Contas à Vista

STF deve estar alerta para o financiamento da saúde pública no Brasil

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

16 de maio de 2017, 8h00

Spacca
Estou seguro de que o Direito Financeiro vem sendo usado para atacar o direito à saúde pública, e isso está na pauta do STF, na ADI 5.595 (relator ministro Ricardo Lewandowski) e na ADI 5.658 (relatora ministra Rosa Weber), discutindo a EC 86 e a EC 95.

Nesta coluna, demonstrarei a importância que o ano de 2017 tem para essa análise jusfinanceira.

O montante mínimo a ser gasto pela União com as ações e serviços de saúde pública deveria ser estabelecido por uma lei complementar, conforme determinado pela EC 29/00. De forma transitória, o artigo 77, ADCT, também inserido pela EC 29/00, inscreveu que o financiamento federal deveria corresponder, no mínimo, ao que havia sido gasto no ano de 1999, acrescido de 5% e, a partir de então, pela variação do PIB, com uma trava financeira em caso de PIB negativo.

Passados 15 anos, a Emenda Constitucional 86, de 17 de março de 2015, aprovada no auge da empolgação do Congresso Nacional com o recém-empossado presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, atualmente hóspede do juiz Sergio Moro em Curitiba, estabeleceu que a União aplicasse anualmente no financiamento do direito à saúde pública nunca menos do que 15% de sua receita corrente líquida (artigo 198, parágrafo 2º, I, CF).

À primeira vista, isso parece adequado, pois, em vez de vincular à variação do PIB, passou a fazê-lo com relação à receita corrente líquida, que cresce na medida da fúria arrecadatória da União.

Todavia, o artigo 2º da EC 86/15, que não foi incorporado ao texto constitucional, criou uma inconstitucional progressividade temporal até chegar aos 15%. Assim, em 2016 o percentual seria 13,2%, e em 2017 o percentual seria de 13,7% da receita corrente líquida, e assim sucessivamente[1]. Só isso já seria inconstitucional, verdadeiro passa-moleque no texto permanente da Constituição. Basta dizer que, aplicados esses "percentuais transitórios", o sufoco financeiro seria muitas vezes maior do que o atual.

Ocorre que esse artigo 2º da EC 86/15 foi expressamente revogado pelo artigo 3º da EC 95/16[2], que estabeleceu um teto para diversos gastos, dentre eles com a saúde pública, que passou a ter assegurada apenas correção monetária do seu piso. E o governo federal parece que não se atentou a esse ínfimo detalhe normativo e aplicou, em 2016, montante inferior aos 15% constitucionalmente determinados.

Aqui se registra que, em face desses "percentuais transitórios" terem vigorado durante algum tempo e gerado efeitos concretos, a ADI 5.595 (relator ministro Lewandowski) não perdeu o objeto, a despeito de sua revogação expressa pelo artigo 3º da EC 95. Lembro, em prol dessa tese, o argumento utilizado pelo STF para julgar as questões envolvendo guerra fiscal, pois, mesmo quando os estados revogavam a norma isentiva, atacada como inconstitucional, em face de ter vigorado durante certo tempo e gerado efeitos concretos, ela tinha que ser julgada pelo STF, mesmo após revogada.

Daí que o texto vigente é o que determina que o percentual a ser aplicado seja o de 15% da receita corrente líquida da União em ações e programas de saúde pública, conforme estabelece o texto permanente da Constituição (artigo 198, parágrafo 2º, I, CF), em face da expressa revogação do artigo 2º da EC 86/15 pelo artigo 3º da EC 95/16, que determinava o escalonamento de alíquotas, progressivas no tempo, a serem aplicados a essa política pública.

É nesse sentido a minuciosa representação formulada ao Ministério Público Federal, contra o presidente da República e seu ministro da Saúde, pela membro do Ministério Público de Contas paulista e colunista desta ConJur, Élida Graziane Pinto, em conjunto com o economista Francisco Funcia. A lógica presente nessa representação é que a revogação do escalonamento dessas alíquotas progressivas (chamadas de subpisos) estabelecido na EC 86/15 estava prevista desde o projeto apresentado pelo Poder Executivo, a PEC 241, em junho de 2016, transformada em PEC 55 quando chegou ao Senado Federal. Logo, com a revogação expressa e imediata dessa falsa progressividade pela EC 95, deveria ser efetuado o gasto com as políticas de saúde no percentual de 15% da receita corrente líquida da União. E, segundo consta da minudente representação, faltam R$ 2,5 bilhões para se chegar ao limite constitucionalmente determinado.

José Maurício Conti sempre repete um bordão de que “é preciso levar o Direito Financeiro a sério” (não no sentido usado por Ronald Dworkin, que escreveu o magnífico Taking Rights Seriously, mas no sentido popular da frase, conforme autodeclarado); logo, é necessário que sejam apuradas as devidas responsabilidades por esse descaso perpetrado contra o Direito Financeiro, com nefastas consequências para a saúde pública dos brasileiros.

Independentemente desse fato — que deve ser devidamente apurado com rigor pelas instâncias competentes, inclusive o Tribunal de Contas e o Ministério Público de Contas da União —, o estabelecimento do piso de gastos em 2017 é importantíssimo em razão de que se constituirá no patamar mínimo a ser usado nos anos vindouros, em razão do que determina o artigo 110 do ADCT, inserido pela EC 95/16, que criou o teto de gastos, uma vez que servirá como base para os 20 próximos anos! Como é sabido, a partir de 2018, só haverá a correção desse piso pela inflação (artigo 110, inciso II do ADCT).

Ora, se em 2016 foram aplicados menos R$ 2,5 bilhões, teme-se por 2017, pois, se neste ano não for aplicada a quantia certa, a correção monetária partirá de piso inferior, e bilhões sumirão no ralo das contas públicas, muito pouco transparentes para os leigos em finanças públicas, cerca de 99,99% da população, que, aliás, tem coisas muito importantes a fazer, como tentar sobreviver no dia a dia de seu quotidiano asfixiante. A partir daí, a correção monetária apenas congelará esse valor (artigo 110, ADCT), e os anos posteriores utilizarão esse patamar rebaixado, com trágicas consequências para grande parte da população brasileira que depende do SUS para ter alguma qualidade de vida. Ou seja, se o número em 2017 não for preciso, pode vir a faltar ainda mais grana para financiar a saúde pública, em frontal desrespeito à Constituição.

A perspectiva ainda piora quando se analisa uma pegadinha relatada por Élida Graziane na sua última participação nesta coluna[3], quanto ao decreto de programação financeira, com referência à falta de previsão orçamentária para cobrir o estoque de restos a pagar, estimados em cerca de R$ 30 bilhões para os gastos com saúde (e educação). A pegadinha é que o valor base para os gastos com saúde pública em 2017 será o montante efetivamente gasto, e não o montante apenas empenhado. Logo, esses R$ 30 bilhões já contingenciados, e que seguramente serão lançados em restos a pagar, não comporão a base de cálculo para os anos futuros, a partir de 2017. Isso é de extrema importância na análise da ADI 5.658 (relatora ministra Rosa Weber).

Imagine você, caro leitor, perder seu caríssimo plano de saúde privado. Ou vê-lo rebaixado no curso da contratação. Você contratou um plano de saúde que continha o direito a usar o Hospital Einstein e o Sírio-Libanês e verificou que, no curso da contratação, o plano de saúde foi alterado, só te restando hospitais de segunda linha. Qual seria sua reação? No mínimo iria aos juizados de Pequenas Causas litigar contra os pilantras que te ofereceram gato, quando foi contratado lebre. É, para dizer o mínimo, uma fraude contra o consumidor.

Será possível equiparar o cidadão, que paga seus tributos diretos e indiretos, a um consumidor? Seguramente, sim. O governo federal está rebaixando o “plano de saúde” de seus cidadãos (o SUS), em direto confronto com as normas constitucionais do país — muito embora mantenha o mesmo custo de seus usuários, ou talvez até o amplie. O Direito Financeiro não serve para tal intuito, devendo ser utilizada a Constituição Financeira como um escudo contra essas investidas governamentais, como exposto por Heleno Taveira Torres em sua obra Uma Teoria da Constituição Financeira.

Insisto que, em hipótese semelhante, o STF já se utilizou da teoria dos direitos fundamentais, amplamente respaldada na Constituição, para afastar as tentativas de aumentar a carga tributária. Ocorreu no julgamento da ADI 939, tendo por relator o ministro Sydney Sanches. Naquela ocasião, o governo quis criar por emenda constitucional o Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira (IPMF), versão anterior da CPMF, e o STF decidiu que tal imposto feria cláusula pétrea constitucional inserida no artigo 60, parágrafo 4º, IV.

Ora, se existem direitos fundamentais dos contribuintes, com muito mais razão existem direitos fundamentais dos cidadãos. A Revolução Francesa, em 1789, declarou sua existência na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. A Constituição de 1988 é filha temporã dessa fase histórica e contempla diversos direitos dela oriundos, dentre eles o direito à saúde pública, com o financiamento correspondente como cláusula pétrea de nosso ordenamento jurídico.

É necessário cumprir a Constituição. Recompor as perdas históricas ocorridas em 2016 e utilizar o patamar correto em 2017, a fim de que surja um piso mínimo adequado (embora insuficiente) ao financiamento do direito à saúde pública, que perdurará pelos próximos e longos 20 anos (artigo 106, ADCT).

Na década de 1970, éramos 90 milhões de habitantes no Brasil, o que ficou caracterizado de forma indelével na música-tema da seleção canarinho: “Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, no meu coração…”[4]. Hoje ultrapassamos os 200 milhões de habitantes. Quantos seremos ao final dos próximos 20 anos? E, pelo andar da carruagem, o ritmo da redução da pobreza e das desigualdades sociais será ainda mais lento. A população envelhecerá e haverá menos renda a ser distribuída. Logo, a população que necessita de saúde pública aumentará — porém o gasto estará congelado no patamar de 2017, apenas corrigido pela inflação. Será que essa conta fecha? Ou teremos ainda mais pessoas mal atendidas nas enormes filas do SUS? Não é preciso ser matemático ou estatístico para vislumbrar o problema que o país terá pela frente.

Repito: é preciso que se ouça o grito contido no interior dessas normas de financiamento do direito à saúde pública, pois delas depende a saúde da maior parte da população brasileira. Nós — eu que escrevo e você que me lê — podemos nos refugiar nos planos privados de saúde. Porém, será que todos os que nos circundam também podem fazê-lo?

Se fosse possível, tenho certeza de que todos mandariam a maior banana ao governo — ao atual, aos anteriores e aos posteriores. Mas não dá. E nem dará. Infelizmente. Resta-nos o STF no julgamento da ADI 5.595 (relator ministro Ricardo Lewandowski) e da ADI 5.658 (relator ministra Rosa Weber).


[1] Art. 2º O disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal será cumprido progressivamente, garantidos, no mínimo: I – 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; II – 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; III – 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; IV – 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; V – 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional.
[2] “Art. 3º Fica revogado o art. 2º da Emenda Constitucional nº 86, de 17 de março de 2015.” É interessante notar que o site oficial do Palácio do Planalto ainda não fez constar a revogação da referida norma, como pode ser visto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc86.htm, último acesso em 1º de maio de 2017.
[3] Disponível em http://www.conjur.com.br/2017-abr-25/contas-vista-minimos-minorados-iminencia-congelamento-20-anos.
[4] Segue pequeno trecho: “Noventa milhões em ação/ Pra frente Brasil, no meu coração/ Todos juntos, vamos pra frente Brasil/ Salve a seleção!!!/ De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão!/ Todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração!/ Todos juntos vamos pra frente Brasil!/ Salve a seleção!/ Todos juntos vamos pra frente Brasil!/ Salve a seleção!/ Gol!”.

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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