Limite Penal

O jogo de cena da delação com pena pré-fixada

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

5 de maio de 2017, 8h15

Spacca
A fixação de teto de pena nos casos de colaboração premiada, embora em desconformidade com a Lei 12.850/13 (artigo 4º), foi um movimento interessante dos primeiros negociadores para se evitar a incerteza da aplicação da pena, capaz de garantir o êxito dos termos da delação realizada[1]. Larga-se com o máximo da pena futura previamente definida.

A compra de informações em troca da redução da pena, caso dependesse de reduções previstas no artigo 4º da Lei 12.850/13, nos patamares de até dois terços, redundaria na incerteza do quantum final. Poderia o julgador aplicar uma pena base alta (CP, artigo 59), aumentar a reprimenda na segunda fase e, assim, gerar insegurança sobre a pena total final. A ideia foi a de promover uma leitura diferenciada do texto legal, estabelecendo-se, desde o início do processo penal, a pena certa. Isso significou que o colaborador pode avaliar com maior segurança o preço de sua colaboração e, com a certeza da pena, facilitar a adoção de postura cooperativa.

Do ponto de vista econômico, fez-se com que, com o preço pré-negociado, o processo se transformasse em performático, já que o colaborador se defende sem se defender, afinal de contas, tanto acusação quanto defesa têm interesses convergentes: ambos querem a condenação. Isso porque a condenação gera segurança para o acusador em face do dever de cooperação, e, também, o acusado/cooperador reduz os riscos de uma condenação maior. No fundo, é o plea bargaining com etiqueta de condenação judicial. Retira-se a função do processo[2], que seria o acertamento do caso penal, dado o pressuposto interesse de convergência condenatória. É uma nova perspectiva do processo penal, que deixa de ser um "caminho necessário para se chegar a uma pena ou não pena" (Princípio da Necessidade), e passa a admitir pena sem processo. Mais do que isso, é um processo que já nasce com a sentença condenatória definida a priori, antes da "experiência probatória". Deixa de existir o tradicional confronto entre acusação e defesa, para haver um alinhamento de objetivos.

No caso das delações da Odebrecht in limine, sem investigações formalizadas, diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, resta saber qual a função dos futuros processos a se instaurar. De fato, teremos processos ou meros jogos de cena em que todos querem a condenação?

Com as cláusulas previamente negociadas e homologadas antes do processo, houve a transmutação do que se pretende no processo penal. Trata-se de outro objeto, não mais vinculado às teorias de processo que conhecemos e estudamos. Comprador e vendedor de informações podem se garantir sobre os efeitos da sentença que serve de condição à validade e aos efeitos do acordo de delação. Por um lado, reduz-se os riscos de alterações futuras dos depoimentos do delator em processos paralelos contra terceiros e protege o colaborador de uma pena inesperada.

No entanto, é interessante como a delação/colaboração reduz o fator risco para acusação e defesa-delatora, mas potencializa o risco para os delatados, corréus que agora terão uma variável probatória da maior relevância: o "fogo-amigo" do delator. Não seria exagero afirmar que existem dois processos diferentes (com finalidade e objetivos distintos), tramitando de forma unificada, simultânea: um processo do delator, e outro em relação aos delatados. Em relação ao primeiro, tudo já está previamente definido, inclusive a condenação e a pena, reduzindo a incerteza característica do processo ao mínimo (talvez o único risco remanescente seja o de um eventual descumprimento do acordo); em relação ao segundo grupo (delatados), a incerteza característica do processo é potencializada pelos elementos que poderão surgir com a delação e, principalmente, com o real valor probatório que será a ela atribuído. Ainda que teoricamente se diga que a delação é um meio de prova, e não uma prova, na realidade do processo penal atual, infelizmente a dimensão é outra: estão condenando com base na delação e fazendo apenas uma "maquiagem" argumentativa para legitimar a decisão com outros elementos.

Logo, buscar compreender os novos desafios do processo penal no império da delação premiada precisa, definitivamente, tirar o véu do que se faz, quem sabe abolindo-se com o custo de um processo penal que não serve para comprovação da culpa, mas, sim, de mero procedimento para condenação consensual, com o diferencial de que todos querem o mesmo resultado. Inexiste processo. Ao final, com a condenação, enfim, o acusado/delator respira aliviado, via trânsito em julgado.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, especialmente o capítulo 17.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2017.

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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