Opinião

O porquê do artigo 195 da Constituição Federal

Autor

22 de junho de 2017, 7h40

Para explicar a elaboração do artigo 195 da Constituição, preciso esclarecer que os trabalhos da Constituinte de 1987 foram iniciados por 8 comissões temáticas, subdivididas em 3 subcomissões. Cada subcomissão elaborou um texto-base e o passou à respectiva comissão, que o emendou e o encaminhou à comissão de sistematização.

Essa, por sua vez, compilou os textos e produziu um projeto, que foi objeto de emendas parlamentares e populares. O relator-geral emitiu parecer sobre as emendas e elaborou um substitutivo, ao qual foram apresentadas novas emendas, com a consequente elaboração de novo parecer e novo substitutivo. Ao final, a comissão votou os substitutivos, título a título, seguidos pelos destaques apresentados às emendas rejeitadas pelo relator.

O texto aprovado seguiu ao plenário, para proposição de emendas e votação em 2 turnos, título a título, por maioria absoluta. Nessa fase, porém, o grupo de congressistas denominado “Centrão” alterou o regimento interno da Constituinte — que até então vedava emendas que alterassem mais de um dispositivo —, para facultar à maioria absoluta dos constituintes a apresentação de emendas coletivas, as quais poderiam substituir até títulos inteiros do projeto e seriam votadas com prioridade sobre o texto da comissão de sistematização.

Portanto, o “Centrão” poderia desconsiderar o trabalho feito e redigir toda a Constituição. Mas isso não ocorreu, porque, com exceção de temas nevrálgicos — como o sistema de Governo, que era parlamentarista na fase de sistematização —, as emendas coletivas modificaram pouco o projeto, especialmente porque a obtenção das assinaturas necessárias não garantia a confirmação do mesmo número de votos em plenário, o que exigiu concessões recíprocas, para evitar a temida ausência de texto.

Como os títulos da Constituição foram idealizados por comissões diversas e votados separadamente, surgiram desalinhamentos entre eles, especialmente entre o da ordem social e da tributação e orçamento. Exemplo disso é a diferença entre o artigo 150, VI, “c” e art. 195, § 7°, que era ainda mais nítida na redação aprovada pela comissão de sistematização[1].

Desde a subcomissão de tributos, a imunidade do artigo 150, VI, “c” era regulada por lei complementar, em atenção à jurisprudência do STF. A menção atual apenas à “lei” decorreu de um lapso da emenda coletiva 2.042[2] (que deu o texto-base do título do sistema tributário), ao tentar retomar o texto da CF/1969, diante das divergências sobre a extensão dessa imunidade. O equívoco passou despercebido até mesmo na votação do destaque ao dispositivo[3], cujo foco voltou-se para a rejeição do pleito de extensão da imunidade às entidades fechadas de previdência complementar, posteriormente reconhecida pela Súmula 730/STF.

Já o texto do artigo 195, § 7°, surgiu na comissão de sistematização, como uma exceção ao entendimento do relator-geral de que, “tendo em vista a necessidade de preservação do princípio da solidariedade financeira, a princípio nenhuma exceção deve ser aberta no tocante à obrigação de contribuir para a Seguridade Social”[4].

O dispositivo trouxe imunidade destinada às entidades filantrópicas e regulada por lei ordinária, pois, conforme encaminhamento da votação (em que há menção ao artigo 150, VI, “c”), “Com a emenda, o que busca o Constituinte Jarbas Passarinho, o que buscavam e buscam os nobres Constituintes Cunha Bueno e Enoc Vieira, é resolver o problema especialmente relativo às Santas Casas e a outras instituições filantrópicas que, em todo o País, se dedicam secularmente à assistência social”[5].

Mas a principal diferença entre esses títulos é a de que, enquanto os artigos 149 e 153 a 156 da Constituição repartem competências tributárias, o artigo 195 foi criado para efetivar o princípio da diversidade de bases de financiamento (artigo 194, VI).

De fato, na sessão de 22/04/1987 da subcomissão da seguridade social, o então ministro da previdência social esclareceu[6] a necessidade de “que se inclua entre os princípios constitucionais, a importância da base ser diversificada, porque a base exclusivamente sobre a folha, ela realmente, nas fases de ciclo recessivo, a Previdência certamente sofrerá”, sugerindo o acréscimo do lucro bruto, para evitar a cumulatividade e “para que se tenha uma base exclusiva da Previdência Social que a gente não dispute com o faturamento, que já tem várias incidências sobre ele”.

O relator incorporou a sugestão ao seu texto, mas, na votação[7], o lucro bruto foi substituído pelo faturamento, porque “ainda é mais correto incidir sobre o faturamento bruto, porque o lucro é muito mais manipulável, muito mais difícil de se acompanhar e de se precisar do que o faturamento bruto. Se houver algum problema na operacionalização da taxação do faturamento bruto, será muito menor do que se operacionalizar em cima do lucro bruto. Certamente a taxação em cima do faturamento bruto dará um rendimento muito maior para a seguridade social”.

Além disso, nessa votação, foi fixado um rol aberto de bases de cálculo, ante o apelo do constituinte Paulo Macarini: “não gostaria de fechar as oportunidades sobre as fontes de receita da seguridade social, por isso propus que o sistema de seguridade social seja custeado nos termos da lei, ‘dentre outras’”. Confira-se o texto aprovado:

“Art. 22 – A lei disporá sobre o financiamento do sistema de seguridade social, estabelecendo, entre outras, as seguintes fontes de custeio:

I – contribuição dos empregadores calculada com base em percentuais incidentes sobre a folha de salários e sobre o faturamento ou receita; (…)”[8]

A comissão da ordem social buscou reforçar o princípio, aumentando para 8 as fontes de financiamento[9]. Contudo, na comissão de sistematização, os substitutivos do relator-geral restringiram o rol de bases de cálculo ao faturamento, lucro e folha de salários, porque: “Optamos por não especificar fontes de financiamento da Seguridade Social quando não houver precisas indicações técnicas a respaldar tal decisão. De acordo com dispositivo inscrito no capítulo pertinente, é atribuída à lei ordinária a competência para instituir novas fontes de financiamento, sempre que necessário à manutenção ou expansão do sistema”[10].

Portanto, a razão de a redação do artigo 195, I, da CF/88 não impor limites quantitativos à criação de contribuições sociais com mesma base de cálculo é que ele foi concebido como uma extensão do artigo 194, VI, e não para criar competências tributárias, o que ficou a cargo do artigo 149. Por isso, aliás, várias emendas sustentaram a sua desnecessidade[11], mas obtiveram parecer negativo, pois “A sugestão não pôde ser acolhida tendo em vista a opção do Relator por manter no texto do substitutivo um mínimo de especificação das bases de incidência de contribuições para o Fundo Nacional de Seguridade Social”[12].

O artigo 195, § 4°, por sua vez, decorreu da aprovação parcial[13] da emenda 1P08972-7 de Francisco Dornelles, que, para impedir que as contribuições sociais alcançassem as bases de cálculo típicas de impostos, pretendia restringir a contribuição empresarial à folha de salários e estender às demais bases de cálculo os requisitos aplicáveis aos impostos residuais[14]. O acolhimento parcial gerou a atual redação híbrida do dispositivo, que tolera a superposição de bases de cálculo, mas impõe à seguridade social um rol de bases de financiamento relativamente fechado.

Por outro lado, o conceito de faturamento não foi unívoco na elaboração da Constituição. As divergências surgiram já na votação da subcomissão, mas foram resolvidas pelo relator, ao afirmar que “Não há nenhum inconveniente. Vinculamos também o termo ‘receita’” [15], o que gerou o artigo 22, transcrito acima.

A questão perdeu relevância com a fixação de um rol aberto bases de cálculo, mas foi retomada na fase de plenário — quando as bases residuais passaram a ter requisitos mais rígidos —, por meio da emenda 2P01946-3[16], que propunha a substituição do faturamento por “receita operacional bruta”. A emenda recebeu parecer favorável, pois “A terminologia sugerida pelo autor da emenda é, sem dúvida, mais adequada, eis que a palavra ‘faturamento’ possui, de fato, um sentido muito genérico, que poderia dificultar o sistema de arrecadação previdenciário”[17].

Contudo, a redação-base do título da ordem social foi dada pela emenda coletiva 2.044[18], com o consequente não acolhimento das alterações propostas pelo relator-geral. Como o parecer do relator foi favorável à emenda, não houve destaque, e, sem destaque, a questão não foi votada. Seria a oportunidade de reduzir a judicialização do PIS e da COFINS, que assolou o Judiciário e a arrecadação na década de 90 e de antecipar o que veio a ser o entendimento do STF.

Uma nova tentativa de evitar a judicialização veio com a LC 70/91, que, nos termos da respectiva mensagem presidencial, buscou refazer o Finsocial, com as retificações necessárias a evitar discussões não pacificadas, pois “as controvérsias presentes a respeito da legalidade e até da constitucionalidade da cobrança da contribuição para o Finsocial têm provocado um sem número de ações judiciais em torno da questão, provocando o congestionamento do poder judiciário, a intranquilidade do contribuinte e, ultimamente, vertiginosa queda da sua arrecadação”[19].

O efeito colateral, porém, foi a oportunidade de rediscussão de entendimentos consolidados, como o de que o ICM integra a base de cálculo do Finsocial, porque, diferentemente do que ocorre no IPI, o ICM integra a sua própria base de cálculo, “constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle” (artigo 2°, § 7°, do DL 406/68), de modo que a contribuição, ao incidir sobre o ICM, efetivamente tributa uma receita do vendedor.

Mas, olvidando-se disso, o STF (RE 574.706) afirmou que a parcela do preço correspondente ao ICMS não integra o faturamento, por ser uma receita de terceiro (Estado). E, caso não restrinja esse fundamento ao contexto da discussão tradicional sobre o destaque do ICMS, instituirá o lucro bruto como fonte principal da seguridade social (= faturamento com dedução das contribuições individualizáveis de terceiros para a receita operacional), funcionando como um novo turno da Constituinte.

Em qualquer caso, essa alteração da Constituição deve ser feita para o futuro, pois, há mais de 35 anos, o ICMS integra a base de cálculo da COFINS.

E quem ainda pensa que as alterações jurisprudenciais tributárias de impacto macroeconômico não exigem uma modulação de efeitos vai perder a respiração quando souber que o CTN é formalmente inconstitucional, pois o presidente da República, ao encaminhar o projeto, solicitou[20] rito de urgência — tramitação em apenas 30 dias, com votação em sessão conjunta do Congresso Nacional —, que era vedado às leis complementares e Códigos pelo artigo 67, § 8°, da CF/1946 na redação da EC 17/1965.

Por isso, o presidente do Congresso Nacional determinou o seu arquivamento[21], aos fundamentos de que (i) se tratava de projeto de código, como explicitamente afirmavam diversos dispositivos, e de que (ii) o projeto tratava de normas gerais de direito tributário, matéria reservada à lei complementar pela EC 18/1965.

Por serem tempos de ditadura, a solução do Governo foi excluir do texto todas as alusões à palavra “código”, sendo alarmante o pronunciamento feito na página 1023 do Diário do Congresso Nacional de 5/10/1966[22], de que “o MDB julgava necessário maior tempo, mais acurado estudo de matéria tão importante como este projeto envolvendo normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, aos Estados e aos Municípios. Entretanto, chegamos à conclusão que (sic), em virtude do recesso que se inicia neste dia se não adotarmos o substitutivo (…)”.

De qualquer jeito, a retomada do lucro bruto não mais se justifica, pois o PIS e a COFINS já passaram por um processo de evolução, possuindo, inclusive, uma modalidade não cumulativa. A consequência, porém, foi o surgimento de novos questionamentos judiciais, agora sobre o conceito de insumo criado pelo artigo 3°, II, da Lei 10.637/02.

Com isso, encerro a exposição, por não haver muito a explicar sobre o tema, já que a redação aprovada no parlamento foi a mesma subscrita pelo Ministro da Fazenda na MP 66/2002, de modo que, quem tem melhores condições de explicar o porquê do artigo 3°, II, da Lei 10.637/02 é quem redigiu o texto, a Receita Federal.


13 Idem rodapé 12, p. 265.

15 Idem rodapé 7.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!