Opinião

Litisconsórcio previsto na reforma trabalhista é incompatível com a CLT

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21 de junho de 2017, 6h19

1. Considerações iniciais
O ordenamento jurídico admite o uso de demanda judicial de natureza constitutiva-negativa com o escopo de eliminar do mundo jurídico:

a) uma cláusula do contrato de trabalho;

b) um acordo individual de trabalho ou uma de suas cláusulas;

c) uma convenção ou acordo coletivo de trabalho ou uma de suas cláusulas.

A demanda que tem por objeto a eliminação do mundo jurídico de uma cláusula do contrato de trabalho ou de um acordo individual de trabalho ou de uma de suas cláusulas não suscita dúvidas ou polêmicas. É uma demanda trabalhista como qualquer outra, cuja competência funcional originária para processamento e julgamento é de Vara do Trabalho.

Por outro lado, a demanda que tem por objeto a eliminação do mundo jurídico de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas suscita dúvidas e polêmicas, que serão agravadas com a inserção à CLT do artigo 611-A, parágrafo 5º, cuja redação é a seguinte:

CLT, 611-A, § 5º. Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos.

Referida regra padece de boa técnica e é absolutamente inadequada (ao invés de solucionar, criará sérios problemas), como tentarei demonstrar nas linhas seguintes.

2. Considerações específicas
Os pedidos de declaração de nulidade e de ineficácia de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas podem ser veiculados em demandas de natureza individual ou coletiva.

2.1. Demandas de natureza individual
Em demanda ajuizada pelo empregado em face do empregador, pode ser deduzido pedido de declaração de nulidade e de ineficácia de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas.

Tal pedido, porém, terá (sempre) natureza prejudicial (incidental). Ou seja, a aferição da validade e da eficácia da CCT, do ACT ou de suas cláusulas convencionais constitui pressuposto ao acolhimento ou rejeição de outro pedido — que é o pedido principal (por exemplo, declaração de nulidade de cláusula que estabelece desconto de certo valor do salário para custeio de taxa de reversão, com repasse ao sindicato profissional, como requisito ao acolhimento do pedido de devolução dos valores descontados)[1]. Em outras palavras: para decidir o pedido principal, terá o juiz, na motivação (incidenter tantum), “de apreciar e resolver pontos controvertidos (questões), havidos como antecedentes lógicos”[2].

Diante desse quadro, podemos afirmar que não há possibilidade alguma de demanda individual ter por objeto (mérito)[3] a nulidade e a ineficácia de CCT, de ACT ou de algumas de suas cláusulas. Esses pedidos serão sempre antecedentes lógicos de outro pedido, e a decisão sobre eles proferida jamais ficará acobertada pela coisa julgada material (CPC, 503, parágrafo 1º, III)[4]. Idêntica situação ocorre com o pedido, em demanda cível ou trabalhista, de declaração de inconstitucionalidade de norma legal (mediante controle difuso). Tal pedido jamais será o objeto da demanda, mas sua resolução incidental (incidenter tantum) constituirá pressuposto lógico ao deferimento ou indeferimento de outro pedido (esse, sim, seu objeto)[5].

Da assertiva acima decorre, então, a impossibilidade jurídica de aplicação da parte do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT que dispõe que os sindicatos deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual que tenha como objeto a anulação de cláusulas convencionais, uma vez que esta (anulação de cláusulas convencionais) jamais será objeto daquela (ação individual).

Supondo-se, entretanto, que haja possibilidade jurídica de aplicação do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT, tem-se que admitir que ao ingressarem no processo como litisconsortes necessários as entidades sindicais (e não especificamente os sindicatos, uma vez que normas convencionais também podem ser firmadas por federação e confederação) possuirão a condição de parte. Sendo vencidas, ao recorrer deverão pagar custas processuais e efetuar o depósito da condenação? Se sucumbentes (mediante declaração de nulidade e de ineficácia de norma convencional) ou vencedoras, serão respectivamente condenados ou receberão honorários advocatícios (CLT, 791-A)? Havendo trânsito em julgado da decisão, deverão adotar algum comportamento relativamente à CCT, ao ACT ou às cláusulas anuladas ou declaradas ineficazes ou a participação na demanda é meramente casual — para o caso concreto?

Tomando-se como premissa, de outro lado, que o texto do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT é produto de leigos, com boa vontade e torturando todos os métodos interpretativos conhecidos, pode-se presumir que o se quis foi:

a) apenas determinar a oitiva das entidades sindicais em demanda individual. Se essa foi a intenção, melhor seria, a fim não comprometer a razoável duração do processo (CF, 5º, XXXV e LXXVIII), exigir a mera comunicação (que poderia até mesmo ser realizada extrajudicialmente pelo interessado, com comprovação nos autos) da demanda aos sindicados subscritores da norma convencional, garantindo-se-lhes a faculdade de intervir no processo como amicus curiae (CPC, 138) ou como assistente simples (CPC, 119 e 121);

b) ou antecipar uma eventual demanda de regresso. Se essa foi a intenção, para evitar dúvidas acerca da aplicação subsidiária dos arts. 125 a 129 do CPC, melhor seria ter expressamente autorizado a denunciação da lide.

2.2. Demandas de natureza coletiva
Em demanda ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em face das entidades sindicais (hipótese mais comum), pode ser deduzido pedido de declaração de nulidade e de ineficácia de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas (CF, 127; LC 75/1993, 83, IV)[6]. Excepcionalmente, também podem ajuizar demanda com esse mesmo objeto, “entes coletivos representativos de categorias econômicas ou profissionais, que não tenham subscrito a norma coletiva, caso se considerem prejudicados em sua esfera jurídica em decorrência da convenção ou do acordo coletivo”[7], bem como a entidade sindical ou a empresa (sic) signatária que alegar que a norma convencional está contaminada por um dos vícios dos negócios jurídicos (CC, 166)[8].

A jurisprudência trabalhista firmou entendimento de que tal demanda:

a) pode ser ajuizadas mesmo após o termino do prazo de vigência do instrumento convencional[9];

b) tem natureza coletiva, porque a norma convencional nela debatida tem natureza normativa e vincula a categoria ou determinado grupo de empregados[10];

c) será processada e julgada originariamente[11]:

por TRT (CLT, 678, I, aplicado analogicamente) — sempre que o conflito abranger categorias situadas exclusivamente na sua competência territorial.[12] Da decisão do TRT caberá impugnação por meio de recurso ordinário (CLT, 895, II) para a SDC do TST (RI, 70, II, b; 225, I);

pelo TST (RI, 70, I, c) — sempre que o conflito abranger categorias situadas na competência territorial de mais de um TRT,[13] ressalvadas a hipótese de abrangência de toda (e somente) a área territorial do Estado de São Paulo, que alberga os TRTs da 2ª e da 15ª Regiões (Lei n. 7.520/1986, 12).

Sendo a demanda ajuizada:

a) pelo Ministério Público do Trabalho ou por entidade coletiva representativa da categoria que não subscreveu a norma coletiva, mas é por ela prejudicada em sua esfera jurídica — as entidades sindicais subscritoras da norma convencional serão rés em litisconsórcio passivo necessário (diante da natureza da relação jurídica controvertida – CPC, 114) e unitário (uma vez que a natureza da relação jurídica impõe decisão de mérito uniforme para todos os litisconsortes – CPC, 116);

Se as entidades sindicais subscritoras da norma convencional serão rés, também participarão (sic) do processo como litisconsortes (CLT, 611-A, parágrafo 5º) de quem? E com que finalidade?

Tomando-se como premissa, novamente, que o texto do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT é produto de leigos, com boa vontade e torturando todos os métodos interpretativos conhecidos, pode-se presumir que o se quis dizer com “parte” do dispositivo legal foi que nas demandas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho ou por entidade coletiva representativa da categoria que não subscreveu a norma coletiva, as entidades sindicais subscritoras serão rés em litisconsórcio passivo necessário.

b) entidade sindical ou empresa (sic) signatária que alegar que a norma convencional está contaminada por um dos vícios dos negócios jurídicos — a outra entidade sindical ou empresa (sic) subscritora da norma convencional será ré.

Se a relação jurídica material controvertida é bilateral e há uma entidade sindical e uma empresa (sic) em cada um dos polos da relação jurídica processual, a entidade sindical subscritora também participará (sic) do processo como litisconsorte de quem?

Nesse caso, nem a premissa de que o texto legal é produto de leigos, e tampouco a boa vontade e a tortura aos métodos interpretativos conhecidos salva a absoluta impossibilidade jurídica de aplicação do artigo 611-A, parágrafo 5º, da CLT.

3. Conclusões
Porque o artigo 611-A, parágrafo 5º, padece de boa técnica, uma vez que utiliza uma linguagem leiga, é incongruente com o ordenamento legal vigente e não encontra espaço jurídico para sua aplicação sem (ridículos) remendos, melhor seria se não fosse incluído na CLT.


[1] Nesse sentido: TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2009, v. III, p. 2.740.
[2] SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, v. IV, p. 441-2.
[3] Objeto é forma vernacular que “serve para designar algo que se põe diante de uma pessoa, ou como alvo de alguma atividade sua”. Por objeto do processo, então, “designa-se o conteúdo deste, posto diante do juiz através do ato de iniciativa. Ele é, afinal, a res in judicium deducta, da linguagem tradicional. É sobre ele que o juiz se acha autorizado e obrigado a pronunciar-se”. Fácil inferir, portanto, que “o objeto do processo é, em outras palavras, o mérito da causa (meritum causae)” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, v. I, p. 238).
[4] A referência às competências material e em razão da pessoa do artigo 503, parágrafo 1º, III, do CPC tem de ser compreendida pelo gênero (competência absoluta), e não pelas espécies citadas.
[5] “A decisão do Poder Judiciário para o caso concreto será sempre incidenter tantum, ou seja, pressuposto para a procedência ou improcedência da ação, que apreciará a tutela concreta do interesse. O juiz reconhece a inconstitucionalidade de determinada norma e, por via de consequência, julga o feito procedente ou improcedente. A declaração de inconstitucionalidade antecede o mérito da questão” (ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 28).
[6] LC 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho:
IV – propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores;
O objeto (mérito) da demanda é a eliminação do mundo jurídico convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas. “A ação coletiva de nulidade de ato normativo visa afastá-lo do mundo jurídico para todos os efeitos legais” (MELO, Reimundo Simão de. Dissídio coletivo de trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 169).
[7] TST-RO-115-16.2014.5.07.0000, SDC, Rel. Min. Kátia Magalhães Arruda, DJ 09-6-2017.
RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO ANULATÓRIA. 1. NULIDADE DO ACORDO COLETIVO DE TRABALHO 2015/2016. ILEGITIMIDADE DO SINDICATO PROFISSIONAL QUE SUBSCREVEU A NORMA COLETIVA. A questão objeto da controvérsia não se limita apenas à definição da representatividade dos empregados da AFFEMG – Associação dos Funcionários Fiscais do Estado de Minas Gerais, mas principalmente à possibilidade de que, diante da alegada inércia do legítimo representante dos empregados (SENALBA), a Associação pudesse celebrar a norma coletiva com outro ente sindical (SINDEC). (…) Ocorre que as hipóteses admitidas pela lei para a celebração do acordo coletivo, sem a participação do sindicato legitimado para tal, são aquelas previstas no art. 617 da CLT, que diz respeito à comissão de empregados, ou a do art. 611 desse diploma legal, que trata da representação das categorias inorganizadas em sindicatos, não havendo nenhuma previsão legal para que outro sindicato, que não o legítimo representante da categoria envolvida, possa firmar, em nome dela, instrumentos negociais autônomos, ou ainda, a possibilitar que a vinculação sindical resulte simplesmente da vontade e/ou da escolha de trabalhadores e empregadores. Nesse contexto, mantém-se a decisão regional que declarou a nulidade do ACT 2015/2016, celebrado entre a AFFEMG e o SINDEC/MG e nega-se provimento ao recurso (TST-RO-10818-80.2015.5.03.0000, SDC, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DJ 30-11-2016).
[8] TST-RO-80133-87.2015.5.07.0000, SDC, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DJ 19-5-2017; TST-RO-RO-5156-41.2013.5.09.0000, SDC, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DJ 24-3-2017; TST-RO-1002390-22.2015.5.02.0000, SDC, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DJ 24-02-2017.
RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO ANULATÓRIA AJUIZADA PELO SINDICATO PATRONAL. CONVENÇÃO COLETIVA. COAÇÃO. NULIDADE. É inválida a convenção coletiva celebrada com coação ao sindicato patronal, já que o temor de dano iminente e considerável ao patrimônio de seus filiados demonstra que a convenção não reflete a livre manifestação de vontade da categoria econômica (TST-RO-3288-33.2010.5.09.0000, SDC, Red. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DJ 06-4-2017).
[9] RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO ANULATÓRIA INTERPOSTO PELA CIA. SÃO GERALDO DE VIAÇÃO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. PERDA DE OBJETO. A jurisprudência desta Seção Especializada firmou-se no sentido de que, embora o prazo de vigência do instrumento coletivo já tenha expirado, permanece o interesse de agir do Ministério Público do Trabalho em obter a declaração de nulidade de cláusulas que o integram e que, porventura, estejam em descompasso com a ordem jurídica. Entende a SDC que, enquanto esteve em vigor, a norma coletiva produziu efeitos relativamente às cláusulas objeto da ação anulatória, e que a decisão a qual acolher a sua nulidade tem efeito retroativo, contemporâneo à celebração daquele instrumento, pois aquelas normas, no período em que vigoraram, integraram os contratos de trabalho dos empregados representados e geraram direitos e obrigações para as partes as quais firmaram o instrumento negocial (TST-RO-49800-86.2009.5.17.0000, SDC, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DJ 30-11-2016).
[10] No mesmo sentido: LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1.783-4.
[11] A regra de distribuição de competência funcional é a de que a demanda da competência originária dos tribunais é excepcional e exige, por isso, norma expressa. À falta de norma nesse sentido, nenhuma dúvida deveria existir quanto à competência originária dos órgãos de primeiro grau de jurisdição da Justiça do Trabalho (Varas do Trabalho) para processar e julgar demandas com pedidos de declaração de nulidade e de ineficácia de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou de uma de suas cláusulas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho ou por entidade coletiva representativa da categoria que não subscreveu a norma coletiva, mas é por ela prejudicada em sua esfera jurídica, bem como por entidade sindical ou empresa (sic) signatária que alegar que a norma convencional está contaminada por um dos vícios dos negócios jurídicos. No mesmo sentido: SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 1.436-7. Em sentido contrário: LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1.789; OLIVEIRA, Francisco Antonio de. O processo na Justiça do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 963; TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2009, v. III, p. 2.740.
[12] TST-RO-216-49.2013.5.12.0000, SDC, Rel. Min. Kátia Magalhães Arruda, DJ 19-12-2016.
[13] TST-AACC-426-77.2014.5.08.0000, SDC, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DJ 10-5-2017.

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