Observatório Constitucional

Substantivo feminino, Constituição significa mulheres no poder

Autor

  • Christine Oliveira Peter da Silva

    é mestre e doutora em Direito Estado e Constituição pela UnB professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

24 de junho de 2017, 8h00

A minha contribuição deste semestre para esta prestigiosa coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional é uma reflexão sobre a tardia, porém urgente, necessidade de se problematizar a manifesta ausência da opinião das mulheres acerca dos desafios constitucionais enfrentados pelo Brasil, em geral, e pelo Supremo Tribunal Federal, em particular.

O título, que buscou invocar estética[1] e semiótica[2], é uma provocação que busca chamar a atenção para o que há de feminino na Constituição e no constitucionalismo contemporâneo, mas também para o que nunca foi dito nem percebido pelas mulheres sobre a Constituição, sobre suas normas e sua concretização.

As questões que daí emergem não são óbvias, tampouco triviais. De imediato, pode-se questionar: por que as mulheres devem opinar sobre os problemas constitucionais brasileiros? E, na verdade, se querem opinar, o que as impede de fazê-lo? Ainda: por que só agora as mulheres, que sempre estiveram aí, estudando nas mesmas instituições que os homens; concorrendo para as mesmas vagas que os homens; produzindo riquezas e intelectualidades livremente como os homens; recebendo, no serviço público, os mesmos salários que os homens; sendo aprovadas nos concursos meritocráticos em percentuais até maiores que os homens; ainda estão reivindicando?

A resposta, entretanto, é única, retumbante e direta: está-se a reivindicar igualdade, pois, decididamente, não há igualdade entre mulheres e homens no Brasil. E não há igualdade porque as mulheres não são consideradas, reconhecidas, nem ouvidas; porque as mulheres não se fazem presentes nos debates republicanos nos altos escalões de poder; as mulheres não participam do processo de elaboração das leis as quais devem cumprir; as mulheres não ocupam, na democracia, os lugares que lhe são próprios no ambiente parlamentar; as mulheres não são indicadas aos cargos públicos de maior prestígio; as mulheres ainda são, verbal e fisicamente, violentadas em todos os ambientes da sociedade, inclusive os espaços públicos institucionais; as mulheres brasileiras precisam invocar a Lei Maria da Penha para serem respeitadas no ambiente familiar; as mulheres, enfim, têm que ser muito mais eficientes, mais competentes, mais perfeccionistas e mais cumpridoras das regras criadas pelos homens para receber os mesmos direitos ou benefícios recebidos pelos seus pares do sexo masculino.

Não posso deixar de lembrar a todas e todos que a agenda feminista brasileira foi apenas muito recentemente aberta; e, na minha opinião, foi aberta, mas sequer começou a ser folheada. Se no plano da teoria feminista comparada já estamos na terceira onda do feminismo[3], é neste ponto, pulando as demais fases, que peço licença para integrar o debate aqui no Brasil, pois quero vivenciá-lo exatamente no quadrante que postula a busca pelo direito efetivo de falar e ser ouvida nos ambientes em que habito; de querer escutar outras mulheres com quem convivo, de interessar-me pela opinião das mulheres que me inspiram, especialmente daquelas que percebem e sentem o mundo nas cores e nos tons femininos, embaladas, ou não, pela bandeira da luta feminista, a qual incansavelmente buscará, até a conquista, igual respeito e consideração entre seres humanos, independentemente das classificações de gênero[4].

Se, no início, a luta era pelo voto feminino, depois pelas iguais condições no mercado de trabalho, desembocando na autodeterminação feminina como meta, hoje a luta é pela máxima efetividade do direito de pensar e ser feminina em todos os ambientes da sociedade, inclusive, e principalmente, na cúpula do poder, onde as decisões de grande repercussão social são tomadas e onde as mulheres ainda são praticamente invisíveis.

Daí porque, apesar de escrever, conscientemente, em primeira pessoa e na condição de constitucionalista de uma segunda geração[5] de mulheres brasileiras que pensam e trabalham o Direito Constitucional de forma séria, a partir de uma perspectiva feminina, aqui pretendo expor alguns fundamentos de uma teoria constitucional informada pelo conceito de Constituição como um substantivo feminino. Antes disso, entretanto, gostaria de apresentar uma metodologia que considero pressuposto para tal empreitada: a hermenêutica constitucional feminina[6].

Hermenêutica é uma expressão que designa o cuidado que o sujeito tem consigo mesmo a ponto de compreender o mundo a partir da consciência e respeito com o eu em si[7]. Assim, a hermenêutica constitucional feminina pressupõe que cada mulher possa expressar-se como ser humano dotado de direitos e deveres fundamentais a partir de seus próprios e indissociáveis lugares de fala. A mulher da luta, feminista em sua essência, e a mulher da lida, feminista por excelência, também reivindicam seu direito de serem femininas.

E todas, como mulheres no feminino[8], querem livremente falar e serem ouvidas e respeitadas como cidadãs, como pessoas dotadas de todas as prerrogativas e autonomias necessárias para serem tratadas com igual consideração em todos os ambientes, públicos e privados, da sociedade.

E, neste ponto do trabalho, a expressão feminista cederá lugar à expressão feminina, não por qualquer preconceito, mas porque o meu lugar de fala é o único que eu posso legitimamente ocupar[9]. Sou uma mulher feminina cisgênero, que, sendo também feminista, quer a licença da irmandade para falar de um lugar mais restrito, mas que considero não menos importante.

Não há referências teóricas brasileiras sobre os métodos femininos de compreender, sistematizar e criticar o constitucionalismo e os problemas constitucionais. As mulheres não são referências acadêmicas para o Direito Constitucional. E escrevo o presente artigo para denunciar e confrontar as vozes contrárias a esta injusta omissão e anunciar as possibilidades de se construir, a partir de alguns aportes do feminismo cultural, caminhos a serem trilhados com esse objetivo.

O feminismo cultural[10] indica uma ideologia da natureza ou essência feminina a qual busca deslocar a luta feminista para além dos ambientes estritamente politizados, ressaltando aspectos do feminino como alternativas para a vida em sociedade. É uma corrente de pensamento, desenvolvida a partir de meados da década de 1970, que preconiza o lado emocional e intuitivo das mulheres como trunfos para a identificação e expressão do feminino em todos os ambientes habitados pelas mulheres, sejam eles públicos ou privados.

A ideia do coletivo feminino e dos valores do feminino são apresentados como vias legítimas para as vivências na estrutura política e social. O feminismo cultural aponta a ética do cuidado, dos afetos e da fraternidade como alternativas aos paradigmas da competitividade, agressividade e individualismo. Nesse contexto, proponho um desafio para todas as mulheres que atuam, mediata ou imediatamente, no cenário político-constitucional brasileiro: a de que passem a direcionar seus olhares, naturalmente vertidos à ética masculina, para a ética feminina.

E, a partir desse redirecionamento, comecem a compartilhar, em seus círculos de atuação pessoal, social e política, as suas próprias experiências femininas como sujeitos e protagonistas das suas próprias experiências constitucionais. Assim, para dar início ao que eu espero seja um ciclo virtuoso, aceito tal desafio, e do meu lugar de professora e pesquisadora constitucionalista compartilho com a comunidade jurídica as reflexões que seguem acerca de temas atuais que estão a desafiar o constitucionalismo brasileiro, a partir de uma perspectiva da hermenêutica constitucional feminina.

A Constituição, vista sob a perspectiva da hermenêutica constitucional feminina, é um texto normativo complexo, plural e aberto, o qual, apesar de não guardar racionalidade cartesiana estrita, em seu conjunto, apresenta-se como um todo sistematicamente coordenado para permitir convivência e acomodações necessárias para a harmonia entre suas partes contraditórias.

Daí porque, na ética feminina, a complexidade, a pluralidade e a abertura do texto constitucional não são desafios indesejáveis, nem intransponíveis, mas, sim, elementos naturais de um corpo que só se revela, sempre provisória e parcialmente, quando concretizado em suas múltiplas dimensões.

A República, analisada sob a perspectiva feminina, é um atributo da organização política sustentado por três pilares fundamentais: efemeridade, aleatoriedade e responsabilidade. O devir é a regra histórica mais óbvia, de modo que o exercício do poder não pode contrariar essa expectativa tão natural, quanto desejável, em uma sociedade culturalmente republicana. A igualdade de chances impõe o alcance da lógica da aleatoriedade, pois não pode haver pré-concepções nem pré-compreensões nas escolhas republicanas. Por fim, a regra de causas e efeitos impõe que para toda ação republicana esteja prevista uma reação igual e proporcional, o que, na teoria constitucional, ganhou a alcunha de responsabilidade.

Por federação, na visão da hermenêutica constitucional feminina, entenda-se o pacto firmado com alicerce na cooperação para o enfrentamento dos desafios comuns. Não é possível conceber o federalismo sem o compartilhamento, sempre tenso e conflituoso, de poder. Porém, também não há fórmula mais adequada para enfrentar os problemas do federalismo do que a partilha cooperativa — concorrente, subsidiária ou solidária, de competências, deveres e obrigações constitucionalmente destinadas.

Também a corte constitucional, como uma instituição no feminino, é a pessoa jurídica do Estado constitucional, que reúne, no rol de suas competências, atribuições para resolver, sempre de forma definitiva, porém provisória, as contradições constitucionais, bem como para harmonizar paradoxos gerados pelas naturais tensões entre normas constitucionais construídas por diversos atores sociais. Registro, como observação da pesquisa constitucional que venho desenvolvendo, que, apesar de as cortes constitucionais terem sido concebidas para serem o último degrau de uma escada vertical, acabaram por revelarem-se, ao longo do último século, como verdadeiros pódios, ou seja, estruturas de meritocracia política em que o último degrau do sentido ascendente é também o primeiro degrau do sentido descendente.

Os problemas constitucionais brasileiros que surgem a partir de reformas constitucionais — nas searas eleitoral, tributária, trabalhista ou previdenciária —; enfrentando os temas do foro por prerrogativa de função; estabelecimento de teto para os gastos públicos; procedimentos para sucessão no caso de vaga para o cargo de presidente da República, dentre outros, são apenas alguns exemplos de assuntos os quais merecem opiniões das mulheres que vivem e pensam a Constituição e o Brasil em igualdade de condições dos homens.

É, portanto, com vocês, mulheres eleitoralistas, mulheres tributaristas, mulheres juslaboralistas, mulheres previdenciaristas e todas as outras, que nós, mulheres constitucionalistas, contamos para povoar fraternalmente os espaços institucionais de poder que nos são próprios, sejam eles nos ambientes públicos ou privados. Três vetores hermenêuticos já estão disponíveis para serem testados por nós nesse contexto: a) a dialogicidade constitucional; b) as dependências recíprocas constitucionais; c) a sustentabilidade constitucional.

A ideia de dialogicidade constitucional é a que já está mais avançada, permeando, principalmente, os debates sobre a construção de consensos constitucionais — consensos esses que são provisórios, mas que têm pretensão de definitividade —; sobre as vicissitudes da argumentação constitucional dialética; e sobre o enfrentamento de tensões e conflitos entre instituições, institutos e normas constitucionais.

As dependências recíprocas implicam reconhecer necessárias cooperações e parcerias para o pleno exercício de capacidades institucionais quanto à concretização das normas constitucionais. Não há um guardião único, muito menos uma instituição preferida para a tarefa de concretizar a Constituição, pois as normas constitucionais exigem competências compartilhadas por dependências recíprocas.

Por fim, a sustentabilidade como vetor da hermenêutica constitucional feminina tem como ideia mestra a preservação do máximo potencial de todas e cada uma das normas constitucionais, mesmo as mais complexas e paradoxais. A Constituição, sob essa perspectiva, apresenta-se como uma totalidade que só se sustenta quando todos os seus elementos têm o seu máximo potencial preservado.

Tais vetores hermenêuticos femininos foram concebidos e sistematizados a partir de valores que fazem parte do paradigma do feminismo cultural, no sentido de conjunto de valores femininos à disposição da sociedade. Assim, a proposta é associar a dialogicidade à fraternidade e à alteridade como categorias constitucionais; associar as dependências recíprocas aos valores da solidariedade e cooperação como categorias constitucionais — já expressamente reconhecidas pela jurisprudência constitucional brasileira — e, por fim, associar a sustentabilidade aos valores da segurança e longevidade como elementos da dinâmica constitucional.

Essa é a contribuição possível que eu, uma constitucionalista de raiz, posso dar para o processo de busca pelo sentido feminino de Constituição, que já tarda, mas, estou certa, não falhará neste rico, plural e feminino Brasil.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] Aqui, estética é considerada como a filosofia da arte, mais precisamente como a área da Filosofia que se ocupa da arte e do belo. É a dimensão das ações e experiências humanas que aproxima o agradável, o confortável, o digno de contemplação com o grandioso, o surpreendente, o poético. Por todos vide: SCHILLER, Friedrich. A Educação Estética do Homem. São Paulo: Iluminuras, 1990.
[2] Semiótica aqui é tomada como a ciência dos signos, ou seja, a ciência de toda e qualquer linguagem. Sobre o assunto vide: SANTAELLA, L. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
[3] Sobre as ondas vide: GONÇALVES, Eliane; PINTO, Joana Plaza. Reflexões e problemas da transmissão intergeracional no feminismo brasileiro, in Cadernos Pagu (36), janeiro –junho, 2011, p. 25-46.
[4] A referência nesta reflexão é a uma amiga platônica: DINIZ, Débora. Feminismo: modos de ver e mover-se. In: O que é feminismo? Cadernos de Ciências Sociais. Lisboa: Escolar Editora.2015.
[5] Precisamos conhecer as constitucionalistas brasileiras da primeira geração, aquelas que são as professoras dos professores. Trata-se de uma lista que não é exaustiva, mas que contou com professoras que já experimentam mais de 30 anos de formadas em Direito. São elas: professora Fernanda Dias Menezes de Almeida; professora Anna Cândida da Cunha Ferraz; professora Vera Karam de Chueiri; e professora Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha.
[6] Não posso deixar de registrar que tenho plena consciência da latitude restrita do termo feminina escolhido. Mas como estou explicando a todas e todos que me questionam essa opção, digo-lhes que o lugar de fala que ocupo no mundo exige essa honestidade. Peço a generosidade de minhas amigas feministas para não me excluírem do convívio delas, porque, se tiverem a paciência fraterna para a luta, eu já respondo prontamente: além de feminina, por opção existencial, também sou feminista, por opção política. Não se trata de rejeição, mas de pedido por acolhimento.
[7] Aqui a influência de Michel Foucault é inegável: FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2006.
[8] Infelizmente, tenho que fazer esse aposto porque não posso deixar de registrar que existem muitas mulheres no masculino, e, neste trabalho, não estou falando delas nem para elas.
[9] Sobre lugar de fala vide: ALCOFF, Linda. The problem of speaking for others, in Cultural Critique, n. 20, 1991-1992, p. 5-32.
[10] Sobre feminismo cultural vide: ALCOFF, Linda. Feminismo cultural vs. Post-estructuralismo: la crisis de identidade de la teoria feminista, in Revista Debats nº 76, p. 3-7.

Autores

  • Brave

    é mestre e doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub, assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

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