Opinião

O tubo de ensaio do financiamento de campanhas eleitorais no Brasil

Autor

  • Ana Claudia Santano

    é professora do programa de pós-graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil — UniBrasil e doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca (Espanha).

8 de junho de 2017, 6h43

Contra fatos, não há argumentos[1]. O Brasil possui, como se uma tradição fosse, uma reforma política interminável, cíclica, com efeitos temporários e dispositivos com perfil transitório. Pelo menos há duas décadas, é aprovada uma lei alterando a legislação eleitoral em ano ímpar,[2] bastando para constatar isso observar a movimentação do Congresso Nacional sempre passado o período eleitoral propriamente dito, realizados em ano par.

Isso se repete em 2017. Nem bem a Lei 13.165/2015, responsável pela última reforma em profundidade, foi aplicada às eleições municipais de 2016, já se desenha uma mudança ainda maior de todo o arcabouço jurídico eleitoral, alcançando a Lei 4.767/65 (Código Eleitoral); a Lei 9.096/95; a Lei 9.504/97; bem como a própria 13.165/15. Para esta tarefa, foi instituída a Comissão Especial para Análise, Estudo e Formulação de Proposições Relacionadas à Reforma Política (CEPOLITI), na Câmara dos Deputados, que apresentou o seu 3° relatório parcial juntamente com um projeto de lei que pretende levar para votação em plenário.

São tantas as alterações pretendidas que se pode afirmar que, caso aprovadas, haverá uma verdadeira mudança de sistema, sendo este objetivo muito claramente percebido nos dois eixos principais das propostas, que é o de alterar o sistema eleitoral a partir da adoção do sistema eleitoral distrital misto, tendo como transição o de listas preordenadas, a ser aplicado, se aprovado, tão somente às eleições de 2018 e 2020.[3]

O outro objetivo é tornar o sistema de financiamento de campanhas quase que inteiramente público, através da criação de um Fundo Especial para o Financiamento da Democracia (FFD), o que torna ambas as medidas uma o encaixe da outra. É esta a razão principal delas virem juntas nessa reforma que se pretende, dando azo a uma profunda modificação no modelo aplicado até hoje.[4]

Vale ressaltar que o surgimento da pressão pela presença marcante do financiamento público para as campanhas eleitorais vem na esteira da escassez de recursos já verificada nas eleições de 2016, primeira realizada sob a proibição de doações de pessoas jurídicas para este fim,[5] além do baixo nível de participação por meio de aportes de pessoas físicas.[6]

Não é possível tratar de todas as mudanças que poderão vir com o projeto de lei proposto pela CEPOLITI. Diante disso, tentarei explicar, da forma mais didática possível, o que eventualmente virá já para as eleições de 2018. Para tanto, exporei cinco pontos que julgo essenciais para compreender esse conjunto de alterações: 1) Sistema de primárias para a escolha dos candidatos; 2) regime de doações de financiamento privado; 3) criação do Fundo Especial para o Financiamento da Democracia; 4) gastos de campanha; 5) prestação de contas.

Aqui cabe uma observação: a redação do projeto de lei não é esclarecedora em muitos quesitos que serão abordados nesse texto, principalmente pela falta de precisão da aplicação de disposições em eleições majoritárias e/ou proporcionais. Portanto, há muitas lacunas a serem sanadas.

Sistema de primárias para a escolha dos candidatos
Com o fechamento das listas de candidaturas, a seleção de candidatos por meio de primárias intrapartidárias é uma das opções existentes ao legislador. Porém, esse procedimento vem junto com outro inédito, que é a realização de campanhas para as primárias com recursos públicos, destinando R$ 18 milhões para a propaganda intrapartidária e para a organização da votação.

Há, também, a possibilidade de se receber doações de pessoas físicas, com limite de até dois salários mínimos, tendo como destinatário final um pré-candidato previamente indicado pelo doador. No entanto, está proibido o autofinanciamento de pré-candidatos.

São estas as únicas disposições sobre esse procedimento, que promete ser ainda mais acirrado daqui em diante. O projeto de lei silencia, por exemplo, como será a prestação de contas desses valores. Supõe-se que será realizada pelo partido político que recebeu o montante, já que eles serão depositados na conta específica de “recursos próprios” das agremiações. Entretanto, isso não passa de suposição, já que não há uma regra objetiva para isso.

Outras lacunas preocupantes são a do controle de gastos dos pré-candidatos, bem como eventuais providências caso uma doação não chegue ao pré-candidato indicado, temas esses que sequer permitem alguma suposição, considerando o total silêncio do projeto de lei.

Regime de doações de financiamento privado
Há, nitidamente, uma expressiva restrição das fontes de arrecadação de recursos privados no modelo proposto pela CEPOLITI, aportando ao sistema apresentado um claro perfil público, ainda que não exclusivo.

O limite de doação de pessoa física, que atualmente é de 10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior às eleições, passa a ter outro critério, o de 10 salários mínimos, sendo aplicável o menor deles. Estes parâmetros também regem o autofinanciamento, tão polêmico nas eleições de 2016. Já sobre o limite para as doações estimáveis, o valor é reduzido para R$ 40 mil.

Pessoas jurídicas continuam proibidas de realizar aportes, e é essa a proibição que faz com que se afirme que o financiamento público das campanhas seja, parafraseando o relatório, a alternativa mais viável, “consentânea com o interesse público”.

Por outro lado, há uma inovação, que é a adoção de medidas de financiamento coletivo de campanhas, podendo ser através de (i) uma plataforma eletrônica disponibilizada pelo Tribunal Superior Eleitoral; (ii) ou um aplicativo eletrônico que realizam este serviço de arrecadação de recursos, desde que: a) tenha prévio cadastro na Justiça Eleitoral; b) se tenha identificação obrigatória de cada um dos doadores e quantias, com atualização simultânea desses dados; c) se emita obrigatoriamente o recibo eleitoral; d) se dê ampla ciência ao candidato e eleitores sobre as taxas cobradas pelo serviço; e) não sejam recursos de qualquer fonte vedada; f) estejam dentro do período de arrecadação no calendário eleitoral.

A crítica aqui é feita sobre a falta de esclarecimento se essas medidas de financiamento coletivo serão somente para candidatos majoritários, ou se poderão ser também para os candidatos das listas. Ainda, nesse último caso, será o partido a eleger o caminho para o financiamento coletivo? Indica-se o candidato favorecido? Os recursos arrecadados irão para a lista completa? O projeto de lei não esclarece esses pontos, o que é muito prejudicial, principalmente para estes que pleiteiam cargos proporcionais.

Criação do Fundo Especial para o Financiamento da Democracia (FFD)
Não há dúvidas que esta providência é a central no projeto de lei tratado. O FFD é responsável pelo financiamento de campanhas majoritárias, proporcionais, bem como de referendos e de plebiscitos. É composto por dotações orçamentárias específicas para este fim. No entanto, ele não substitui o Fundo Partidário, como já que propôs anteriormente, o que mantém a separação dos regimes de financiamento ordinário (de partidos) e extraordinário (de eleições).

Nessa parte, as disposições não são alterações de leis já existentes, mas sim são trazidas pela lei que eventualmente será aprovada por meio do projeto ora comentado, o que demonstra o casuísmo das regras. Essa conclusão é ainda mais reforçada com a clara referência do seu alcance: somente as eleições de 2018. É isso que torna ainda mais experimental o modelo apresentado.

O valor disponível para o FFD para as eleições de 2018 é de R$ 1,9 bilhão para todas as campanhas proporcionais (deputados federal e estadual), bem como para o 1° turno para o cargo de governador e presidente. Já para o 2° turno, são R$ 285 milhões. Para este cálculo, foi considerado o total de despesas percebido nas eleições de 2014, subtraindo 49,68%, diferença esta dos gastos havidos entre as eleições de 2012 e 2016.

Ou seja, segundo a fórmula de cálculo, nas eleições de 2014 foram gastos quase R$ 4 bilhões, montante impressionante diante do contexto de crise que já assolava a sociedade naquele ano. Será muito difícil justificar para a opinião pública — tão implacável —, que embora haja reformas de todas as ordens, estes valores devam ser destinados às campanhas compulsoriamente. Reforça-se aqui o argumento do casuísmo e do experimentalismo do modelo proposto.

Outro tópico delicado é sobre os critérios de acesso aos recursos públicos do FFD. Os partidos devem ter seus registros no Tribunal Superior Eleitoral. No entanto, o valor a receber varia se o partido: (i) apresentar candidato próprio para os cargos majoritários, recebendo mais recursos; (ii) se só participa de coligação nas majoritárias, recebendo menos recursos; (iii) ou se nenhum dos dois, não recebendo nada. Essa estrutura reforça o cumprimento das funções constitucionais dos partidos, o que não se verifica na atualidade com clareza.

Contudo, é também uma acentuação da desigualdade que vem estampada nos critérios de distribuição dos recursos, que possui duas fases: 1) 70% do valor total do FFD são destinados às campanhas aos cargos no Poder Executivo, sendo 40% para os candidatos à Presidência e 60% para os candidatos a Governo de Estado. Os 30% restantes são dirigidos às listas de candidatos no Poder Legislativo, a ser repartido 2% em quotas iguais para todos os partidos com registro no TSE; e 98% proporcional ao percentual de votos obtidos nas últimas eleições gerais para a Câmara dos Deputados.

Se o critério de acesso aparenta ser ameno, a fórmula de distribuição retrata uma estrutura muito desigual que favorece enormemente ao status quo, com grandes tendências de congelamento do sistema de partidos e da composição das casas. Diante da crise democrática que passa o país, é, de longe, o modelo menos adequado que se pode pensar em aplicar.

Existe ainda, aliada às disposições do FFD, a obrigatoriedade da aprovação de um plano de aplicação de recursos pelos partidos políticos (em diante, PAR), a partir da votação da maioria absoluta de seus membros no Órgão Nacional. No entanto, não há qualquer outro detalhe sobre o tema, o que também torna esse tópico uma lacuna enorme do projeto de lei.

Gastos de campanha
A fórmula aplicada em 2016 — pioneira na trajetória histórica do financiamento de campanhas no Brasil —, é totalmente abandonada em 2018, também se limitando a ser adotada somente nesse pleito.

Para os candidatos à Presidência, o limite é de R$ 150 milhões no 1° turno, sendo de 50% desse montante no 2° turno.

Para o cargo de governador, senador, deputados federal, estadual e do Distrito Federal, o limite é calculado com base no número de eleitores, tendo como circunscrição o Estado, variando entre R$ 4 milhões até R$ 30 milhões, dependendo também do cargo que se compete.

Somente é possível custear até 70% do limite de gastos com recursos públicos. Caso o partido receba mais do que isso, o excedente pode ser transferido para a federação de partidos em outras candidaturas, ou até mesmo retornarem ao Tesouro Nacional. Os recursos públicos eventualmente não utilizados também regressam ao Tesouro Nacional. Há, portanto, 30% que os partidos deverão buscar de financiamento privado, em uma nítida inspiração do modelo alemão. Contudo, vale lembrar da restrição de recursos privados nessa nova proposta.

Prestação de contas
É, notoriamente, um dos pontos más frágeis do sistema brasileiro de financiamento de campanhas, e essa condição não se altera com o projeto de lei, ou seja, não há nenhum aprimoramento de medidas de controle.

A prestação de contas das listas de candidatos compete ao partido responsável por cada uma, não havendo qualquer disposição complementar a isso, a não ser a necessidade de consolidação dos dados pelas agremiações (proporcionais e majoritários) antes do seu envio à Justiça Eleitoral. Portanto, pretende-se adotar uma espécie de monopólio da apresentação de prestação de contas.

No entanto, novamente o projeto de lei silencia para situações como a não apresentação das contas pelas agremiações. Afinal, os candidatos das listas serão penalizados com a não quitação eleitoral caso sejam afetados pela negligência dos partidos? O que se fazer nessas situações? Não há resposta.

Mantêm-se as prestações de contas a cada 72 horas em período eleitoral; a parcial e a final, alterando-se apenas a data de entrega da parcial, que passa para 31 de agosto.

No mais, nenhuma novidade sobre procedimentos, sanções, etc., o que se lamenta.

Algumas observações finais
Como considerações finais, preocupa-me muito que estamos novamente nos equivocando no caminho para a depuração do sistema de financiamento de campanhas. Durante uma crise política dessa envergadura como é a atual, não há, ao meu sentir, um ambiente para se trocar totalmente de modelo, sendo, na realidade, longe do ideal, algo que é ainda mais reforçado pela quantidade de regras transitórias e casuísticas sem nenhum debate mais profundo com a sociedade.

Embora eu sempre estive de acordo com medidas de financiamento público como forma de investimento na democracia, e sendo a democracia um assunto de todos, nada mais justo que todos paguemos a conta, conjugando essa necessidade com medidas de financiamento privado, com total transparência.

O fato é que esse processo está ocorrendo totalmente carente de reflexão mais aprofundada. Outra vez, prefere-se tornar o problema superficial, não combatendo o seu cerne. Não há como admitir que toda essa mudança seja, na verdade, reação a um problema que se mostra tão grave, fazendo da legislação de financiamento de campanhas um laboratório de experimentos contínuos.


[1] Texto que serviu de base para a palestra proferida no 7° Congresso Brasileiro de Ciência Política e Direito Eleitoral do Piauí, realizado nos dias 01 e 02 de junho de 2017, na cidade de Teresina, Piauí.

[2] Isso já ocorreu em ano par. No entanto, isso vem de encontro com o disposto no art. 16 da Constituição Federal, que estabelece o princípio da anualidade, podendo afetar as disposições aprovadas, como ocorreu com a Lei 11.300/2006, chamada, como tantas outras, de “minirreforma” eleitoral. Eis o teor do art. 16 da Constituição: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”

[3] Sobre o tema, sugere-se a leitura de CYRINEU, Rodrigo. Sistema de votação de lista fechada contraria o princípio democrático. Publicado em 26 de maio de 2017, no site Consultor Jurídico. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2017-mai-26/rodrigo-cyrineu-sistema-votacao-lista-fechada-nao-salutar> Acesso em 07 jun. 2017.

[4] Há muitas outras sugestões de alteração de regras, como no que se refere a registro de candidatos; federação de partidos; proibição de coligações para eleições proporcionais; estabelecimento da competência da Justiça Eleitoral para julgar disputas intrapartidárias; etc. No entanto, é clara a concentração dos esforços em torno ao financiamento de campanhas e ao sistema eleitoral.

[5] Vid. ADI 4.650, STF. Rel. Min. Luiz Fux. Isso se extrai, inclusive, da justificativa dada pelo relator da CEPOLITI, Dep. Fed. Vicente Cândido (PT/SP), ao rejeitar a sugestão n° 12 ao PL do Relatório, dos Deputados Chico Alencar e Luiza Erundina (PSOL), que propunha a supressão do art. 17-B da Lei 9.504/97, o qual institui o FFD: “Com a proibição do financiamento empresarial de campanhas eleitorais, o financiamento público se apresenta como a alternativa mais viável e consentânea com o interesse público e a criação de um Fundo Público com regras específicas que garantam uma distribuição equilibrada dos recursos públicos entre os partidos e as diversas campanhas eleitorais legislativas e executivas, majoritárias e proporcionais, mostra-se, a nosso ver, como a solução mais adequada para o atual momento da política nacional.”

[6] Essa pressão, de fato, surgiu já na apresentação do Projeto de Lei n° 6368/2016, Câmara dos Deputados, de autoria do Dep. Marcus Pestana (PSDB-MG). Este PL visa à adoção de um sistema exclusivamente público de financiamento de campanhas eleitorais e de partidos políticos, a partir da criação de um Fundo Especial para o Financiamento da Democracia (daqui a ideia de criação deste fundo), composto por recursos oriundos da arrecadação do imposto de renda de pessoa física, com critérios de acesso a partir da representação partidária no Congresso Nacional, e de distribuição dos recursos que se assemelham aos utilizados para o vigente Fundo Partidário. Para um estudo completo sobre este PL, cf. SANTANO, Ana Claudia. Parecer jurídico – Projeto de Lei 6368/2016, Câmara dos Deputados. Revista eletrônica Direito e Política, v. 12, p. 462-481, 2017.

Autores

  • Brave

    é professora do programa de mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, do Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, Espanha.

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