Senso Incomum

Todos os brasileiros pais de gêmeos ganharão 180 dias de licença?

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4 de maio de 2017, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Subtema: Com o dinheiro da Viúva é sempre fácil proferir decisões fofas

Há coisas que são difíceis de discutir. Ninguém é contra coisas fofas. Dúcteis. Você é contra a tese de que os pais tenham tempo a cuidar de seus filhos? Quem seria contra?

É o caso da decisão do juizado especial de Santa Catarina, confirmada pela Turma Recursal, concedendo 180 dias de licença paternidade ao pai de gêmeos (ler aqui). Sem qualquer previsão legal ou constitucional, o judiciário fez uma coisa da moda: ativismo. Decisão behaviorista. Fabricou direito novo. Como se legislador fosse, só que sem previsão orçamentária. Welfare state a golpe de caneta. Fê-lo, é claro, porque concedeu o direito que deverá ser pago pelo erário, como se este fosse uma ilha autossustentável.

Não, este texto não é consequencialista. Apenas é um texto que se apega à Constituição. Baseado nos princípios da legalidade, da isonomia, igualdade e da república. A decisão não para em pé. Basta que se faça esta pergunta: qualquer pai de múltiplos morador de Pindorama tem o mesmo direito de ir à justiça exigir esse beneficio? Qualquer trabalhador pode entrar em juízo para exigir o mesmo tratamento? O operário pode ingressar com ação obrigando o patrão a lhe conceder 180 dias de licença paternidade?

Se a resposta for não, a decisão deve ser reformada. Imediatamente. Posso até fazer, ademais, uma pergunta minimamente consequencialista: por qual motivo as demais pessoas que são pais de múltiplos têm de transferir recursos para fazer a felicidade da família beneficiada pela decisão de Santa Catarina?

É como um cidadão que professa determinada religião e exige que, no sábado, o trânsito de sua rua seja fechado, porque precisa descansar. Ou um aluno que vai a juízo exigindo que a universidade lhe faça um curriculum à parte, porque, em razão de sua objeção de consciência, não consegue lidar com sangue. E ele quer cursar medicina. Como se cursar medicina fosse um direito fundamental. E como se os que não cursam ou os que não professam determinada religião tivessem que transferir recursos para bancar a felicidade desses cidadãos. E assim por diante. Em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica explico isso em detalhes.

Interessante é que a decisão foi dada em nome da “equidade”. Minha pergunta: o que é isto — a equidade? Ora, equidade é a adaptação do direito a um caso concreto, mas quando não há regra. Ou para criar igualdade. No caso, em que caberia a equidade? Como invocar a equidade? A decisão também alude a “fins sociais e exigência do bem comum”? De quem? Só daquela família. E as outras famílias?

Tudo também em nome da “interpretação mais justa”. Com certeza a Turma Recursal e o juiz da Juizado tem um justômetro. E especial. Afinal, chama-se Juizado Especial. Minha pergunta: quem decide o quanto queremos pagar pelos direitos de todos?

Desculpem-me a chatice epistêmica. Todo tempo tenho de escrever coisas antipáticas. Mas o Judiciário deveria ter mais cuidado ao decidir. Dizer “não” também pode ser uma decisão correta. Não dá para conceder metade da herança para a amante com base na afetividade, como decidiu um tribunal da federação. Também não dá para conceder um ou dois meses a mais de auxilio maternidade para a mãe na hipótese de mais filhos. E nem ao pai. A menos que isso tudo possa ser concedido a qualquer mãe ou pai e não apenas a uma mãe ou a um pai funcionários públicos. Quem paga os impostos são as mães que não tem esse direito. Como quem paga os impostos que sustentarão os seis meses do pais dos gêmeos também são os outros pais de múltiplos que não são funcionários públicos.

Decisão não pode ser invenção. Decisão não pode ser escolha discricionária. Nem arbitrária. Mas, por que isso é assim? Porque muitas dessas decisões não recebem o necessário constrangimento epistêmico. E muitas decisões são confirmadas por tribunais. Claro: o juiz se sente autorizado a fazer o mesmo. E assim por diante.

Por que é tão difícil entender isso? A autoridade para decidir não decorre apenas da investidura dos juízes em seus cargos, mas sim dos argumentos de princípio que estes utilizam para justificar o uso da coerção pública. Quando o juiz expede uma ordem, em nome do Estado, esta ordem é resultado de um processo devido, sem protagonistas, sem buracos negros de legitimidade (a minha consciência, a minha íntima convicção ou coisas desse jaez).

A pergunta é: por que isso é assim? No caso especifico da licença paternidade, exsurgem mais duas coisas: uma — essa decisão dá razão a quem quer fazer reforma trabalhista (em suma, é um tiro no pé e dá munição a quem quer reduzir os direitos); dois — se fossem trigêmeos seriam 12 meses?

Mais ainda, tudo se torna ainda mais problemático porque proveniente do âmbito dos juizados especiais, cujas decisões são imunes a recurso especial e ação rescisória. Poder-se-ia cogitar do ajuizamento de reclamação para dirimir-se divergência entre o acórdão prolatado pela turma recursal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça; porém, essa modalidade de reclamação não se funda em lei, mas na Resolução STJ 3/2016, que faz vista grossa ao § 1º do artigo 125 da CF-1988 e, à margem das Constituições dos Estados, atribui a competência para julgá-las às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça. Ou seja, ter-se-ia de utilizar uma inconstitucionalidade criada pelo STJ para debelar uma ilegalidade cometida pela turma recursal. Fantástico, não? Uma autêntica aporia. Um dilema sem saída.

Venho denunciando esse tipo de ativismo há anos. O judiciário e o MP estão esticando a corda ao limite. Depois não nos queixemos. Julgamentos devem ser imparciais. Não se pode querer ser heroe (remeto o leitor ao texto que escrevi sobre o novo livro de Cass Sunstein – aqui). Decisões como essa sofreriam seríssimas consequências na Europa, bastando ver o que diz a Lei Alemã dos Juízes e o próprio Código Penal de lá  (ler também material sobre isso aqui) ou as leis de outro países europeus.

De todo modo, penso — depois de tantas colunas que aqui já publiquei denunciando ativismos desse tipo — , que muito mais não é preciso dizer. Mas alguém tem de fazê-lo. Por mais antipático que isso possa parecer. Simples assim.

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