Opinião

Reclamação da Rede no caso Dilma-Temer tem erro técnico

Autor

  • Telma Rocha Lisowski

    é professora de Direito Constitucional no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do IDP São Paulo mestre e doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP advogada.

23 de junho de 2017, 7h02

As nossas cortes superiores têm sido palco de exemplos emblemáticos do tão falado fenômeno da judicialização da política. O simples fato de possuirmos um braço do Judiciário dedicado especificamente ao tratamento de matéria eleitoral já propicia enorme abertura a que disputas político-eleitorais continuem sendo travadas no âmbito dos tribunais, o que temos visto com uma frequência bastante impressionante. Talvez o caso mais recente seja o julgamento da chapa presidencial Dilma Roussef-Michel Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral, capítulo de nossa história jurídico-política que ainda está longe de acabar.

Qualquer que fosse o resultado do julgamento finalizado no último dia 9 de junho, era esperado que esse tema fosse levado pelas partes interessadas ao Supremo Tribunal Federal, diante de seu papel institucional de guardião de Constituição e órgão de cúpula do Poder Judiciário. O que não se esperava era que isso fosse feito antes mesmo da publicação do Acórdão, por entidade que não é parte do processo e por via diversa da recursal.

Foi o que fez, entretanto, a Rede Sustentabilidade ao ajuizar a Reclamação 27.377, com pedido para que o Supremo Tribunal Federal casse a decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral no julgamento da chapa Dilma-Temer, em razão de alegada violação à autoridade da decisão proferida pela Corte Suprema na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.082-DF.

No precedente invocado pela Rede, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente o pedido de que fosse declarada a inconstitucionalidade parcial dos artigos 7º, parágrafo único, e 23 da Lei Complementar 64/90, na parte em que permitem ao juiz ou tribunal, no julgamento de arguições de inelegibilidade ou ações de investigação judicial eleitoral, levar em consideração fatos públicos e notórios, indícios e presunções, ainda que não tenham sido indicados ou alegados pelas partes. Sustenta o partido político na Reclamação em comento que o Tribunal Superior Eleitoral teria atentado contra essa decisão ao deixar de apreciar os depoimentos prestados em juízo pelos executivos da empreiteira Odebrecht, sob o fundamento de que os fatos elucidados nesses depoimentos não estariam incluídos na petição inicial.

A construção feita pela Rede, admita-se, é engenhosa. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar improcedente referida ação direta, considerou constitucional o permissivo legal que dá amplos poderes instrutórios ao juiz eleitoral, tudo com o nobre objetivo de preservar a lisura do pleito. O Tribunal Superior Eleitoral, por sua vez, teria ido de encontro a esse precedente vinculante ao considerar que a inclusão dos fatos revelados pelos executivos da Odebrecht constituiria uma violação do princípio dispositivo e do princípio do contraditório. Engenhosidade, porém, não está dentre as hipóteses que permitem a procedência de Reclamação e a consequente cassação do ato reclamado.

Deixando de lado as problemáticas questões da ausência de publicação do Acórdão do Tribunal Superior Eleitoral e da (i)legitimidade da Rede para a propositura dessa medida — temas que, justiça seja feita, foram enfrentados na inicial —, há uma impropriedade técnica no argumento de mérito da Rede que não deverá passar despercebida pelo Supremo Tribunal Federal. O que foi decidido com eficácia vinculante e efeito erga omnes pela corte suprema no julgamento da ADI 1.082-DF é tão-somente que o juiz eleitoral, ao formar sua livre convicção, poderá atentar a fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes. É dizer, a referida ação direta proclamou a constitucionalidade de um dispositivo que confere ao julgador, em matéria eleitoral, um poder instrutório mais amplo do que aquele conferido pelas normas processuais civis ordinárias. A maneira como o juiz ou tribunal utilizará esse poder, obviamente, dependerá dos elementos e circunstâncias do caso concreto.

No julgamento questionado na Reclamação, o Tribunal Superior Eleitoral em momento algum declarou a inconstitucionalidade (nem mesmo implicitamente) dos artigos 7, parágrafo único, ou 23 da Lei Complementar 64/90, única hipótese em que se poderia cogitar de violação à autoridade da decisão proferida pelo Supremo. Pelo contrário, a corte eleitoral, ciente de que possuía os amplos poderes instrutórios conferidos por esses dispositivos, entendeu — por sua maioria — que a apreciação dessa prova no caso concreto levaria a uma indevida ampliação da causa de pedir, o que não é a intenção das regras declaradas constitucionais na ADI 1.082-DF.

A propósito, vale mencionar o voto do ministro Luiz Fux no precedente que a Rede alega ter sido violado: “Na verdade, aqui não é uma indicação de uma causa petendi diversa, porque nós sabemos que a regra é a de que o juiz não pode proferir uma decisão fora do pedido ou da causa petendi; são fatos relativos ao pedido e a causa petendi que o juiz pode conhecer. ”

Se a decisão de desconsiderar os fatos revelados nos depoimentos dos executivos da Odebrecht foi ou não a mais correta é algo que ainda está em aberto e poderá ser discutido pelas vias ordinárias. A ação ajuizada pela Rede, porém, é um claro sucedâneo recursal, o que transparece até mesmo no estilo da redação da peça, em que o julgamento proferido na ADI 1.082-DF parece ter sido usado mais como um paradigma para interposição de Recurso Extraordinário do que como uma decisão vinculante cuja autoridade teria sido violada.

Se isso enfraquece a viabilidade jurídica do pedido formulado na Reclamação 27.377, não retira necessariamente a utilidade dessa medida enquanto ato de posicionamento político de um partido minoritário, cujas ações podem ganhar mais visibilidade no judiciário do que na arena legislativa. Volto ao que disse no início desse texto: estamos diante de mais um capítulo de uma história de crescente judicialização da política, em cujo horizonte próximo não se vislumbra um fim.

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    é professora de Direito Constitucional no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do IDP São Paulo, mestre e doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, advogada.

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