Opinião

A polêmica sobre as biografias autorizadas ou não

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21 de junho de 2017, 17h54

Partindo do pressuposto de Ortega y Gasset de que o homem não se desvincula de suas circunstâncias, precisamos refletir sobre um tema assaz momentoso, que está a exigir novas aspirações, com novos posicionamentos, novas concepções, que demandam, inclusive, uma revisão conceitual, além de reformulação de nosso ordenamento jurídico.

Não se pode ignorar os questionamentos sobre a previsão do artigo 20 da Lei 10.406, de 2002, o Código Civil: "Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais".

Biografias não autorizadas, desautorizadas, intervivos ou post mortem, indiferentemente, até poucos anos não faziam parte da ordem do dia. No Brasil, biografia não autorizada nunca despertou maior interesse, ao contrário do que ocorre nos países anglo-saxões, nos quais a bisbilhotice na vida de celebridades sempre foi um prato cheio.

Com a intenção apenas de contribuir com o debate, começamos a refletir sobre o assunto trazendo, especialmente, dois aspectos a serem considerados. Quais sejam, a reparação de danos e os direitos autorais. Na verdade, nosso ordenamento jurídico não está preparado para tratar adequadamente desses dois tópicos relacionados a essa temática.

Nem questionaremos aqui se essa discussão das biografias não autorizadas situa-se no plano da liberdade de expressão ou do direito de informação. Mas considerando-se que aquela é mais abrangente e capaz de despertar maior interesse e maior proteção, admitimos, ad argumentandum tantum, que essa questão situe-se nesse âmbito. E, partindo desse ponto de vista, deixamos claro que nunca admitimos nenhuma espécie de censura prévia, na medida em que defendemos intransigentemente a liberdade de qualquer cidadão pensar e se expressar como quiser sobre o que quiser, ainda que não concordemos com nada do que disser. Em outros termos, defendemos ardorosamente a mais absoluta liberdade de expressão, vinculada tão somente à responsabilidade total e absoluta por tudo que falar, disser, escrever, divulgar ou afirmar, que não corresponda à realidade. Ou seja, defendemos liberdade de expressão com responsabilidade, como convém a um Estado Democrático de Direito.

Posto isso, retornemos aos dois aspectos antes referidos, quais sejam, reparação de dano e direitos autorais. Em primeiro lugar, a reparação de danos, sobre a qual destacamos, desde logo, que no sistema normativo brasileiro não se valoriza a honra alheia, na medida em que o Poder Judiciário tem mantido, como parâmetro, quando condena alguém por danos morais, a fixação em patamar não superior a R$ 20 mil (ou 20 salários mínimos). Parte-se do princípio de que a honra é um bem jurídico abstrato, intangível e insuscetível de valoração, e, ademais, deve-se impedir a indústria do enriquecimento indevido com a invocação de danos morais, especialmente quando se trata da honra dos outros.

Ao tratarmos desse tema, lembramos um episódio dramático, ocorrido no Rio Grande do Sul (lá no início dos anos 1990), quando um deputado foi assassinado e, na ausência de prova substancial, suspeitou-se que o assassino teria sido outro deputado. Transcorrido o julgamento pelo órgão especial do Tribunal de Justiça, com a absolvição do suspeito; posteriormente, o referido suspeito escreveu um livro e, entre outras baixarias, enxovalhou a honra do então relator do processo. Consultado por este sobre a melhor alternativa de processar seu ofensor, cível ou criminalmente, respondemos-lhe que na seara criminal não valeria a pena, pelas sanções cominadas (resolver-se-ia nos juizados especiais), e, no cível, questionamos-lhe, afinal, vocês continuam condenando ofensas a honra alheia em valores não superiores a 20 salários mínimos?!

Ante a resposta positiva, sugerimos não tomar nenhuma das duas medidas jurídicas cabíveis, por não valer a pena e, principalmente, para não dar oportunidade dessa desinteligência voltar à mídia, porque o seu dano moral seria muito maior. Sugestão aceita.

A rigor, nesse cenário, constata-se que a honra só tem valor quando é lesada a nossa. Aliás, quando é a nossa honra que sofre a ofensa, torna-se o bem mais valioso na face da terra e digno das maiores indenizações. Por isso, lembramos sempre, a título de pilhéria, que, vez por outra, seria interessante que a honra de magistrados, de qualquer grau, fosse lesada e se buscasse a devida indenização, para compreenderem o valor do bem jurídico honra, e a grande injustiça da mesquinha reparação da honra alheia, quando exposta à execração pública. Ou seja, para que a reparação da honra enxovalhada deixe de representar apenas uma estatística na apuração dos feitos judiciais.
Somente em circunstâncias tais percebe-se o quão importante é preservá-la, isto é, adotar meios preventivos para impedir que sua violação ocorra. Porque após será como jogar as plumas de um travesseiro ao ar. O reparo jamais será satisfatório, principalmente, enquanto tivermos um Poder Judiciário exageradamente econômico na hora de valorar a honra alheia.

Dentro dessa linha, como afirmou Roberto Carlos em programa televisivo, quando foi questionado sobre o que fazer em relação ao debate das biografias não autorizadas: “Precisamos conversar, precisamos conversar e precisamos conversar”. Pois, para início de conversa, sugerimos que se estabeleçam, legalmente, novos parâmetros, isto é, critérios específicos para reparação do dano à honra alheia, especialmente para hipóteses de biografias não autorizadas que atinjam a honra de pessoas de notória exposição pública, ou, na linguagem "globística", que sejam, em suas respectivas áreas, reconhecidas como “celebridades”.

Quanto maior a importância do biografado, maior o dano a ser reparado; quanto maior for a arrecadação projetada pela biografia, mais elevada deverá ser a reparação. Ou, dito de outra forma, a reparação da honra alheia deve ser de tal ordem elevada que seja capaz de desestimular ao biógrafo desrespeitá-la, pois saberá que não valerá a pena violentá-la.

O segundo aspecto que mencionamos, inicialmente, refere-se aos direitos autorais, e, como autor de quase 30 livros de Direito Penal, com inúmeras edições e com tiragens anuais de algumas dezenas de milhares de exemplares, nos achamos autorizados a falar de direitos autorais.

No entanto, em se tratando de biografia não autorizada, destacamos que existem dois lados da mesma moeda, isto é, há dois sujeitos nessa relação, há dois personagens em uma biografia escrita por terceiro, com ou sem autorização. Em outros termos, poderíamos dizer que há o autor (ou biógrafo) e há o biografado (ou a personalidade), ou, fazendo um trocadilho, há “o roteiro”, e há, igualmente, o personagem ou intérprete, isto é, o biografado. Afinal, em filme, novela ou uma peça de teatro existem os produtores (realizadores, escritores, roteiristas etc.), que ganham pela produção ou pela “história”, mas há também os atores que incorporam os personagens e são, por isso, dignamente remunerados. Em outros termos, os dois lados devem ser recompensados. Com as biografias não pode ser diferente.

Diante dessa necessária e indispensável bilateralidade (sem a personalidade célebre não haveria o biógrafo), recomenda-se que o biografado seja destinatário da maior parte da arrecadação de sua biografia, mesmo não autorizada. Afinal, ele é o grande responsável pelo feito que alavancou a demanda por sua biografia, foi sua obra que justificou a popularidade e o interesse do público em geral, embora seja razoável que o biógrafo também faça jus a um percentual razoável dos direitos autorais.

Ante a exigência do “concurso necessário”, qual seja, de biografado e biógrafo, podemos questionar: afinal, seria justo remunerar-se somente o biógrafo, que se utiliza da importância ou notoriedade conquistada pelo biografado? Será razoável admitir-se que o biógrafo enriqueça às custas de personalidades que ao longo de sua história e de sua existência construíram um verdadeiro legado cultural, profissional, intelectual ou artístico, isto é, um verdadeiro patrimônio pessoal e intransferível, apenas por ter condensado essa rica história em um opúsculo? Não soaria falacioso invocar-se apenas o exercício de liberdade de expressão ou informação para se beneficiar de qualquer forma às custas de outrem, como se fora uma ave de rapina ou um chupim (pássaro que usa o ninho do tico-tico para por seus ovos)?

Aliás, nunca vimos ninguém interessado em biografar o Zé da Silva, o Joãozinho ou o pobre caboclo lá do sertão. Lógico, não rende dividendos, não dá retorno financeiro, quem se interessaria por tal biografia? A biografia de personalidades ilustres é um patrimônio pessoal e intransferível que não pode ser usurpado por ninguém, a título algum.

Enfim, defendemos, de lege ferenda, que estabeleça com um novo diploma legal, dentre outros fundamentos, novos parâmetros (pesadíssimos, como sustentamos) para reparação de dano, bem como a divisão de direitos autorais, no mínimo, em igualdade de condições, ou, preferencialmente, com preponderância para o biografado, que, em última instância, é a razão de ser da demanda por sua biografia.

Concluindo, nossos artistas (Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilbeto Gil etc.) continuam os mesmos, ou seja, com a mesma dignidade, honra, história e importância. E, como defendido por todos os críticos, também gozam, irrestritamente, da mesma liberdade de expressão e do mesmo direito à informação, sendo livres para se manifestarem sobre qualquer assunto, a favor ou contra, como qualquer cidadão brasileiro.

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