"Tiro no pé"

Incluir fatos novos em ação coloca todas as eleições em perigo, dizem advogados

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8 de junho de 2017, 7h52

O Tribunal Superior Eleitoral tem a estabilidade do resultado de todas as eleições pela frente. Na ação que pode resultar na cassação do presidente Michel Temer, a corte vai discutir se a Justiça Eleitoral pode incluir novas provas em ação de investigação de eleitoral depois do prazo legal.

Se prevalecer o voto do relator, ministro Herman Benjamin, o juiz eleitoral poderá determinar a produção de tantas provas quanto entender necessário em Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aije). É a interpretação que ele deu ao artigo 23 da Lei das Inelegibilidades (LC 64/90), segundo o qual “o tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios”.

Nelson Jr./ASICS/TSE
Como Aije é "ação de investigação", fatos notórios podem ser incluídos no caso a pedido do juiz, afirma Herman Benjamin.
Nelson Jr./ASICS/TSE

Para Herman, o fato de a Aije ser, como diz o nome, uma “ação de investigação”, permite a produção de provas pelo juiz, e o artigo 23 da LC 64 autoriza a inclusão de fatos externos aos autos no processo, mesmo depois do prazo – se esses fatos forem “públicos e notórios”. “Aqui não podemos fechar os olhos”, afirmou o ministro.

A tese ainda não foi discutida no TSE, houve apenas o voto do relator. Mas o ministro Gilmar Mendes, presidente da corte, já se adiantou em chamar o argumento de Herman de “falacioso”. Fosse assim, argumentou Gilmar, o tribunal deveria ouvir os executivos da JBS, que fizeram delação premiada e disseram ter financiado campanhas por meio de caixa dois. Ou esperar que o ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil Antônio Palocci conclua sua própria delação. 

De todo modo, “o precedente firmado pode ser perigoso”, avalia a advogada Karina Kufa. Se o TSE concordar com a tese de Herman, dirá a todos os candidatos derrotados em eleições que podem ajuizar ações vazias para instruí-las depois, caso apareçam fatos novos. O resultado será mais judicialização do processo eleitoral, com ainda maior concentração de poderes na Justiça Eleitoral.

“O perigo é o tribunal dar um tiro no pé em aceitar uma ação temerária que vai se transformando no curso do processo”, afirma Karina. “Isso seria um dano ao processo eleitoral. Como seria a defesa se ficássemos sempre acuados, esperando o surgimento de novas provas?”

Causa de pedir
A professora de Direito Eleitoral Ana Claudia Santano, do Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil), também vê problemas na tese do ministro Herman. O ministro se baseia no conceito de “fatos notórios” do artigo 23 da LC 64, mas, segundo a professora, é difícil definir o que seria notório.

“São conceitos do mundo dos fatos, e não do mundo do Direito”, afirma Ana Claudia. “O que é um fato notório? Um boato? Uma fofoca que corre na cidade? Isso não serve para o Direito. O que vejo nesse processo é que estão sendo considerados fatos notórios notícias de jornal, pelo fato de elas terem sido publicadas em jornais diferentes. No afã de condenar, esse artigo é sempre invocado, mas, para mim, ele não se aplica nesse caso.”

Eleitoralistas explicam que o artigo 23 é o que define o juiz eleitoral como o chamado “espectador engajado”. Ou seja, o juiz apenas acompanha o andamento do processo e preside a investigação, mas, se entender que há algum fato que deva ser esclarecido, pede a produção de alguma prova. Mas o que se costuma considerar como “fato público e notório” são realidades que dispensam prova, como o fato de Michel Temer ser presidente do Brasil, ou de Brasília ser o Distrito Federal.

“Não posso usar esse artigo para ampliar a causa de pedir. Se as novas provas têm a ver com o que foi alegado na petição inicial, não há problema. O que não pode é inaugurar um processo novo dentro de um processo já em andamento”, completa Karina Kufa.

Peixe-boi
O constitucionalista Ruy Samuel Epíndola é outro crítico da tese do ministro Herman, mas aponta para questões dogmáticas. O ministro afirma que “fatos notórios” podem ser incluídos ao longo da instrução das Aijes porque elas são “ações de investigação”. Durante a leitura do voto, o ministro disse que “até permitiu" que as defesas fizessem perguntas às testemunhas, e disse não ter notícia desse tipo de “inquirição coletiva” em outras investigações.

Mas, para Espíndola, “jamais o nome do instrumento material ou processual definirá a sua natureza jurídica”, conforme publicou em seu perfil no Facebook na tarde desta quarta. Ele cita alguns exemplos: o Habeas Corpus está no capítulo dos recursos do Código de Processo Penal, mas é “ação de índole constitucional, de cunho mandamental”; já o recurso contra expedição de diploma eleitoral (RCed), “é corrente na doutrina e na jurisprudência, que se trata de ação cível eleitoral, com todas as suas peculiaridades”.

Portanto, considerar que a Aije é uma investigação presidida pelo juiz eleitoral é “inegável equívoco de compreensão do instituto eleitoral”, analisa Espíndola. “E ao inteligir assim o instituto processual, viola o devido processo legal eleitoral. Subverte a dogmática processual. E criará contratempos para todo o Judiciário Eleitoral, caso seu entendimento prevaleça.”

Em um comentário também no Facebook, um amigo de Espíndola foi à natureza para resumir a lição de Teoria Geral do Direito: “O peixe-boi não é peixe e nem boi. Nomen juris, por si só, não pode definir a demanda”.

*Texto editado às 15h15 para correção de informação. A professora Ana Cláudia Santano agora faz parte dos quadros da UniBrasil.

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