Direito do Agronegócio

As mudanças no ICMS com o PLP 54/2015 e o agronegócio

Autor

  • Gustavo Ventura

    é advogado especialista em Direito Tributário pela Universidade de Santiago de Compostela e mestre pela PUC-SP. Professor de pós-graduação e presidente da comissão de Direito Financeiro do Instituto dos Advogados de Pernambuco.

9 de junho de 2017, 10h30

Spacca
Caricatura Gustavo Ventura [Spacca]O setor produtivo brasileiro está atento ao Projeto de Lei Complementar 54/2015, já em sua fase final, após o envio pela Câmara dos Deputados ao Senado Federal do seu substitutivo, que teve como relator o deputado Alexandre Baldy (Pode-GO). Trata-se de um marco muito importante, pois deverá conferir o mínimo de segurança jurídica as empresas que foram atraídas por incentivos fiscais ou financeiros concedidos pelos Estados em relação ao ICMS.

Como se sabe, o tema dos incentivos fiscais instituídos pelos Estados, seja por meio de isenção, redução de base de cálculo ou de alíquota, crédito presumido, entre outras formas de minimizar o recolhimento do ICMS, foi e é fundamental para o desenvolvimento econômico de maneira mais igualitária, reduzindo as desigualdades regionais. Especialmente para os Estados de menor atividade econômica e longe dos grandes centros populacionais, a criação desses incentivos era praticamente a única alternativa para mudar o quadro de baixo nível de industrialização e de renda do trabalhador.

Estados como Pernambuco, Bahia, Goiás e Mato Grosso, apenas para citar quatro exemplos, tiveram uma radical mudança na sua estrutura econômica, atraindo milhares de empresas, ligadas ou não ao agronegócio, de forma que as bases de sua economia tiveram expressivo incremento. Por exemplo, basta verificar o crescimento do setor sucroalcooleiro nos últimos dois estados aqui citados, incentivados pela redução do ICMS.

Ocorre que tais investimentos se baseiam em um conjunto de normas jurídicas que carecem de uma maior segurança jurídica, uma vez que em função de uma característica do ICMS, os incentivos fiscais, nos termos do artigo 155, § 2º, inciso II, alínea “g”, da Constituição Federal, devem ser objeto de lei complementar [1].

É aí que começa o problema. Compete a Lei Complementar 24/75 — ou seja publicada treze anos antes da Constituição de 1988 — a disciplinar a matéria dos incentivos fiscais. Para tanto, estabelece:

“Art. 1º – As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei.

Parágrafo único – O disposto neste artigo também se aplica:
I – à redução da base de cálculo;
II – à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros;
III – à concessão de créditos presumidos;
IV – à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus;
V – às prorrogações e às extensões das isenções vigentes nesta data.

Art. 2º – Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal.
(…)
§ 2º – A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes. (…)"

A ideia de deliberar acerca das desonerações do ICMS com base em convênios é acertada, pois incentiva o debate entre os Estados federados. Todavia, a previsão do § 2º, do artigo 2º da Lei Complementa 24/75 que exige a unanimidade dos votos dos Estados para concessão de benefícios é, simplesmente, um desastre. Instituí-se a ditadura da minoria, onde apenas um Estado pode barrar a concessão de um benefício fiscal autorizado por todos os demais.

Defendemos que tal previsão não foi recepcionada pela Constituição de 1988, pois não existe qualquer outra matéria prescrita pelo direito pátrio em que se exija a unanimidade para que se possa aprovar uma deliberação ou projeto. Tal exigência vai de encontro ao princípio democrático previsto logo no artigo 1º na Constituição.

A questão é que diante dessa exigência, absurda, prevista na Lei Complementar 24/75, os Estados simplesmente ignoraram a necessidade da aprovação unânime e criaram, unilateralmente, as suas legislações sobre a concessão de incentivos fiscais.

Apesar de pessoalmente não criticar tais iniciativas, pois foram fundamentais para um crescimento econômico mais equilibrado entre as diversas regiões do país, a ausência de um mínimo de controle levou a chamada guerra fiscal, que gera um clima de desconfiança e concorrência muitas vezes predatória entre as unidades federadas de maneira negativa, especialmente para os menores Estados, tem que abrir mão de quase da totalidade do ICMS para atração de investimentos.

Em verdade, o Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, decidiu pela inconstitucionalidade de leis ou outras normas estaduais que estabelecem incentivos fiscais de maneira unilateral, interpretando de forma objetiva os termos da Lei Complementar 24/75 [2].

Portanto, o Brasil está diante de um sério problema de segurança jurídica em relação aos investimentos realizados pelo setor produtivo. O PLP 54/2015, em sendo aprovado pelo Senado, vai permitir a convalidação dos incentivos concedidos e a sua manutenção por quinze anos, por meio de convênio entre os Estados. O que está previsto no projeto enviado ao Senado é o que abaixo se transcreve:

“Art. 1º Mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, os Estados e o Distrito Federal poderão deliberar sobre:
I – a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes de isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais instituídos em desacordo com o disposto na alínea g do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal por legislação estadual publicada até a data de início de produção de efeitos desta Lei Complementar; e
II – a reinstituição das isenções, dos incentivos e dos benefícios referidos no inciso I deste artigo que ainda se encontrem em vigor.

Art. 2º O convênio a que se refere o art. 1º desta Lei Complementar poderá ser aprovado e ratificado com o voto favorável de, no mínimo:
I – dois terços das unidades federadas; e
II – um terço das unidades federadas integrantes de cada uma das cinco regiões do País.”

Entendemos que diante de tantos interesses distintos entre os estados e suas bancadas no Congresso, o texto aprovado irá em muito contribuir para conferir tranqüilidade em relação aos incentivos fiscais do ICMS, pois permitirá a remissão do ICMS não recolhido com base nas legislações que não atendiam a aprovação pelo Confaz, bem como a sua manutenção por até 15 anos.

Outro ponto que nos parece muito positivo é o critério adotado para aprovação dos convênios, exigindo-se que dois terços das unidades federadas aprovem a proposta, sendo necessários os votos de todas as regiões do país. Tal previsão obedece ao texto da Constituição, ao contrário da regra que exige a unanimidade, prevista na Lei Complementar 24/75.

Para o agronegócio, o texto aprovado na Câmara dos Deputados foi ainda mais vantajoso, pois permite a manutenção dos incentivos por 15 anos, sem qualquer redução, ao contrário de outras atividades que sofrerão redução dos incentivos durante os próximos anos:

“Art. 3º O convênio de que trata o art. 1º desta Lei Complementar atenderá, no mínimo, às seguintes condicionantes, a serem observadas pelas unidades federadas:
(…)

§ 2º A unidade federada que editou o ato concessivo publicado, registrado e depositado no Confaz, relativo às isenções, aos incentivos e aos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais vinculados ao ICMS de que trata o art. 1º desta Lei Complementar fica autorizada a concedê-los e a prorrogá-los, nos termos do ato vigente na data de publicação do respectivo convênio, não podendo seu prazo de fruição ultrapassar:
I – 31 de dezembro do décimo quinto ano posterior à produção de efeitos do respectivo convênio, quanto àqueles destinados ao fomento das atividades agropecuária e industrial, inclusive agroindustrial, e ao investimento em infraestrutura rodoviária, aquaviária, ferroviária, portuária, aeroportuária e de transporte urbano;”

A possibilidade de manutenção integral dos incentivos fiscais de forma integral pelos próximos quinze anos para a agropecuária e o agronegócio, certamente permitirá novos investimentos no setor e ratifica a sua importância para economia brasileira.

Esperamos que o texto seja aprovado rapidamente no Senado Federal, de forma a permitir um nova e melhor realidade das ações do Confaz, conferindo segurança jurídica aos investimentos e ações coletivas que representem de maneira muito mais legítima os interesses da unidades federadas, das diversas regiões do país.


1 “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

XII – cabe à lei complementar:

g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.”

2 Vale transcrever a recente decisão STF sobre o tema:

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL. CONCESSÃO DE BOLSAS DE ESTUDO A PROFESSORES. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE (ART. 24, IX, DA CRFB/88). COMPREENSÃO AXIOLÓGICA E PLURALISTA DO FEDERALISMO BRASILEIRO (ART. 1º, V, DA CRFB/88). NECESSIDADE DE PRESTIGIAR INICIATIVAS NORMATIVAS REGIONAIS E LOCAIS SEMPRE QUE NÃO HOUVER EXPRESSA E CATEGÓRICA INTERDIÇÃO CONSTITUCIONAL. EXERCÍCIO REGULAR DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PELO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO UNILATERAL DE BENEFÍCIO FISCAL RELATIVO AO ICMS. EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE PRÉVIO CONVÊNIO INTERESTADUAL (ART. 155, § 2º, XII, ‘g’, da CRFB/88). DESCUMPRIMENTO. RISCO DE DESEQUILÍBRIO DO PACTO FEDERATIVO. GUERRA FISCAL. PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO, COM EFEITOS EX NUNC. 1. O princípio federativo reclama o abandono de qualquer leitura inflacionada e centralizadora das competências normativas da União, bem como sugere novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos Estados, Municípios e pelo Distrito Federal. 2. A prospective overruling, antídoto ao engessamento do pensamento jurídico, possibilita ao Supremo Tribunal Federal rever sua postura prima facie em casos de litígios constitucionais em matéria de competência legislativa, viabilizando o prestígio das iniciativas regionais e locais, ressalvadas as hipóteses de ofensa expressa e inequívoca de norma da Constituição de 1988. 3. A competência legislativa de Estado-membro para dispor sobre educação e ensino (art. 24, IX, da CRFB/88) autoriza a fixação, por lei local, da possibilidade de concessão de bolsas de estudo a professores, em aprimoramento do sistema regional de ensino. 4. O pacto federativo reclama, para a preservação do equilíbrio horizontal na tributação, a prévia deliberação dos Estados-membros para a concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, na forma prevista no art. 155, § 2º, XII, ‘g’, da Constituição e como disciplinado pela Lei Complementar nº 24/75, recepcionada pela atual ordem constitucional. 5. In casu, padece de inconstitucionalidade o art. 3º da Lei nº 11.743/02, do Estado do Rio Grande do Sul, porquanto concessiva de benefício fiscal de ICMS sem antecedente deliberação dos Estados e do Distrito Federal, caracterizando hipótese típica de exoneração conducente à guerra fiscal em desarmonia com a Constituição Federal de 1988. 6. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado parcialmente procedente, conferindo à decisão efeitos ex nunc, a partir da publicação da ata deste julgamento (art. 27 da Lei nº 9.868/99). ADI 2663/ RS. Relator: Min. LUIZ FUX. Julgamento: 08/03/2017, Tribunal Pleno

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