Opinião

Quem combate o positivismo tem poucas alternativas a oferecer. Será?

Autor

  • Daniel Ortiz Matos

    é advogado mestre e doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) visiting scholar na McGeorge Law School (2017) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

12 de junho de 2017, 6h53

Otto Pfersmann professor da Universidade Paris 1 – Sorbonne é um importante jurista. Quando estes falam, ouvimos, e quando discordamos somos impelidos a expor as razões da(s) divergência(s). Faz parte do “jogo”. Assim, quando discorremos sobre a necessidade de um constrangimento epistemológico[1], não se pode olvidar que este pressupõe o reconhecimento do outro e de que existe a possibilidade de ele estar certo, ou não. Longe de ser uma postura arrogante, é, diferentemente, uma posição séria e responsável diante da realidade. Bem, esse é um dos preços que se paga por andar na contramão do ceticismo. Dito isso, vamos aos argumentos.

Pfersmann, em 2014, esteve em nosso país ministrando um curso na ABDConst e concedeu uma entrevista para a Gazeta do Povo (ler aqui). Antes que nos digam que isso é antigo e que, por isso, perdemos o timing, entendemos que, como a matéria continua disponível on-line, há uma atualidade ainda que extemporânea. Como os leitores poderão perceber, Pfersmann fez algumas afirmações categóricas a respeito da Teoria do Direito. Em consequência, apresentaremos alguns excertos a seguir, que por fins expositivos, contrapomos logo em sequência.

1) “Um estudo dos fenômenos existentes segundo métodos testáveis pode ser qualificado como positivista. Aqueles que combatem o positivismo têm em geral poucas alternativas a oferecer, porque, para decidir não aplicar o direito positivo em um caso concreto, é necessário que se conheça o direito. Logo, é uma atitude incoerente (…)”.

A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) tem se perguntado há tempos: o que é isto — o positivismo jurídico? A resposta ainda está em construção, mas algumas percepções já estão estabelecidas, uma delas é o empirismo, que por sua vez possibilita uma racionalidade matematizante sobre o mundo. Assim, Pfersmann acerta ao afirmar que uma posição positivista necessita de métodos testáveis, que podem ser repetidos, observados e falseados. Todavia, há um equívoco no restante. Dizer que as teorias não/anti/pós-positivistas tem pouco a oferecer, pois têm que conhecer o Direito Positivo e que, por isso, haveria uma incoerência, constitui-se em um equívoco. Isso seria correto se o positivismo fosse a única epistemologia jurídica possível; como não é, esse argumento se fragiliza. Demais teorias fundadas adequadamente em paradigmas epistêmicos distintos têm sempre algo a dizer, ainda que não os reconheçamos. A CHD, por exemplo, tem como ponto central a preservação da autonomia do Direito e sua identificação. Não esqueçamos a vasta gama de critérios identificatórios que a CHD oferece, incluídas as seis hipóteses explicitadas em Verdade e Consenso e outras obras.

2) “Somente o positivismo permite dar um lugar verdadeiro à filosofia moral por relação com o direito. O antipositivismo não faz isso. Para dizer que uma lei ou uma decisão judicial é injusta, é preciso que primeiro eu a possa identificar como objeto jurídico e para isso recorro à metodologia positivista”.

Há aqui uma falácia que constantemente passa despercebida. O positivismo jurídico, mesmo enquanto uma postura “puramente” descritivista e limitada a conhecer o Direito, já é uma posição moral. Nem adentramos no mérito acerca da possibilidade desse descritivismo neutro (ponto arquimediano). O que estamos argumentando é que uma teoria jurídica que rejeita elementos avaliativos, assume, ainda que indiretamente, que o raciocínio prático poderia ser tanto para um lado como para o outro. Esse silêncio tem implicações morais, ainda que não os almeje. Logo, o positivismo jurídico não coloca analiticamente a Filosofia Moral em seu devido lugar, pois, como já dissemos acima, ainda que se esconda, este representa uma perspectiva moral. Ademais, identificar o direito não é uma tarefa somente possível pela metodologia positivista, não estamos negando a sua relevância, mas apenas a sua exclusividade. O professor francês esquece-se de uma coisa: sua tese vai bem enquanto permanece no plano da descrição e identificação da natureza do Direito; ele se enfraquece ao não falar/tratar da aplicação a ser feita pelo juiz. E nisso não há controle sobre os juízes. Ou seja: o professor vai bem no plano descritivo cindindo Direito e Moral; só que essa Moral acaba entrando pela via da aplicação — e, ao que tudo indica, sem controle.

3) “O que nós chamamos, no final do século 19, de positivismo jurídico não é uma visão positivista. É uma visão representada na Alemanha por um autor chamado Gustav Radbruch, que afirmava que a lei deveria ser seguida mesmo se a considerarmos injusta, porque é a lei. Aí você tem o positivismo como uma posição que não enxerga o direito como nada além da lei. Esse mesmo autor, depois da queda do regime nazista, afirmou que o positivismo é um horror porque ensinou aos juristas que a lei deve ser aplicada mesmo se for injusta. Ele se tornou antipositivista. Nos dois casos, não são posições positivistas, mas moralistas. A primeira é moralista porque ensina a obedecer à lei, e o positivismo não manda obedecer à lei, ele quer conhecer a lei(…)”.

Essa abordagem é, no mínimo, controversa. Há dezenas de autores que explicam o positivismo do século XIX de outro modo, confrontando-se com o que diz o professor francês. Historicamente, sedimentou-se uma leitura entre jusfilósofos de várias tradições no sentido de reconhecer no século XIX o positivismo jurídico em sua primeira versão. Tanto é que Norberto Bobbio — e nos parece uma boa fonte — cunhou a expressão positivismo ideológico caracterizando posições que defendiam à obediência a lei pelo simples fato de ser lei. Concordaríamos com Pfersmann que temos, sobretudo, após Kelsen um juspositivismo muito distinto, mas não que as experiências anteriores também não fossem positivistas. Parece-nos que existem traços básicos comuns que foram sendo repisados e reconfigurados ao longo do tempo, de forma que temos positivismos dentro do guarda-chuva do Positivismo Jurídico. Por outro lado, também é controversa a questão desse “antipositivismo” de Radbruch. Assim o é se o positivismo for uma coisa simples e dicotômica: só que isso seria simplificar e ignorar todas as formas de positivismo pós-kelsenianos.

4) “O positivismo é conhecido na sua versão simplificada. Para entender ontologia de normas e epistemologia, certo conhecimento científico me parece indispensável. É uma pena que isso não seja ensinado nas faculdades de direito. Os juristas não compreendem que o saber deles é, em primeiro lugar, um saber linguístico. Em nenhum lugar do mundo, ensina-se o direito como linguística aplicada. Os juristas pensam que o texto jurídico pode ser conhecido diretamente, sem saber como funciona a língua através da qual se exprimem as normas. É como fazer física sem conhecer matemática. Mais conhecimento em filosofia analítica e da linguagem ajudariam o operador do direito”.

Nada de novo. De fato, o positivismo jurídico no Brasil é conhecido de modo muito superficial e em muitos casos de forma equivocada. Temos tanto a necessidade de maiores aprofundamentos nos clássicos como Kelsen e Hart, como também nos juspositivistas contemporâneos. Estamos de acordo que o saber jurídico é linguístico. Todavia, a partir dessa afirmação, seguimos caminhos opostos. Um juspositivista olha para a linguagem de modo analítico, formal. Deste modo, saber Direito seria saber operar com este universo abstrato. Pfersmann chega ao ponto de comparar o conhecimento da linguagem para o Direito, como o da Matemática para a Física. A CHD não nega a existência de uma dimensão enunciativa da linguagem, mas reconhece também a dimensão hermenêutica, que lhe é condição de possibilidade. Há uma dobra na linguagem (Ernildo Stein), posições teóricas que se assentam em apenas um destes lados tendem a ser mais limitadas, pois deixariam mais da realidade para fora de suas reflexões. Mesmo sabendo que sempre haverá algo que nos escapa, não nos parece adequado deixar de reconhecer o que se desvela em nossa experiência. Este é um dos maiores problemas do Juspositivismo: o reducionismo. Por isso, talvez, que às vezes juristas positivistas tornam-se ferrenhos antipositivistas, pois, devido à ausência de ar em seu pensamento, procuram derrubar todas as paredes, quando abrir algumas janelas já seria suficiente.

À comunidade jurídica: Terminamos com um convite ao diálogo. Agora, nos dias 29 e 30 de junho, estaremos reunidos com juristas de renome no II Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito: Às voltas com o Positivismo Jurídico Contemporâneo. As inscrições estão acabando, mas ainda há vagas. Por fim, respondemos à pergunta do título. Não, muitos que combatem o Juspositivismo têm bastante a oferecer. Há vida para além desse horizonte.


[1] Nesse sentido, ver verbete Constrangimento Espistemológico, in Streck, L.L. Dicionário de Hermenêutica. BH, Editora Casa do Direito, 2017.

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