Direito do Agronegócio

A concentração dos mercados no agronegócio: a busca deliberada do erro

Autor

16 de junho de 2017, 8h00

Spacca
Acompanhamos a triste sequência de acontecimentos que envolvem uma das maiores empresas produtoras de proteína animal do mundo, bem como as suas relações com representantes dos poderes constituídos no Brasil.

Vários são os fatos, várias as questões, mas o que não se pode dizer é que os enormes problemas daí surgidos sejam eventos imprevisíveis ou inevitáveis.

Mercados concentrados trazem, em si e como regra, problemas ampliados.

Nesse sentido, recordemos alguns conceitos jurídicos.

Em primeiro lugar, é útil relembrar a noção de aviamento, ou seja, a finalidade própria às empresas de perseguirem objetivos produtivos, realizados de forma economicamente viável. Para tanto, o pressuposto é a existência de uma atividade organizada e desenvolvida pelo empresário, valendo-se do complexo de bens que compõem o estabelecimento.

Não prescinde o aviamento da organização, mas também não se resume a ela. No tocante à sua natureza jurídica, para parte da doutrina o aviamento é um bem imaterial. Para outros, trata-se de uma qualidade da empresa, dada a sua condição de poder atribuir ao estabelecimento um valor presumivelmente maior do que a mera soma dos elementos que o compõem.

Fala-se também da existência de um aviamento objetivo, relacionado aos fatores permanentes e inerentes à coordenação funcional existente entre os bens, tais como a proximidade aos mercados consumidores. Sendo assim, pode ser objeto de transferência entre os empresários. Já o dito aviamento subjetivo é aquele que decorre da habilidade do empresário em lidar com o mercado no qual ele atua.

A clientela, no caso das empresas agrárias, pode ser compreendida como o conjunto de pessoas que mantém com ela relações estáveis de procura e de consumo dos vegetais e dos animais produzidos. É, assim, uma das consequências do aviamento, não se confundindo com ele, porém.

Ora, quando tratamos do Direito Concorrencial, temos como contida em seu objeto a criação de regras concernentes ao aviamento e à clientela, de modo direto ou indireto, regras essas que servirão, dentre outros objetivos, à preservação dos interesses dos consumidores, no caso justamente aqueles aos quais se destinam os produtos de origem agrária.

Sob uma outra perspectiva, ao considerarmos as relações de consumo e a proteção aos consumidores, deveremos reconhecer a expansão ocorrida quanto aos limites do Direito Agrário e a criação de uma subdivisão dessa disciplina jurídica que a doutrina costumava chamar de Direito Agroalimentar.

De toda forma, para que seja bem compreendida a lógica a ser empregada nesse ramo do Direito, é necessário que se reconheçam algumas peculiaridades que qualificam as atividades econômicas envolvidas.

Inicialmente, é preciso levar em conta que, a despeito de serem poucos os países que são exportadores líquidos de produtos agrícolas e vários os importadores, são inúmeras as empresas envolvidas em tais atividades, delas resultando gêneros semelhantes e que podem ser classificados em padrões com determinado grau de rigidez, além de serem homogêneos e de origem difusa.

Não foi por outra razão que, ao se iniciarem as negociações para a criação da Comunidade Econômica Europeia — que posteriormente levaria à União Europeia — tornou-se base fundamental a chamada Política Agrícola Comum. Assim, o livre comércio de produtos agrícolas antecedeu as iniciativas da liberalização dos serviços ou do comércio dos resultados da indústria entre as nações partícipes daquele bloco de integração econômica.

Base dessa estruturação econômica foi, assim, o cânon constitucional da “livre iniciativa” que gera, sob o ponto de vista da economia política, o conceito de concorrência perfeita ou pura. Para tanto, segundo os economistas A. W. Stonier e D. C. Hague, é necessária a presença de três requisitos básicos, a saber:

a) um grande número de empresas;

b) produtos homogêneos;

c) livre ingresso ao mercado.

Esse é o princípio, essa a regra que se evidencia, de modo destacado, no mercado agrícola. Assim, quanto mais livre a concorrência, a partir da liberdade de iniciativa econômica, melhor seria para saúde da economia e, em última análise, para o atendimento dos interesses consumidores.

Contudo, esse ideal, criado sob a ótica do liberalismo clássico, admite exceções sensíveis, algumas também peculiares no campo do Direito Agrário.

Uma delas seria, supostamente, a suposta maior eficiência que seria derivada de determinados níveis de concentração de mercado. Sob essa perspectiva, aumentando-se a musculatura de certas empresas — os ditos “campeões nacionais” — elas poderiam competir com grandes corporações sediadas em outros países, o que se faria em condições de disputa viável. Poderiam, ademais, ser essas grandes empresas mais adequadamente fiscalizadas pelo poder público e com maior facilidade estabelecerem padrões de qualidade que não seriam alcançáveis, por exemplo, pelos pequenos frigoríficos ou laticínios.

Ademais, sendo necessária a produção em alta escala — considerando o baixo valor relativo de produtos agrícolas ou pecuários in natura — seria essa uma fórmula para que, sob essa ótica, houvesse o fortalecimento de um ramo econômico sensível, o que se faria mediante a restrição do número de agentes envolvidos, limitando-se tal mercado apenas a grandes e poucas corporações.

Observamos, sem dificuldade, que em vários campos da atividade econômica no Brasil foi essa a política econômica adotada, em especial pelas últimas administrações públicas.

Isso se deu, por exemplo, no mercado financeiro, com o movimento das seguidas incorporações e fusões entres os bancos. Ocorreu também no que se refere às empresas de planos de saúde, aos grandes supermercados e, em especial, no campo da agroindústria.

O resultado pode ser apreciado agora. Aumentaram, notoriamente, as relações “pouco republicanas” — para utilizarmos eufemismo da moda — entre essas empresas agigantadas pela intervenção direta do Estado e o próprio Estado. Por outro lado e no que mais nos interessa neste artigo, houve também notória redução de empresas atuantes nos mercados agrícolas, o que limita o poder de negociação de agricultores e pecuaristas perante os adquirentes industriais de seus produtos, os quais se tornaram capazes de, com mais facilidade e com a inação de órgãos regulatórios, impor preços e condições de pagamento que se tornaram crescentemente desequilibrados.

Ademais, plantas agroindustriais foram desativadas e agora, com a crise atingindo diretamente personagens com posição econômica relevante no agronegócio, vemos a fragilidade desse mercado e a ausência de um plano alternativo que se mostre viável, pelo menos até este momento.

A deliberada concentração dos mercados agrícolas foi, portanto, um grande erro. O país terá trabalho em desarmar essa armadilha que impôs a si mesmo, mas deverá fazê-lo, para o bem de todos e o quanto antes.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!