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Método que humaniza depoimento de criança na Justiça vira lei federal

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14 de maio de 2017, 18h00

Em meados de 2003, uma garota de sete anos contou em detalhes, na Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre, os abusos sexuais que sofreu dentro de sua própria casa. Quase 14 anos depois, o método de depoimento que levou à condenação do padastro, passou a contar com regulamentação e garantia legal.

Aquela foi uma das primeiras vezes no país em que a escuta da criança era feita por meio de depoimento especial, uma técnica humanizada para oitiva de menores vítimas de violência e abuso sexual. Agora, a técnica virou obrigatória com a Lei 13.431/2017.

O depoimento especial (nomeado anteriormente “depoimento sem dano”), consiste na aplicação de uma metodologia diferenciada de escuta de crianças e adolescentes na Justiça, em um ambiente reservado e que seja mais adequado ao universo infantil. Na prática, servidores da Justiça são capacitados para conversar com crianças em um ambiente lúdico, procurando ganhar a sua confiança e não interromper a sua narrativa, permitindo o chamado relato livre.

A conversa é gravada e assistida ao vivo na sala de audiência pelo juiz e demais partes do processo, como procuradores e advogados da defesa, por exemplo. A criança tem ciência de que está sendo gravada, informação que é transmitida de acordo com a sua capacidade de compreensão.

O juiz transmite por ponto eletrônico ou telefone as perguntas para o técnico que está com a criança, que as transforma em uma linguagem acessível. A técnica evita que perguntas impertinentes e que causem sofrimento, já que o magistrado tem a possibilidade de “filtrar” o que será perguntado e indeferir questões que não considerar pertinentes.

Relato único
A criança é ouvida apenas uma vez e na presença apenas do técnico, sendo que o testemunho serve como prova antecipada em todo o processo. Até então, ela tinha que dar o depoimento cerca de sete vezes em órgãos como delegacias de polícia, Conselho Tutelar, no Ministério Público, além da audiência na vara de Justiça, na qual pelo menos quatro pessoas estavam presentes.

Hoje desembargador do TJ-RS, José Antônio Daltoé Cezar era juiz quando foi colhido o primeiro depoimento. Ele afirma que apesar de ser mais adequado, muitos julgadores ainda têm resistência ao depoimento especial por se tratar de um procedimento mais longo. “Querer que uma menina de seis, sete anos, fale igual a um adulto é um absurdo, natural que o depoimento demore mais”, diz.

A técnica que começou em Porto Alegre foi inspirada em um modelo pioneiro da Inglaterra, em que a conversa com as crianças é feita pela polícia. Antes de chegar ao Brasil, já estava presente em países como Espanha, Argentina, Chile e Estados Unidos — onde a entrevista é feita por organizações não governamentais.

Inocência ferida
De acordo com a juíza Karla Jeane Matos de Carvalho, da Vara de Infância de Coelho Neto (MA), antes da criação das salas de depoimento especial era muito comum que crianças pequenas tivessem de responder a perguntas feitas, durante a audiência, por advogados de defesa, como: “você tentou seduzi-lo? Você teve prazer na relação? Que roupa você estava usando?”

Para a juíza Karla, o depoimento especial valoriza a fala da criança, que muitas vezes é a única prova de um processo, e é dada em um contexto complexo que difere dos demais crimes. “O abuso geralmente é cometido por longo tempo, por pessoas próximas e da confiança da criança, com quem ela tem uma relação de afeto. Sabemos que alguns não vão conseguir relatar durante toda a vida”, diz Karla.

O método do depoimento especial começou a ser aplicado no Maranhão em 2010, e atualmente cerca de 30 das 112 comarcas contam com as salas de depoimento especial.

De acordo com a juíza Karla, antes disso, era frequente crianças entrarem chorando muito na audiência, após ficar frente a frente com o suposto abusador, e os juízes ficavam sem saber se adiavam o julgamento, ou se começavam mesmo assim. Sem ter muita alternativa, por vezes os juízes acabavam pedindo para que homens se retirassem da sala no caso da oitiva de meninas, relata.

Segundo ela, que ministra aulas sobre a técnica, embora a maioria dos casos confirme o abuso, por vezes acontece de a técnica utilizada no depoimento especial permitir que se percebam acusações falsas. “Isso aconteceu, por exemplo, no depoimento de uma criança que inocentou um pai que era, na verdade, vítima de boatos da população local”, conta.

Crescimento no país
O depoimento especial vem sendo adotado com base na Recomendação 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça. Também é matéria exigida pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) para o vitaliciamento de juízes, que ocorre dois anos após ingressarem na magistratura por meio de concurso público.

Segundo dados preliminares do CNJ em julho de 2016, ao menos 23 tribunais de Justiça (85%) contam com espaços adaptados para entrevistas reservadas com as crianças (as chamadas salas de depoimento especial), cuja conversa é transmitida ao vivo para a sala de audiência.

Em 2004, um ano após ter sido introduzida no país, mais dez comarcas do Rio Grande do Sul ganharam salas de audiência e, atualmente, 42 varas contam com o espaço. Até o fim do ano serão 70 das 164 comarcas do estado.

Somente no Distrito Federal foram atendidos, ano passado, 691 menores em situação de violência sexual pela Secretaria Psicossocial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, responsável por fazer o depoimento especial das crianças. No DF, 16 fóruns contam com salas de depoimento especial e até oito entrevistas são feitas por dia.

Supervisora do serviço de assessoramento aos juízos criminais do TJ-DF, Raquel Guimarães diz ser importante que o profissional que conduza o depoimento especial crie um vínculo de confiança com a criança e consiga deixar claro que ela não está sendo avaliada.

Para ela, um caso que marcou muito foi o depoimento de um menino de nove anos que narrou o abuso de sua irmã mais nova por parte do padrasto. “Ele tinha muita dificuldade de falar e tivemos de ter muita sensibilidade para ele conseguir expressar o que tinha visto”, conta. Com informações da Assessoria de Imprensa do CNJ.

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