Opinião

Gostem ou não, estado de liberdade é a regra e a prisão preventiva a exceção

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5 de maio de 2017, 6h15

Se a história das penas é uma história dos horrores, a história dos julgamentos é uma história de erros; e não só de erros, mas também de sofrimentos e abusos, todas as vezes que no processo se fez uso de medidas instrutórias diretamente aflitivas, da tortura até o moderno abuso da prisão preventiva. (Luigi Ferrajoli)

Em síntese existem duas modalidades de prisão: i) a prisão-pena que decorre de condenação definitiva (transitada em julgado) e ii) a prisão provisória: prisão cautelar de natureza processual. A prisão preventiva, a prisão em flagrante e a prisão temporária são espécies de prisão provisória de natureza cautelar e processual.

Como se trata de prisão sem pena e, portanto, sem que tenha sido o agente condenado por sentença definitiva, a prisão provisória, seja ela preventiva ou de qualquer outra modalidade, deve sempre ser evitada e, tão somente, decretada ou mantida em casos de extrema necessidade posto que, como já dito, ainda não foi o acusado condenado em definitivo. Não se pode negar que enquanto houver recurso à sentença poderá ser modificada. Inúmeros são os casos de réus condenados em primeira instância serem absolvidos em segunda instância ou mesmo pelos tribunais superiores. Por tanto, a conservação da liberdade deveria e deve prevalecer até a transitada em julgado.

Não se pode olvidar que o duplo grau de jurisdição que possibilita e assegura o reexame da matéria e das decisões por um órgão ou um tribunal superior constitui um princípio e uma garantia processual mínima prevista, inclusive, na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Gostem ou não, está assentado que no sistema processual pátrio o status libertaris (estado de liberdade) é a regra e a prisão provisória a exceção. Nunca é demais lembrar que a Constituição da República (CR) abriga — ainda que mitigado pelo Supremo Tribunal Federal — o princípio da presunção de inocência segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII).

Em seu instigante e indispensável “Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos”, Alexandre Morais da Rosa a partir da teoria dos jogos assevera que “as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou tática de aniquilamento (simbólico e real, dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão cautelar. A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra como ‘tática de aniquilação’, uma vez que os movimentos da defesa vinculados à soltura”. [1]

É óbvio -— Nelson Rodrigues diria óbvio ululante — que a prisão provisória e, claro, a preventiva, tem como uma das características a provisoriedade. Sendo assim, por certo, não pode a prisão cautelar perdurar por tempo indeterminado ou ad infinitum. Provisório é interino, temporário, passageiro, transitório, o contrário de definitivo. Nada, absolutamente nada, justifica que um acusado, ainda que condenado por um juiz de piso permaneça preso preventivamente por meses e até anos aguardando o julgamento em definitivo. Neste sentido já decidiu o STF:

"HABEAS CORPUS" – DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR – PRISÃO CAUTELAR QUE SE PROLONGA DE MODO IRRAZOÁVEL – INADMISSIBILIDADE – EXCESSO DE PRAZO IMPUTÁVEL AO PODER PÚBLICO – VIOLAÇÃO À GARANTIA CONSTITUCIONAL DO "DUE PROCESS OF LAW" – DIREITO QUE ASSISTE AO RÉU DE SER JULGADO DENTRO DE PRAZO ADEQUADO E RAZOÁVEL – PEDIDO DEFERIDO. EXCEPCIONALIDADE DA PRISÃO CAUTELAR. – A prisão cautelar – que tem função exclusivamente instrumental – não pode converter-se em forma antecipada de punição penal. A privação cautelar da liberdade – que constitui providência qualificada pela nota da excepcionalidade – somente se justifica em hipóteses estritas, não podendo efetivar-se, legitimamente, quando ausente qualquer dos fundamentos legais necessários à sua decretação pelo Poder Judiciário. O JULGAMENTO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS CONSTITUI PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. – O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do "due process of law". O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. – O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional.  (HC 83773 / SP – Rel. Min. CELSO DE MELLO. DJ 06-11-2006)

Ressalte-se que, embora a lei processual não fixe um prazo determinado de duração da prisão preventiva, como fez com a prisão temporária, por exemplo, “há que se observado o prazo previsto a pratica dos atos processuais referentes ao réu preso, estabelecidos legalmente para cada situação processual”. [2]

Não sendo despiciendo lembrar que a garantia da razoável duração do processo já vinha previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos em seu artigo 8.1., a qual foi subscrita pelo Brasil.

Note-se que, desde meados de 2011 vigora no ordenamento jurídico processual penal a Lei 12.403/11, que trata da prisão preventiva e de outras cautelares penais. Com a vigência da referida lei o setuagenário Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941) passou a admitir o uso de outras medidas — proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, proibição  de manter contato com pessoa determinada, prisão domiciliar, suspensão do exercício da função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, monitoração eletrônica etc. — bem menos traumáticas e agressivas que a prisão preventiva.

A prisão preventiva que pode ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, continua prevista em lei, mas deixou de ser a única medida da qual dispõe o magistrado para assegurara a ordem do processo. Agora, mais do que antes, entende-se que a prisão preventiva somente poderá ser decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, passando a ser a extrema e ultima ratio entre as medidas cautelares. [3]

Quando a prisão preventiva — medida amarga, hostil e extrema — se converte em antecipação da tutela penal, em instrumento de investigação ou em moeda de troca para obtenção de delações, o processo penal deixa de ser democrático, se distancia do Estado de direito e se aproxima cada vez mais dos processos autoritários e de exceção, próprios dos regimes fascistas.


[1] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria do jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[2] GIACOMOLLI, Nereu José. Prisão, liberdade e as cautelares alternativas ao cárcere. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

[3] BARROS, Flaviane de Magalhães e MACHADO, Felipe Amorim. Prisão e medidas cautelares: nova reforma do processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.

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