Sociedade vigiada

Justiça dos EUA coloca na balança eficiência policial versus privacidade

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12 de junho de 2017, 9h38

Hoje em dia, a polícia, o FBI e qualquer serviço de inteligência dos EUA têm capacidade para localizar e prender mais rapidamente um suspeito, simplesmente seguindo os sinais de seus celulares. Mas esse mesmo recurso dá a esses agentes governamentais a capacidade de descobrir, por exemplo, que uma pessoa passou a tarde na casa de um(a) amante, com horários e nomes dos dois — e usar isso contra eles, um dia, se houver conveniência.

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Suprema Corte dos EUA vai decidir que lado deve prevalecer: a atual habilidade dos órgãos de segurança de capturar rapidamente criminosos, com o rastreamento de seus celulares, ou o direito à privacidade.
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Conforme as tecnologias de comunicações móveis avançam, mais elas expõem seu caráter de faca de dois gumes. Por isso, a Suprema Corte dos EUA vai intervir, decidindo que lado deve prevalecer: a atual habilidade dos órgãos de segurança de capturar rapidamente criminosos, com o rastreamento de seus celulares, ou o direito à privacidade, cujos defensores temem a progressiva capacidade do governo de instalar no país uma sociedade vigiada.

O problema que a corte vai examinar não é o rastreamento de celulares, porque isso é permitido. Ela vai julgar é se toda e qualquer operação de rastreamento de celular exige a obtenção de um mandado judicial. Para as autoridades de segurança, isso é um “enorme problema”, uma “burocracia” que pode colocar tudo a perder, durante investigações.

Dizem essas autoridades que a emissão de um mandado toma tempo e dá trabalho. Os policiais — ou agentes — têm de demonstrar ao juiz, por exemplo, que há uma “causa provável” de crime para justificar o pedido — isto é, uma indicação razoável de que um crime foi cometido, está em andamento ou vai acontecer. A Constituição proíbe buscas e apreensões “não razoáveis”, que não sejam embasadas por “causa provável”.

Esse é um ponto de vista. As autoridades de segurança dizem, no entanto, que os dados obtidos por esse serviço de vigilância não são privados, como itens que um cidadão tem em sua casa ou em seu carro. No momento em que o cidadão porta um celular, os sinais e os dados são enviados a uma torre pública, de onde podem ser captados, estando o celular ligado ou não.

Para sustentar seus argumentos, as autoridades citam duas decisões judiciais dos anos 1970 e a Lei das Comunicações Armazenadas (Stored Communications Act) de 1986, que garantiriam aos órgãos de segurança autorização para rastrear celulares sem mandado judicial. No entanto, em 1986, a tecnologia de telefonia celular ainda estava em sua primeira infância.

Essas mesmas leis garantiriam aos órgãos de segurança o direito de ordenar às provedoras de telefonia celular, como AT&T, Verizon, T-Mobile, e Sprint, a liberação de registros telefônicos de “pessoas de interesse” (que significa “suspeitos”). E os órgãos de segurança fazem isso regularmente, argumentando que o governo precisa apenas declarar que os registros do celular são relevantes para uma investigação.

Não há dúvidas de que o sistema é relevante para investigação. O caso perante a Suprema Corte (Carpenter v. United States) mostra isso. Timothy Carpenter, de Michigan, foi localizado e preso porque a polícia rastreou seu celular, depois de ele haver assaltado, ironicamente, várias lojas de telefones celulares, na área de Detroit.

Os registros telefônicos de seu celular também serviram para a polícia provar que ele estava na área geográfica de cada uma das lojas na hora de cada assalto. Mas há casos mais complexos, como de sequestros ou assaltos a banco, que a polícia precisa agir com maior agilidade, dizem as autoridades de segurança.

Capacidade de vigiar
As autoridades juram que o sistema é usado apenas para investigar crimes e ameaças à segurança nacional. Entretanto, os opositores a essa concessão alegam que não se pode conferir aos policiais e agentes de segurança nacional presunção de inocência. Ao contrário, sabe-se que, se for dado a eles um dedo, a tentação para pegar o braço é muito grande, de acordo com as publicações Mother Jones, Quartz e The Economist.

Hoje em dia, os órgãos de segurança têm capacidade para vigiar mais do que suspeitos de crime. Podem vigiar, de forma voluntária ou involuntária, 95% da população do país, usando apenas esse artifício do rastreamento de celulares. Afinal, hoje em dia, 95% da população do país tem telefone celular (provavelmente smartphones). E o celular de cada um envia constantemente sinais às torres.

A polícia só rastreia individualmente telefones celulares quando pedem às operadoras os registros telefônicos de um determinado número. Porém, a polícia usa com frequência uma estratégia chamada tower dump (depósito da torre), que lhe permite identificar quem está (ou estava) em uma área geográfica em determinado período (usualmente, de uma a duas horas), sem mandado judicial.

Nessa operação, a polícia pode receber informações de todos os cidadãos que estão (ou estavam) nessa área, registrando suas atividades, telefonemas, mensagens de texto, transmissões de dados e uso da mídia social. Desse modo, pode colher dados de milhares de pessoas que não têm qualquer ligação com o crime investigado.

Aliás, os policiais e agente de segurança nacional não precisam mais recorrer às operadoras de comunicações móveis para obter esses dados. Muitos departamentos de polícia já estão equipados com um Stingray, um dispositivo portátil do tamanho de uma maleta, que age como uma torre falsa de telefonia celular.

O aparelho portátil pode ser colocado em uma viatura policial, que percorre os bairros da cidade e faz com que os celulares na área se conectem através dele — e não da torre. Dessa forma, a polícia pode colher dados (não o conteúdo) de todas as pessoas que estão na área, sem o trabalho de requisitá-los a operadoras e sem mandado judicial.

Sociedade vigiada
A telefonia celular, em si, é uma faca de dois gumes. Todo mundo sabe as vantagens de se ter um smartphone, um dispositivo que, hoje em dia, parece uma extensão do corpo humano, quando se observa o comportamento das pessoas nas cidades, segundo o presidente da Suprema Corte dos EUA, John Roberts.

No entanto, o celular fornece constantemente à polícia e outros órgãos de inteligência dados pessoais de cada cidadão. E os agentes do governo podem saber muito sobre seus cidadãos, apenas colhendo tais dados pessoais, como o de localização.

Os agentes do governo podem identificar, por exemplo, quem poderia estar em um protesto político, em um determinado período de tempo. Ou quem participou de uma assembleia ou de um culto, quem foi ao consultório de um psiquiatra, a uma clínica de aborto ou a uma pornô shop, quem foi à casa de um(a) amante ou a uma casa de prostituição. Nos EUA, visitas a casas de prostituição já destruíram carreiras de políticos influentes, depois que a história foi vazada para a imprensa.

O rastreamento de celulares já é uma arma poderosa contra opositores ao governo, a políticas governamentais e a sistemas instalados. Nos EUA, a desmoralização de opositores a qualquer instância governamental já é usada há anos, com a ajuda de meios de comunicação que se alinham com o governo.

O sistema representa um avanço no caminho das autoridades simpáticas à ideia de uma sociedade vigiada, uma ideia que assusta os defensores dos direitos à privacidade. A referência desses defensores é, constantemente, o livro 1984, do escritor inglês George Orwell. Esse livro descreveu o que seria uma sociedade vigiada e criou, para todas as tentativas de se chegar lá, o adjetivo “orwelliano”.

Na Suprema Corte
O rastreamento de celulares, sem supervisão judicial, pode ser uma prática “orwelliana”, se a Suprema Corte dos EUA não cortar as asas dos órgãos de segurança, permitindo que cumpram seu necessário papel de combater o crime e ameaças à segurança nacional, sem alçar voos mais altos.

Mas o governo vai defender seu direito de rastrear celulares sem mandado judicial com base em jurisprudências e na lei da era pré-celular e com um argumento já conhecido: no momento em que uma pessoa usa um telefone celular, ela passa voluntariamente seus dados a terceiros — no caso, as operadoras de comunicações móveis. Ao fazer isso, elas não podem mais ter expectativas de privacidade.

Esse argumento ficou conhecido como “doutrina da terceira parte”. No momento ela prevalece, mas alguns ministros já indicaram que ela pode ser revista, quando julgaram, em 2012, se a polícia pode colocar GPS no carro de um suspeito, para rastreá-lo, sem mandado judicial.

É difícil prever o que a Suprema Corte vai decidir, porque os ministros terão de escolher entre a necessidade de eficiência da polícia no combate ao crime e as ameaças “orwellianas” ao direito à privacidade.

Uma possibilidade, que parece mais plausível, é a de que os ministros irão se alinhar com o dispositivo constitucional de exige mandado judicial, expedido com base em “causa provável”. Mas, ao mesmo tempo, irão orientar o Judiciário a criar um mecanismo expedito de requisitar e emitir tais mandados, em qualquer momento, sempre que necessário — como através do telefone celular.

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