Opinião

Atuação do advogado criminal ainda é incompreendida e vista como "embaraço"

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28 de junho de 2017, 6h10

Nos últimos três anos, não há assunto mais comentado pela opinião pública (e publicada) do que as nuances, reflexos e detalhes das recentes megaoperações policiais, sendo a denominada operação "lava jato" — alçada à quase verdadeira instituição com personalidade jurídica própria —, o maior exemplo. Atos próprios do processo penal como prisões, (ilegais) conduções coercitivas e até interrogatórios, são televisionados como se capítulos de novela fossem.

Canais de televisão, periódicos e sites pretensamente políticos contam com comentaristas diários que, destituídos de qualquer formação jurídica, funcionam como verdadeira caixa de ressonância de suas fontes, quase sempre “investigadores da 'lava jato'” sob condição de anonimato, especulando a todo o momento “quem irá delatar”, e que para a maioria dos acusados “a única saída é a delação” diante de uma pretensa robustez probatória produzida em seu desfavor.

Nesse sentido, qualquer paralelo com a prática penal nos anos de chumbo não é mera coincidência. À respeito do tema, nunca é demais rememorar Heleno Fragoso que, em seu icônico “Advocacia da Liberdade”, destacava que nos processos penais da ditadura militar “havia sempre extensa e minuciosa confissão de todos os acusados. Todos confessavam, sem exceção”.

É nessa esteira que, nos dias de hoje, se vê a glorificação dos instrumentos da Lei 12.850/2013, que trata do crime de organização criminosa e seus meios de obtenção de prova, sendo o mais destacado a famigerada delação premiada.

A profusão e uso indiscriminado do instituto da delação vem causando graves distorções no sistema processual penal pretensamente de base constitucional, merecendo relevo a anomalia de certos processos criminais “sem réus”, nos quais figuram somente delatores, bem como o especial destaque a que se atribui à prova fruto dessas delações, não sendo raro o fenômeno da corroboração cruzada (delações tão-somente corroboradas por outras delações).

Tal cenário gera um processo penal “viciado”, totalmente dependente das informações de delatores, muitas vezes obtidas em decorrência das alongadas prisões cautelares que agora, após diversos obstáculos, são escrutinadas pelo Supremo Tribunal Federal (não antes sem o indevido patrulhamento sempre que o Pretório Excelso está a exercer sua função contramajoritária).

Nesse contexto, e em especial para os propósitos do presente, é que surge a reflexão acerca do papel do advogado em processos que tratam de acusação de organização criminosa. No artigo 4º da referida lei há descrição minuciosa do procedimento da delação, prevendo a participação do defensor como elemento indispensável para a validação e legitimidade do acordo, como decorrência do seu papel indispensável à administração da justiça, conforme artigo 133, da Constituição Federal e artigo 2º, da Lei 8.906/94.

Tendo isso presente, não é infrequente notícias de certa divisão de profissionais: de um lado, os de postura colaborativa, que atuam em delações, intitulando-se como uma espécie de advocacia pós-moderna; de outro, os que não atuam. Também não se afigura incomum despertar o interesse da mídia quando determinado acusado nesses maxi processos constitui novo advogado para sua defesa, especialmente quando o novo defensor é alcunhado como “especialista em delação”.

Inobstante, muitas críticas se colocam em relação ao papel rotineiramente passivo reservado à defesa nesse tipo de procedimento, sendo o advogado colocado, por vezes, como mero espectador do referido ato, dotado de pouca voz ativa na (pseudo)negociação. Nas palavras de renomado causídico brasileiro à frente de notória delação em massa de inúmeros executivos de determinada empresa, tal ato mais se assemelha a uma rendição do que efetivamente um acordo livre de vontades firmado por partes supostamente isonômicas.

Por outro lado, aos advogados que não optam (ou não se curvam) a essa “única saída” (ou a essa rendição), entendendo que há efetiva defesa a ser desempenhada em favor de seu constituinte, oferecendo resistência legal à pretensão punitiva estatal, não pode ser imposta qualquer pecha ou diferenciação de tratamento pelos entes da persecução penal, especialmente no que pertine classificar seus atos pura e simplesmente de possível embaraço à investigação criminal (que constitui inclusive crime, conforme artigo 2º, §1º, da Lei 12.850/2013).

Infelizmente, vem-se percebendo um crescente ambiente hostil à atuação do advogado criminal em processos que envolvam suposta organização criminosa (que, atualmente, tornou-se cada vez mais frequente a todo tipo de acusado em megaoperações policiais). Essa tendência representa um total desrespeito ao princípio constitucional da ampla defesa, do devido processo legal, configurando absoluta incompreensão do papel do advogado, especialmente na seara penal.

É antiga a lição de Rui Barbosa — recentemente invocado por alguns magistrados para criticar o projeto de lei de abuso de autoridade, no que se refere ao “crime de hermenêutica” —, em seu memorável “O Dever do Advogado”, que “a defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais”.

E essa voz pode (e deve) se levantar tanto na resistência ao mérito das imputações e/ou às suspeitas lançadas, às prisões decretadas sem fundamentação legal — que buscam servir como antecipação de pena —, à possível ausência de imparcialidade do julgador, como na arguição, sempre que possível, de questões preliminares processuais de relevância no interesse de seu cliente (defesas indiretas), independentemente das eventuais dificuldades e obstáculos que se apresentem.

Tal mister defensivo se projeta, inclusive, na preparação e coleta de provas, documentais ou testemunhais, ou até mesmo em eventual estabelecimento de estratégias ou linhas defensivas convergentes com eventuais advogados de corréus, contando os profissionais com a guarida da prerrogativa da inviolabilidade de seus atos, sempre observando-se os limites do Estatuto da Advocacia e do Código de Ética e Disciplina da OAB (conforme artigo 2º, §3º e artigo 31, caput, da Lei 8.906/94).

Sobre o tema, o próprio Supremo Tribunal Federal assentou que “compreende-se no direito de defesa estabelecerem os corréus estratégias de defesa” (cf. STF, HC 86.864, j. em 20.10.2005). E o fato de futuramente o cliente se tornar possível delator, não tem o condão de invalidar, e muito menos criminalizar, a conduta do advogado que, à época, buscava tão-somente a melhor defesa legal, seja negando o mérito das acusações, seja pela busca de questões processuais que invalidariam determinada investigação.

A reivindicação, no julgamento dos acusados de crime, da lealdade às garantias legais, a equidade, a imparcialidade e a humanidade, é, nas palavras de Rui Barbosa, a exigência mais ingrata da vocação do advogado, sendo que “nem todos para ela têm a precisa coragem”. Positivando tal noção, é claro o Estatuto da Advocacia: “Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão” (artigo 31, §2º, da Lei 8.906/94).

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