norteiam o testemunho do colaborador ou, até mesmo, o auto circunstanciado acerca da ação controlada, a ideia de que substituem, ou dão a conhecer, sem alterar, o que ocorreu no passado.

Nesse contexto, é notória a dificuldade encontrada pela defesa para influenciar efetivamente no acertamento do caso penal, pois, cada vez mais, o contraditório é visto como instrumento de contaminação da verdade. Isto é, o que se observa hoje em dia é que as informações extraídas desses novos métodos de investigação, com todos os vícios de vontade que podem influenciá-las, estão se tornando cada vez mais definidoras das premissas que balizarão toda a cadeia de produção de sentido no curso do processo criminal.

O problema é que esse novo método de reconstrução da verdade, longe de revelá-la, pode provocar incorreções, afinal, o contexto processual não comporta apenas uma narrativa homogênea. A estratégia por parte das agências de repressão de construção da verdade com base nas supostas evidências obtidas mediante colaboração premiada, deveria encontrar resistência numa adequada valoração das provas, pois, por força do artigo 4º, parágrafo 16, da Lei 12.850/2013, não é possível uma condenação exclusivamente com base nas declarações do colaborador.

De igual forma, por força do artigo 155, do Código de Processo Penal, os elementos informativos constantes no auto circunstanciado de ação controlada, produzidos durante o inquérito, por si só, também não prestam para fundamentar uma decisão penal. O próprio artigo 386, inciso VII, do Código Penal, consagra a dimensão probatória do princípio constitucional da presunção de inocência em nosso ordenamento jurídico, impondo a absolvição do réu sempre que “não existir prova suficiente para a condenação”.

Frente a essa nova estratégia empregada pelos responsáveis pela persecução penal, uma adequada compreensão da regra de valoração dos novos métodos de investigação, pensada a partir da concepção cognoscitiva ou racionalista de prova, emerge como ferramenta apta a evitar juízos arbitrários e irracionais sobre a veracidade ou falsidade de uma imputação.

Infelizmente, no entanto, ainda estamos amarrados a uma concepção persuasiva de prova, a qual reduz a motivação dos fatos à mera explicação do caminho mental percorrido pelo juiz para formação de sua convicção sobre os fatos[3]. Para além de inviabilizar qualquer (re)discussão sobre os fatos em outra instância, tal concepção não permite o controle sobre a idoneidade dos elementos que ingressaram na sentença, bem como o mapeamento das inferências que compuseram a cadeia de justificação do enunciado fático na decisão.

Ao contrário da concepção anterior que não distinguia os conceitos de verdade e prova, a concepção cognoscitiva de prova rechaça qualquer vinculação entre os dois conceitos[4]. Na esteira de Marina Gascón Abellán, dizer que um enunciado fático é verdadeiro significa dizer que os fatos descritos existem ou já existiram em um mundo independente[5]. Noutro giro, dizer que um enunciado fático está provado significa dizer que tal enunciado foi confirmado pelas provas produzidas no processo[6]. Nas palavras de Jordi Ferrer Beltrán, “está provado que p” seria o mesmo que “há elementos de prova suficientes a favor de p”[7].

A separação entre esses conceitos de prova e verdade é necessária para desvelar a eventual falibilidade dos fatos postos na denúncia, mas, principalmente, cumpre um papel metodológico, pois evidencia a necessidade de adoção de cautelas e o estabelecimento de garantias para fazer com que a declaração dos fatos na sentença se aproxime o mais possível da verdade[8]. E mais. É, talvez, a única concepção de prova capaz de controlar o ingresso na sentença de elementos de prova inidôneos para fundamentar o thema probandum.

Para além de qualquer formalismo, um adequado controle sobre quais os dados probatórios que são aptos a corroborar as declarações de colaboradores e o auto circunstanciado de ação controlada no processo emerge como resposta a diversas questões frequentemente suscitadas na prática judiciária penal. Afinal, um processo penal de cunho democrático reclama o estabelecimento de marcos de referências confiáveis para o conhecimento verídico sobre os fatos relevantes para a solução do caso penal.

Nesse passo, o convencimento ou a crença do julgador sobre a existência dos fatos postos na denúncia precisa urgentemente ser deixada de lado, em prol do que está realmente provado objetivamente nos autos. Como bem exemplificou Vitor de Paula Ramos[9], a “verdade não precisa de adesão”, o fato de alguém acreditar que o Sol gira em torno da Terra não faz com que tal fenômeno tenha maior probabilidade de ser verdadeiro. De igual forma, o fato de o juiz acreditar ou não nas palavras do colaborador ou no que foi reduzido a termo pela autoridade policial responsável pela ação controlada nada diz sobre a veracidade do conteúdo das informações.

Recentemente, durante o interrogatório do ex-presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, verificou-se, à exaustão, a realização, de diversos questionamentos que tangenciavam os limites estabelecidos na denúncia, sob argumento de que eventuais esclarecimentos serviriam para a formação do convencimento do magistrado.

Data máxima vênia, a consequência da adoção dessa concepção subjetivista de prova é que, dificilmente, a declaração dos fatos constantes na sentença poderá ser falsa, afinal, parte-se do princípio de que “está provado que p” seria o mesmo que “está convencido que p”. A tradição brasileira de apresentação dos fatos na sentença sob a forma de relatório é, talvez, o melhor exemplo desse tipo de decisionismo, identificado no texto como o “poder de decidir de maneira imune a restrições ditadas por preceitos legais e impassíveis de revisão superior”[10].

Assim, ao nosso ver, face ao breve exposto, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, acredita-se que a opção pelo enfrentamento das questões relacionadas à prova penal sob o viés epistêmico[11], em detrimento de outros modelos analíticos pautados pelos ideais de convencimento e argumentação, atende mais às necessidades de um sistema de Justiça criminal marcado pela aliança entre o juízo e os órgãos da investigação, que prejudica o descobrimento da verdade, em notável desfavor da defesa[12].


[1] MAIER, Julio B. J. Derecho Procesal Penal, Tomo  I: fundamentos. 2ª ed., Buenos Aires: Del Puerto, 2004. v. 1, pp. 858 e 869.
[2] PRADO, Geraldo. Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 69.
[3] FERRER BELTRÁN, Jordi. La Valoración Racional de la Prueba. Madri: Marcial Pons, 2007, p. 64.
[4] GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. In: Seminario Los Hechos en el Derecho, Bases Argumentales de la Prueba, Escuela Judicial Electoral del Tribunal Judicial de la Federación, México, 2003, pp. 4-7.
[5] GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. In: Seminario Los Hechos en el Derecho, Bases Argumentales de la Prueba, Escuela Judicial Electoral del Tribunal Judicial de la Federación, México, 2003, pp. 4-7.
[6] GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. In: Seminario Los Hechos en el Derecho, Bases Argumentales de la Prueba, Escuela Judicial Electoral del Tribunal Judicial de la Federación, México, 2003, pp. 4-7.
[7] FERRER BELTRÁN, Jordi. Prueba y Verdad en el Derecho, 2ª ed, Madri: Marcial Pons, 2005, p.37.
[8] GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. In: Seminario Los Hechos en el Derecho, Bases Argumentales de la Prueba, Escuela Judicial Electoral del Tribunal Judicial de la Federación, México, 2003, pp. 4-7.
[9] RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da Prova no Processo Civil: Do ônus ao dever de provar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
[10] CHASE, Oscar G. Direito, Cultura e Ritual: sistemas de resolução de conflitos no contexto da cultura comparada. Trad. Sergio Arenhart; Gustavo Osna. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 112.
[11] Michele Taruffo vai dizer que “em todo e qualquer procedimento de caráter epistêmico tem importância decisiva o método, ou seja, o conjunto das modalidades com que são selecionadas, controladas e utilizadas as informações que servem para demonstrar a veracidade das conclusões. No âmbito do processo isso equivale a fazer referência sobretudo às regras que disciplinam a produção das provas e sua utilização, ou seja, ao ‘direito das provas’ e à equivalente noção anglo-americana de law of evidence” (TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Trad. Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 164).
[12] SCHÜNEMANN, Bernd. Audiência de instrução e julgamento: modelo inquisitorial ou adversarial? Sobre a estrutura fundamental do processo penal no 3º milênio. In: Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do Direito. Luís Greco (Coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 233.

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