Ideias do Milênio

"É possível fugir da escravidão, mas não do racismo"

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22 de junho de 2017, 14h57

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Colson Whitehead [bexleo.org]
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Entrevista concedida pelo escritor norte-americano Colson Whitehead ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

O Milênio tem a honra de receber o escritor mais premiado do momento nos Estados Unidos, Colson Whitehead, o autor de The Underground Railroad, que é o título em inglês, e um subtítulo “Os caminhos para a liberdade”. É a sensação do momento, é o livro mais vendido em 2016, ganhou o Pulitzer, este ano, para o ano passado, ganhou o National Book Award, os principais prêmios de literatura dos Estados Unidos, e ele vai conversar comigo sobre esse livro e a obra dele, sobre escrever, sobre ser um escritor de grande sucesso.

Colson Whitehead — O livro começa assim:

“Na primeira vez que Ceasar sondou Cora sobre fugir para o Norte, ela disse não. Era a avó dela falando. A avó de Cora nunca tinha visto o mar antes daquela tarde de sol forte no porto de Ouidah, e o brilho da água a ofuscou depois do tempo passado no calabouço do forte. Eles ficavam no calabouço até a chegada dos navios. Os daomeanos sequestraram os homens primeiro, então voltaram à aldeia dela duas semanas depois atrás de mulheres e crianças, fazendo-as caminhar acorrentadas em pares até o mar. Quando olhou pelo vão escuro da porta, Ajarry pensou que reencontraria seu pai, lá embaixo, na escuridão. Os sobreviventes lhe disseram que, quando seu pai deixou de acompanhar o ritmo da longa caminhada, os traficantes de escravos racharam sua cabeça e largaram o corpo pelo caminho. A mãe de Ajarry morrera anos antes”.

Jorge Pontual — Por que a ferrovia subterrânea? Por que escolheu esse assunto?
Colson Whitehead — Isso foi há 17 anos, e a ferrovia subterrânea era a rede usada por quem queria escapar da escravidão para o Norte. Eram pessoas que lhe davam uma carona, o escondiam num porão, o ajudavam a atravessar um rio. Eram colaboradores, não havia uma ferrovia de fato. Quando você ouve falar dela na infância, acha que é um metrô. Sou de Nova York e era isso que achava até a professora explicar. Mas me pareceu uma premissa louca para um livro: “E se fosse uma ferrovia mesmo? O que fazer com isso?”.

A ‘ferrovia subterrânea’ não era cheia de túneis ou esconderijos secretos onde os escravos ficavam. Na maioria, eram lugares onde as pessoas poderiam passar a noite e preparar a rota para o próximo lugar. Você poderia abrigar alguém no seu celeiro.”

Jorge Pontual — Então você reimaginou a ferrovia subterrânea, certo? Mas também reimaginou mais do que isso. Você tem uma forma… Estou lendo outro livro seu, O Intuicionista, e você costuma criar uma espécie de universo paralelo. Estou certo?
Colson Whitehead — Eu cresci lendo horror, ficção científica e fantasia, e foi graças a pessoas como Arthur C. Clarke e Stephen King que eu quis virar escritor, à Marvel também. Então o uso da fantasia é uma ferramenta normal para mim. Alguns livros meus são realistas, outros têm um elemento fantástico. Então, tornar a ferrovia subterrânea real… Não é um livro realista, é mais uma premissa. Então adicionei o elemento no qual cada estado pelo qual a protagonista passa — Carolina do Sul, Carolina do Norte — é uma América alternativa. Ela passa por um estado supremacista branco, por um estado utópico negro, então, ao não me limitar à realidade, eu pude traçar um retrato bem mais amplo dos EUA e da história americana.

Jorge Pontual — Algumas pessoas o comparam a García Márquez e a Borges. Você vê um paralelo?
Colson Whitehead — Eu adoro Borges, ele é um mestre. De García Márquez eu li Cem Anos de Solidão na escola e, antes de começar a escrever este livro, voltei a ele para ver que lições poderia aproveitar ao usar a fantasia, e me pareceu que, mesmo havendo muitos acontecimentos absurdos e estranhos no livro, se você apresentá-los com seriedade, talvez funcionem na página então… Numa entrevista, García Márquez contou como criou sua forma de realismo mágico. E foi com a avó dele, que contava histórias sobre o vilarejo e também coisas fantásticas, e as contava com a maior seriedade, segundo ele. Então, se pegar muitas coisas fantásticas do meu livro e apresentá-las seriamente, o efeito no leitor é diferente.

Jorge Pontual — Você usa essa mesma seriedade, digamos, a mesma trivialidade, para falar das coisas terríveis que aconteceram com os escravos: as mutilações, as execuções, os linchamentos, os assassinatos… Todas as coisas terríveis que aconteceram. É muito difícil de ler, mas você conta de uma forma convincente. É muito realista. É muito trivial.
Colson Whitehead — Se você quiser retratar uma fazenda realista, ela era assim. Se for ler as biografias de ex-escravos… Na década de 1930, o governo americano entrevistou ex-escravos, adolescentes ou crianças na época da Guerra Civil, e eles descreveram experiências horrendas nessas fazendas de uma forma muito trivial. E se sua experiência diária é sofrer estupros, torturas e maus-tratos para ficar na linha, você não a dramatiza, porque é parte da sua rotina. Eu sei o tom de voz deles para descrever as brutalidades diárias do sistema escravocrata.

“Ela identificava os elos fracos na multidão, aqueles que não sustentavam seu olhar. ‘O elo fraco’. Ela gostava de como soava. Buscar a imperfeição na corrente que a mantém em cativeiro. Individualmente, o elo não era grande coisa, mas, junto com seus companheiros, um metal poderoso que subjugava milhões apesar de sua fraqueza. As pessoas que ela escolhia, jovens e velhos, da parte rica da cidade ou das ruas mais modestas, não perseguiam Cora individualmente. No entanto, como comunidade, elas eram grilhões. Se ela continuasse se livrando dos elos fracos onde quer que os encontrasse, talvez isso desse em alguma coisa.”

Jorge Pontual — A principal coisa do livro é a personagem Cora, certo? Ela é uma personagem que, para mim, como leitor, se tornou imediatamente viva, real, falou comigo. Como você cria uma personagem assim?
Colson Whitehead — É sempre difícil. As pessoas perguntam se foi difícil ter uma protagonista feminina. É sempre difícil, seja o personagem parecido com você ou muito diferente. Se for fácil, você não está fazendo direito. E Cora… Acho difícil imaginar a coragem necessária para fugir daquela fazenda. Quem era capturado poderia ser morto. Então qual é o percentual de pessoas que teria essa coragem para fugir para o Norte? No início do livro há dois momentos que definiram Cora e se tornaram a chave para a personalidade dela. Quando ela enfrenta um valentão e quando protege um garoto que ia apanhar. Ela via pessoas apanhando todo dia, mas um dia ela resolve agir como escudo humano. Esse tipo de coragem, de excepcionalidade, alimentou o perfil dela.

Jorge Pontual — Mas é uma jornada que teoricamente – e o subtítulo em português vai dizer isso, “Os caminhos para a liberdade” –, mas não há liberdade real ao final dessa jornada, porque a instituição da escravidão está por toda parte.
Colson Whitehead — Pois é. Somos um país racista hoje como éramos na época, e mesmo que ela fosse para Boston, ganhasse na loteria US$ 4 bilhões e constituísse família, ainda seria uma negra num país racista. É possível fugir da escravidão, mas não do racismo. É impossível escapar da realidade de ser uma pessoa negra.

Jorge Pontual — Há outro personagem importante no livro, Ridgeway, o captor de escravos.
Colson Whitehead — Ele é uma pessoa cruel que caça escravos e os leva de volta a seus donos e também é uma voz para a supremacia branca, para o imperialismo, para o destino manifesto dos EUA. Como Cora é uma personagem formidável, eu queria um vilão formidável para enfrentá-la. Quem seria? Ridgeway. A forma como ele expressa sua filosofia de supremacia branca é muito importante para contrapor à ideia de Cora do que é ser um ser humano livre.

Jorge Pontual — Mas você o retrata mais como uma pessoa real.
Colson Whitehead — Os vilões têm seu lado humano, seus medos secretos, e acho que é minha tarefa dar vida a todos os meus personagens, sejam eles protagonistas ou não. Há donos de escravos malvados, há brancos abolicionistas que ajudam, há heróis negros e vilões negros. Existe tudo isso na humanidade. Não é estritamente preto ou branco.

Jorge Pontual — Quero ler um trecho do livro. “Como desfazer a lesão da escravidão às faculdades mentais se tantos homens livres continuam sendo escravizados pelos horrores que sofreram?”
Colson Whitehead — As cicatrizes não desaparecem, sejam as de uma pessoa livre em 1850 que se muda para o Norte ou na sociedade atual, na qual temos um racista na Casa Branca, temos escolas mal atendidas e um Estado de encarceramento, no qual negros são presos em muito maior número do que brancos e outras raças.

Jorge Pontual — Mas há algumas observações no livro, como a que li, que jogam luz no nosso momento atual. Fale sobre isso, sobre como acha que sua obra pode ajudar as pessoas a serem mais conscientes sobre a situação atual dos EUA.
Colson Whitehead — Acho que pode conscientizá-las. Não sei se muda tudo. Acho que mudamos muito lentamente enquanto sociedade, mas se você pegar os patrulheiros de escravos, que podiam parar qualquer negro na rua em 1850…

Jorge Pontual — Até no Norte, certo?
Colson Whitehead — Até no Norte, e exigir seus documentos: “Você é escravo? Você é livre? Tem o direito de estar na rua?” A linguagem que os negros usavam para descrever essas revistas é a mesma linguagem que eu usaria ao ser parado pela polícia por andar na rua. É a mesma linguagem de humilhação e a perpetuação de uma atitude da autoridade branca sobre o corpo negro. Então, se você fala sobre raça em 1850, inevitavelmente fala sobre raça hoje.

Jorge Pontual — Você é parado na rua?
Colson Whitehead — Agora estou mais velho e pareço mais estabelecido, mas, quando era mais jovem, durante a adolescência e a juventude, eu era visto como uma ameaça. E essa é a realidade de ser negro nos EUA.

Jorge Pontual — O que você acha do movimento Black Lives Matter e do que aconteceu no governo Obama em termos de relações raciais?
Colson Whitehead — Em relação a Obama, tomamos muito do que ele representava por certo. Achamos que progrediríamos como país com um presidente negro. Na infância, eu jamais imaginei isso. Agora, com Trump, é difícil imaginar que tivemos esses oito anos. O Black Lives Matter, para quem não sabe, é um movimento que surgiu para abordar a brutalidade policial. Eu cresci em Nova York, e temos conversas periódicas sobre brutalidade policial. Há sempre destaque quando alguém leva um tiro ou é espancado pela polícia à toa. Aí há um grande debate nacional, que morre e depois renasce… Para mim esse é o ciclo da vida americana. Acho que fazem coisas positivas. Não sei que efeito terão com um governo como este, mas temos de ter esperança, senão estamos perdidos.

Jorge Pontual — Eu li que você acha que cresceu como escritor. Seu primeiro livro já fez muito sucesso, mas você ainda acha que tem espaço para crescer. O que seria esse crescimento?
Colson Whitehead — Este é meu oitavo livro. Espero que ele seja melhor que o primeiro e que eu seja um escritor melhor, que faz coisas diferentes…

Jorge Pontual — O que quer dizer com escritor melhor?
Colson Whitehead — Como abordo os personagens, como abordo o mundo. Quando eu tinha 30 anos e escrevi O Intuicionista, eu tinha um certo ponto de vista em relação ao mundo. Dezessete anos depois eu sou casado, tenho filhos, tenho esperança num mundo melhor para eles, não mato tantos personagens quanto fazia, porque sou uma pessoa diferente. Você cresce como escritor, e sua experiência de vida torna seu texto mais rico. Quando você escreve um livro, comete alguns erros, mas usa o que aprendeu para tornar o livro seguinte melhor.

Jorge Pontual — Eu vi o seu perfil no Twitter, e você colocou os dizeres… Me ajude.
Colson Whitehead — Um cigano arruinado…

Jorge Pontual — Um cigano azarado.
Colson Whitehead — Com o bolso cheio de sonhos partidos.

Jorge Pontual — “Azarado” não é mais o caso.
Colson Whitehead — É o que a minha esposa diz, mas sabe como é… Estou tendo um ano bom. Não sei como será o próximo.

Jorge Pontual — Quais são os sonhos partidos?
Colson Whitehead — É uma brincadeira, mas, como artista, você lança um livro que às vezes as pessoas entendem, outras não. Felizmente as pessoas receberam muito bem esse livro. Talvez não recebam tão bem o próximo, mas eu sigo perseverando, tentando melhorar o livro seguinte e torcendo para conseguir.

Jorge Pontual — Vamos mudar de assunto porque o Colson, além desse romance histórico que teve um sucesso enorme, escreveu outros sete livros. Por que Nova York é um tema de seus livros?
Colson Whitehead — Eu nasci e fui criado aqui, não conheço bem nenhum outro lugar. Acho que sou bem adaptado à vida na cidade. Viajo muito a trabalho para cursos e residências, mas sempre volto. É daqui que tiro grande parte de meu sustento criativo, gosto das lojas abertas 24h por dia, gosto do metrô, de tudo.

Jorge Pontual — Acho que li numa de suas entrevistas que, depois de viver aqui, não tem para mais nenhuma cidade.
Colson Whitehead — Eu não quero… Isso vale para mim e para muitos nova-iorquinos. Mas o carinho que eu nutro pela cidade é o que as pessoas nutrem por sua cidade natal. Acho que existe esse sentimento universal sobre os lugares que amamos. Nos meus livros The Colossus e O Intuicionista, tento transportar o amor pela minha cidade para a página.

Jorge Pontual — Quero lhe agradecer, porque na introdução a The Colossus of New York, você diz que quando você sente a perda de um lugar que conhecia em NY, que fechou e outra coisa abriu no lugar, você se torna um nova-iorquino, e isso acontece toda hora comigo. Moro aqui há 21 anos e conheço essa sensação.
Colson Whitehead — Pois é. Você vê o prédio novo e a loja que existia ali, onde comprava uma pizza ou consertava seus sapatos e agora é uma delicatéssen ou um cinema e sobrepõe o seu passado à cidade viva. Isso faz parte de amar um lugar e morar nele há muito tempo.

Jorge Pontual — E você sobrepõe os mundos que cria em seus livros à cidade. Fale-me sobre o livro de zumbis que você escreveu. A história se passa aqui, não é?
Colson Whitehead — Perto daqui, na Broadway com Canal. Eu continuo tentando descobrir como escrever um romance sobre a cidade. O Intuicionista se passa numa Nova York alternativa, em Zone One NY é a cidade perfeita, todo mundo está morto, ninguém te chateia, não tem fila para táxi… Essa é a minha utopia.

Jorge Pontual — Eles são zumbis.
Colson Whitehead — Zumbis, como são hoje. De dois em dois anos, eu volto com uma forma nova de falar da cidade.

Jorge Pontual — Você começou como jornalista do Village Voice, um jornal aqui da cidade, como crítico. Como é se tornar um escritor de romances depois de ser jornalista? Como passar de um tipo de texto para o outro?
Colson Whitehead — Eu acho que o jornalismo tem suas regras, artigos para jornais ou revistas têm suas regras, e na ficção posso criar minhas próprias regras, mas a disciplina do jornal foi muito importante. Aprendi a passar cinco horas sentado, escrevendo, para receber e comprar comida e pagar o aluguel. Essa disciplina é muito importante para mim hoje. Ninguém se importa se eu não cumprir minha cota diária. Tenho de ser meu próprio patrão. Então, escrevendo para um editor por muitos anos, você passa a saber o que ele gosta e não gosta no seu estilo e começa a se editar. Eu me tornei um bom autoeditor e um bom colaborador trabalhando em jornais.

Jorge Pontual — Você descreve o escritor como um pobre-diabo, não é? É doloroso?
Colson Whitehead — Algumas páginas e alguns capítulos são difíceis e às vezes você tem uma epifania, uma frase nova, um personagem novo. A gente vive por esses dias. Quando você está empacado e não sabe como a história vai se desenrolar, os dias bons te levam adiante.

Jorge Pontual — Eu vi no seu Twitter que você postou a foto de alguém num campo nevado completamente branco e disse: “Esta é a primeira página, uma página em branco que você tem de preencher para começar uma história, só que sem a pá.”
Colson Whitehead — Havia alguém com uma pá: “Começar um livro é assim”, e eu disse: “É verdade, só que sem a pá. É só você.” Estou começando um livro agora, escrevi 20 páginas, falta muita coisa e eu sinto que estou num campo enorme, tentando limpá-lo sem nenhuma ferramenta.

Jorge Pontual — Sabe o que é o novo livro?
Colson Whitehead — É difícil explicar. Ele se passa na Flórida, da década de 1960. Novamente, não é uma história muito edificante. É sobre racismo nos EUA, portanto vou lançar dois livros deprimentes seguidos. Talvez o próximo tenha mais piadas. Gosto de livros com piadas, mas nem sempre é possível.

Jorge Pontual — Você acha The Underground Railroad deprimente? É difícil, é doloroso, mas para mim foi edificante.
Colson Whitehead — É brutal e é uma história de alguém tentando se tornar livre e escapar da servidão, mas muita gente não consegue escapar como ela, então, para transportar uma fazenda real para a página, eu tive de ser brutal e contar como era. Então, antes de chegar a um lugar de esperança, ela tem de enfrentar muitas atribulações.

Jorge Pontual — Me fale sobre as dificuldades dos jovens negros americanos. O que você tem a dizer a eles?
Colson Whitehead — Aguentem firme. Isso é o que eu diria a qualquer pessoa, mas é claro que este é um país racista. Todos os países têm algum tipo de racismo ou xenofobia, e nos EUA com certeza pode parecer para os jovens negros que o jogo está contra eles, e está mesmo. Espero que as coisas melhorem. Eu vivo melhor do que meus avós, meus país também viveram, e eu vivo melhor que meus pais. Espero que a cada geração nós avancemos um pouco mais.

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