Opinião

O princípio do contraditório e os limites da motivação aliunde ou per relationem

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12 de junho de 2017, 6h31

O presente artigo pretende analisar os limites impostos pelo princípio do contraditório à motivação aliunde ou per relationem no âmbito do processo administrativo.

É assente que as decisões administrativas devem ser devidamente fundamentadas, sob pena de nulidade[1]. Exige-se que “sejam explicitados tanto o fundamento normativo quanto o fundamento fático da decisão, enunciando-se, sempre que necessário, as razões técnicas, lógicas e jurídicas que servem de calço ao ato conclusivo, de molde a poder-se avaliar sua procedência jurídica e racional perante o caso concreto”[2].

A Lei 9784/1999[3] prevê expressamente que a motivação constitui condição de validade da decisão proferida em sede de processo administrativo, determinando que a administração pública deve obedecer ao princípio da motivação[4], que deverão ser indicados os “pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão”[5] e que as decisões proferidas no julgamento de recursos administrativos deverão ser motivadas, “com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos”[6], prevendo, ainda, que “[o]s elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão” e que a motivação das decisões “constará da respectiva ata ou de termo escrito”[7].

Entre as espécies de motivação admitidas no processo administrativo está a motivação aliunde ou per relationem, que pode ser definida como a motivação por meio de remissão a outras manifestações ou peças constantes nos autos e cujos fundamentos justificam e integram o ato decisório. A adoção da motivação aliunde ou per relationem é expressamente autorizada pela Lei 9.784/1999, que prevê que a motivação pode “consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato”[8]. Vale anotar que, na motivação aliunde ou per relationem, a remissão deve ser expressa, não se admitindo remissão implícita[9].

Não obstante, no âmbito do processo administrativo, a motivação aliunde ou per relationem apresenta limites específicos diante da necessária observância dos princípios que orientam o processo administrativo, entre os quais o princípio do contraditório.

O princípio do contraditório está expressamente consagrado na Constituição Federal, que garante o contraditório aos litigantes em processo administrativo[10]. No mesmo sentido, a Lei 9.784/1999 determina que a administração pública deve obedecer ao princípio do contraditório[11].

Pois bem, o princípio do contraditório exige que a decisão enfrente os argumentos manejados pelo administrado.

Com efeito, o conteúdo mínimo do princípio do contraditório abrange a possibilidade de as partes participarem no resultado do processo[12], influenciando de modo ativo e efetivo na formação das decisões[13]. A garantia do contraditório exige que as partes conheçam os fundamentos que conduzem o órgão julgador na formação do provimento, que possam debatê-los, num exercício dialético que conduzirá à formação da decisão[14]. O princípio do contraditório exige a possibilidade de as partes desenvolverem atividade processual em sustentação a suas razões; de se manifestarem, de forma efetiva e eficaz, em todos os atos relevantes do processo; de se pronunciarem sobre questões que possam influir na decisão; de deduzirem suas pretensões e defesas; de agirem no processo para a tutela de seus interesses, valendo-se de poderes e faculdades aptos a influir na convicção do julgador[15]. O princípio do contraditório assegura às partes a possibilidade efetiva e plena de sustentarem suas razões e produzirem suas provas, enfim, de colaborarem concretamente na formação da convicção do julgador[16]. Para que seja eficaz, o princípio do contraditório deve compreender a participação crítica das partes na formação da convicção do órgão julgador[17]. O princípio do contraditório, portanto, abarca necessariamente o direito do administrado de influir no resultado do processo e na decisão que será proferida.

Por isso, o princípio do contraditório assegura ao administrado o direito de ser ouvido e de ver suas razões apreciadas. O direito do administrado de falar no processo implica necessariamente o dever do órgão julgador de escutar suas razões. Ao direito do administrado de produzir provas e sustentar razões jurídicas, corresponde o dever do órgão julgador de apreciá-las e valorá-las quando do julgamento[18].

Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que afirma que as garantias constitucionais de defesa — entre as quais o princípio do contraditório — “implicam o direito à consideração das razões deduzidas em juízo”[19], “o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar”[20]; que a garantia do contraditório inscrita no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal contém o “direito de ver seus argumentos considerados”[21], que corresponde “ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção”, de “considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas”[22]; que cabe ao órgão julgador analisar os argumentos do administrado com a atenção necessária e cotejá-los com as razões levantadas pela administração[23]; e que “[é] da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões”[24].

Deve-se destacar que a própria Lei 9.784/1999 consagra essa concepção do princípio do contraditório, incluindo entre os direitos do administrado perante a administração pública, o direito de ver suas alegações serem consideradas pelo órgão julgador, determinando que as alegações formuladas pelo administrado e os documentos por ele apresentados “serão objeto de consideração pelo órgão competente”[25].

Deve-se recordar, outrossim, que a Lei 9.784/1999, ao admitir a motivação aliunde ou per relationem, prevê expressamente que essa motivação deve ser “congruente”, a indicar que a motivação deve guardar relação com a defesa manejada pelo administrado no processo, abarcando todos os argumentos por ele produzidos[26].

Nesse sentido é o entendimento da doutrina, que ensina que a motivação “exige congruência interna ao texto da decisão e relativa ao conteúdo do processo, provas e pleitos dos interessados”[27] e que “deve possuir nexo para com as provas e as pretensões constantes no processo administrativo em que é processada”[28]. Afirma, ainda, a doutrina, que da exigência de congruência deriva a necessidade de a decisão “observar uma relação harmônica, lógica e razoável entre os fatos que deram origem ao processo, os requerimentos deduzidos pelos interessados (deferidos ou não), as provas produzidas e o fundamento jurídico da decisão”[29], e de “aquilatar, acolhendo ou rejeitando, as teses fundamentais das partes”[30]. Por fim, a doutrina salienta o dever do órgão julgador de “examinar todos os elementos trazidos e, além disso, justificar seu afastamento ou acolhimento”, e que, “no conteúdo da motivação dos atos conclusivos dos processos administrativos deve constar, obrigatoriamente, o exame de cada elemento trazido pelo administrado e a justificativa de seu acolhimento ou afastamento na decisão tomada”[31].

Por fim, deve-se apontar que essa diretriz teve reforço com o advento do inciso IV do parágrafo 1º do artigo 489 do Código de Processo Civil, que afirma não se considerar fundamentada a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.

Assim, para que se possa ter o princípio do contraditório por atendido, é fundamental que o administrado possa influir na decisão, o que só se verificará se suas razões forem devidamente analisadas pelo órgão julgador.

Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como ilustra o acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial 1.622.386 – MT, cuja ementa consignou que o órgão julgador tem “o dever, dentre outros, de enfrentar todas as questões pertinentes e relevantes, capazes de, por si sós e em tese, infirmar a sua conclusão sobre os pedidos formulados, sob pena de se reputar não fundamentada a decisão proferida”, e que se mostra deficiente a fundamentação da decisão em que se mantém a decisão recorrida “sem a apreciação das questões suscitadas no recurso”.

Assim, a motivação aliunde ou per relationem somente será suficiente se os documentos ou peças processuais a que a decisão fizer referência enfrentarem todos os argumentos apresentados pelo administrado em sua defesa ou em seu recurso. Se isso não ocorrer, a decisão carecerá da necessária fundamentação, padecendo de nulidade.


[1] Nesse sentido é a jurisprudência do STJ: Recurso Especial 52.574 – PE; Recurso em Mandado de Segurança 13.617 – MG; Embargos de Declaração no Recurso em Mancado de Segurança 13.617 – MG; Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança 15.350 – DF; Mandado de Segurança 9.944 – DF; Recurso em Mandado de Segurança 35.033 – RS.
[2] BANDEIRA DE MELLO, p. 513-515.
[3] Anote-se que, ausente lei local específica, a Lei 9.784/99 pode ser aplicada de forma subsidiária no âmbito dos estados e municípios, tendo em vista que se trata de norma que deve nortear toda a administração pública, servindo de diretriz para seus demais órgãos. Nesse sentido é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 263.635 – RS; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.092.202 – DF; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.261.695 – SC; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.196.717 – DF; Agravo Regimental no Recurso Especial 979.926 – RN; Recurso Especial 610.464 – DF; Agravo Regimental no Recurso Especial 715.037 – RS; Recurso em Mandado de Segurança 21.894 – RS; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 935.624 – RJ; Recurso Especial 852.493 – DF; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 683.234 – RS.
[4] Lei 9.784/1999, artigo 2º, caput.
[5] Lei 9.784/1999, artigo 2º, caput, parágrafo único, inciso VII.
[6] Lei 9.784/1999, artigo 50, inciso V.
[7] Lei 9.784/1999, artigo 50, parágrafo 3º.
[8] Lei 9.784/1999, artigo 50, parágrafo 1º, parte final.
[9] MARTINS, p.267.
[10] CF, artigo 5º, inciso LV.
[11] Lei 9.784/1999, artigo 2º, caput.
[12] ALVARO DE OLIVEIRA, 1994, p. 10; ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; BARBOSA MOREIRA, 1994, p. 5; CABRAL, p. 112; GRINOVER, p. 19; MITIDIERO, MARINONI e SARLET, p. 648; TROCKER, p. 370 e 450.
[13] ALVARO DE OLIVEIRA, 1994, p. 10; ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; BARBOSA MOREIRA, 1994, p. 5; GRINOVER, p. 19; TROCKER, p. 370 e 450.
[14] ALVARO DE OLIVEIRA, 1994, p. 5; ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; GRINOVER, p. 19; TROCKER, p. 467.
[15] ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; CAPPELLETTI, p. 634; GRINOVER, p. 5 e 19; MIRANDA, p. 37; TROCKER, p. 370, 371, 451, 646 e 682.
[16] DINAMARCO, p. 135; GRINOVER, p. 2.
[17] ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 15-6.
[18] BARBOSA MOREIRA, 1980, p. 88; GRINOVER, p. 31 e 34-5; TROCKER, p. 371, 451, 457 e 657.
[19] Recurso Extraordinário 163.301 – AM.
[20] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.661 – DF.
[21] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 31.661 – DF; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 426.147 – TO.
[22] Mandado de Segurança 24.268 – MG.
[23] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.661 – DF.
[24] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.661 – DF.
[25] Lei 9.784/1999, artigo 3º, inciso III.
[26] Lei 9.784/1999, artigo 50, parágrafo 1º.
[27] MOREIRA, p. 374.
[28] HEINEN, SPARAPANI e MAFFINI, p. 309.
[29] MOREIRA, p. 374.
[30] OSÓRIO, p. 408.
[31] BACELLAR FILHO e MARTINS, p.270.


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