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Violência doméstica é desafio constante aos paradigmas

Autor

  • Ricardo Prado Pires de Campos

    é procurador de Justiça aposentado presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito com mestrado em Processo Penal. Foi promotor do júri por uma década tendo atuado no 1º Tribunal do Júri de São Paulo.

15 de maio de 2017, 8h00

Interior de São Paulo, anos atrás, uma mulher procura a polícia e relata que foi agredida pelo marido. O delegado instaura o inquérito, e ela é submetida a exame de corpo de delito. Resultado: hematoma na região orbital. Ela tomara um soco no rosto, e o laudo pericial atestava isso.

Ofereci a denúncia, e o processo foi instaurado. Na audiência, em juízo, no entanto, a mulher, que já se reconciliara com o agressor, disse que havia caído e batido o rosto no canto da mesa. Pedi a condenação, mas o juiz absolveu porque não havia testemunha do fato, e a vítima havia se retratado.

Recorri. O advogado sustentou que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”; e o tribunal manteve a absolvição.

De lá para cá, muita coisa mudou. A sociedade tem sofrido mudanças numa velocidade inimaginável, mas, ainda assim, certas ideias, certos conceitos, de tão enraizados, são difíceis de mudar.

Passados 30 anos, a sociedade dá alguns sinais de mudança, mas a resistência é muito forte.

Foi preciso chegar a uma condenação internacional do país para que a Lei 11.340, de 2006, fosse editada. Levou o nome de Maria da Penha, em homenagem à vítima da violência doméstica que se tornou o símbolo da luta contra essa crueldade institucionalizada.

A primeira grande mudança de paradigma foi feita pela própria Maria da Penha ao convencer o governo, através da condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que o Estado tinha de intervir nessa realidade: a agressão, mesmo dentro do lar, não poderia ser tolerada, tinha de ser combatida. Em briga de marido e mulher, era preciso meter a colher sempre que a briga descambasse para atos de violência.

Essa luta foi vencida com a edição da Lei 11.340, de 2006.

O segundo grande desafio era convencer os órgãos do Estado de que essa lei deveria ser aplicada de forma efetiva, e, para isso, o Supremo Tribunal Federal teve de mudar a própria lei.

Embora a lei trouxesse muitos avanços, ela mantinha um sistema de sabotagem ao estabelecer que a ação penal seria pública, condicionada à representação (artigo 16). Ao prever que a vítima poderia se retratar, em audiência judicial prévia, o sistema criava um obstáculo intransponível na maioria dos casos.

Precisou a intervenção do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a ação penal como pública incondicionada, nos casos de violência doméstica, para poder dar efetividade aos mandamentos da nova lei.

Ementa – AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações (STF – ADI 4.424/DF – relator min. Marco Aurélio – Tribunal Pleno – j. 9/2/2012).

Estabelecida a premissa maior, outros fatores, ainda, continuam a impedir a incidência da lei, criando obstáculos à sua eficácia em muitos casos. Vejamos alguns.

Primeiro obstáculo: exigência de inquérito policial para concessão das medidas protetivas de urgência. Essa exigência não tem fundamento na legislação vigente. As hipóteses de violência doméstica são bastante amplas e incluem violência psicológica, sexual, patrimonial, moral, e não apenas física (artigo 7º). As medidas podem ser concedidas através de mero “expediente” (artigos 12, III, e 18), em geral, representado pelo pedido de concessão das medidas, acompanhado das declarações da ofendida ou do boletim de ocorrência (TJ-SP – MS 2.245.931-52.2016.8.26.0000 – rel. des. Cardoso Perpétuo – j. 26/1/2017).

Necessário ressaltar que a Lei Maria da Penha, nesse aspecto, rompe outro paradigma da Justiça: a separação tradicional entre juízo civil e criminal. A lei tem disposições sobre ambos os temas e os atribui ao mesmo juízo (artigos 14 e 33). De maneira que os juízes criminais precisam estar atentos. As regras e os princípios que se aplicam às demais matérias criminais nem sempre podem ser aplicados na interpretação da Lei Maria da Penha.  

Segundo obstáculo: exigência de testemunhas. A violência doméstica, em geral, é cometida entre quatro paredes, não costuma possuir testemunhas. Isso, todavia, não impede a ação da Justiça, seja concedendo as medidas protetivas, seja instaurando ações penais contra os agressores. Na maioria das vezes, o acusado acaba admitindo a agressão ao tentar justificar sua conduta; e os laudos de exame de corpo de delito, se bem interpretados, são ótimas testemunhas. “O corpo fala, se soubermos ouvir”, dizia um dos maiores médicos legistas desse país.

Terceiro obstáculo: interpretação da dúvida. In dubio pro reo, costuma repetir a praxe forense. No momento da sentença, está correto; mas na hora da concessão das medidas protetivas de urgência, não. Aqui, na dúvida é preciso agir.

Mandado de segurança – Injúria no âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher – Impetrante, assistida pela Defensoria Pública, que se insurge contra o indeferimento de pedido de concessão de medidas protetivas – Impetrante que tem sua rotina controlada pelo companheiro, inclusive horários de trabalho, […] – Companheiro que humilha a Impetrante em público com piadas pejorativas e que a injuriou com palavras de baixo calão, […] – Decisão impetrada que negou a concessão de medidas protetivas por entender que houve demora entre os fatos que configuraram a injúria e a ida da impetrante à Delegacia da Mulher, além de ter considerado a questão ‘matéria de Direito de Família’ – […] Impetrante em situação de violência psicológica e moral, nos termos do art.7º, incisos II e V, da Lei nº 11.340/06, com direito à tutela – Parecer da douta Procuradoria Geral de Justiça no mesmo sentido, adotado também como razões de decidir – Segurança concedida para fixar as medidas protetivas tal como pleiteadas, intimando-se […] (TJ-SP – MS 2224843-55.2016.8.26.0000 – 8ª C.D.Crim – relª desª ELY AMIOKA – j. 15/12/2016).

As medidas protetivas de urgência são uma das maiores inovações da Lei Maria da Penha. Instrumento poderoso para evitar a manutenção do ciclo de violência e, por vezes, que o conflito se transforme em tragédia.

Não há nenhuma razão que justifique indeferir o pedido de afastamento do agressor em relação à ofendida e de que ele seja proibido de se comunicar diretamente com ela (artigo 22, III). Quando a mulher fala em separação, e o homem não aceita, o que se segue, muitas vezes, são cenas de humilhação, xingamentos, ameaças e agressões. A criação de um muro de proteção, entre as partes, é extremamente salutar nesses casos.

Portanto, quando a mulher vai até um órgão público pedindo proteção contra alguém que ela conhece razoavelmente bem, cumpre atendê-la, sob pena de comprometer a eficácia do sistema de proteção criado pela lei de combate à violência doméstica.

Um parêntesis necessário: claro que há algumas mulheres que querem se aproveitar da legislação protetiva, para finalidades não nobres, mas, além de serem escassa minoria, é possível perceber seus movimentos, em geral, na busca de vantagens patrimoniais.

A maioria das vítimas é constituída de pessoas simples e desprotegidas, e isso é muito fácil de identificar.

Além do que, todas têm o direito de não serem incomodadas por alguém cuja convivência não mais se pretende (artigo 5º, II, CF). No caso da existência de filhos menores, a situação cria um complicador, mas, mesmo aqui, é possível manter o distanciamento do casal, bastando que se imponha um terceiro para os momentos de transferência da guarda.

Por fim, também, no uso da prisão preventiva, é preciso romper paradigmas (artigo 20). Os crimes praticados no âmbito doméstico, em geral, possuem penas diminutas: lesão leve, ameaça, constrangimento ilegal, violação de domicílio (quando já separados), o que poderia impedir a prisão antes da condenação.

O princípio da presunção de inocência, o provável regime aberto para cumprimento da pena, associados a uma eventual desproporcionalidade, seriam impedimentos para decretar a preventiva nessas hipóteses.

Não foi sem razão, todavia, que o legislador permitiu a custódia cautelar, se descumprida a medida protetiva (CPP, artigo 313, III). Muitas vezes, a criação de um muro legal, psicológico, e as obrigações de distanciamento não são suficientes para conter o ímpeto do agressor. Alguns, nem todos, ficam extremamente violentos quando contrariados em sua vontade, que entendem soberana. Nessas hipóteses, quando há o transbordamento da agressividade para atos de violência ou risco de tragédia, a contenção se faz necessária. E aí o muro de contenção deve ser físico, intransponível.

O tempo de duração da preventiva deve ser avaliado cuidadosamente pelo juiz, e depende, em verdade, do próprio agressor. Quando o agente percebe que a separação é inevitável, que ele perdeu aquela mulher definitivamente, que não há retorno, então, ele terá condições de retomar sua vida. Enquanto não aceita a separação, ele se constitui em risco potencial para a mulher.

É preciso entender essa lógica: a prisão nos casos da Lei Maria da Penha não é necessária para punir o agressor (condenação após sentença), mas é imprescindível para impedir que ele continue agredindo a vítima (preventiva) e chegue ao feminicídio. Outro paradigma a desconstruir.

Ementa – HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. AMEAÇA COM ARMA BRANCA. PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PREVENTIVA. GRAVIDADE CONCRETA DAS CONDUTAS. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. MODUS OPERANDI. ASSEGURAMENTO DA SEGURANÇA FÍSICA E PSÍQUICA DA VÍTIMA. RISCO CONCRETO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PREDICADOS PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS. INSUFICIÊNCIA (STJ – HC 389.022/RJ – 6ª Turma – relator min. Antonio Saldanha Palheiro – j. 4/4/2017).

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