Anuário da Justiça

Eleições só terminam depois que a Justiça Eleitoral dá a última palavra

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5 de junho de 2017, 7h27

*Reportagem especial do Anuário da Justiça Brasil 2017, lançado na última quarta-feira (31/5) no Tribunal Superior Eleitoral.

O Brasil é a quarta maior democracia do mundo, em termos populacionais, atrás de Índia, Estados Unidos e Indonésia. Tem um sistema de votação dos mais modernos do mundo, com mecanismos de coleta e aferição de votos mais confiáveis, rápidos e à prova de falhas do planeta. A urna eletrônica é um sucesso absoluto. Por causa dessa tecnologia, o Brasil é dos poucos países que anunciam os resultados de suas eleições poucas horas depois do fim do horário de votação. As eleições municipais de 2016 são exemplo disso. Foram 144 milhões de eleitores que votaram em 16.635 candidatos a prefeito e 463.375 mil candidatos a vereador em 5,5 mil municípios. As urnas se fecharam às 17h. Às 20h os prefeitos do país inteiro já eram conhecidos dos eleitores.

Roberto Jayme/Ascom/TSE
Ministros do TSE em julgamento no Plenário.
Roberto Jayme/Ascom/TSE

Nada disso significa que o resultado das eleições esteja dado. Em 2016, quando as votações se encerraram, em 147 municípios não se sabia quem era o prefeito eleito, já que o candidato mais votado teve o registro de candidatura indeferido e tinha recurso pendente de julgamento no TSE. Hoje, o país tem 4.444 candidatos esperando recursos da Justiça Eleitoral, entre vereadores e prefeitos. Metade disso teve o registro de candidatura indeferido e aguarda decisão. Outra metade teve o deferimento do registro impugnado. E outros 16,2 mil candidatos tiveram seus registros indeferidos. O TSE recebeu mil ações somente em relação aos municípios que tiveram segundo turno. Ou seja, o terceiro turno ainda está longe de terminar. Há ainda em tramitação na corte casos das eleições de 2014. Em maio de 2017, o TSE decidiu cassar os mandatos do governador e vice do estado do Amazonas, reeleitos em 2014, por acusação de compra de votos. Por maioria, determinou a convocação de novas eleições.

Mas é de 2015 que vem o principal processo da história da Justiça Eleitoral. Uma ação de investigação judicial de autoria do PSDB, o partido derrotado na disputa presidencial, pede que a chapa vencedora das eleições de 2014 seja cassada por abuso de poder econômico durante as eleições. É a primeira vez que ação do tipo chega à corte, embora milhares delas já tenham questionado a eleição de prefeitos e centenas as de governadores. Caso o tribunal concorde com a tese do PSDB, o presidente Michel Temer (PMDB), que figurava como candidato a vice-presidente na chapa vencedora, perde o mandato, e quem assume é o presidente da Câmara dos Deputados, com a tarefa de convocar novas eleições no prazo de 90 dias. Para todos os efeitos, as eleições de 2014 só terminam em 2017. Ou depois.

Trata-se de julgamento histórico, até do ponto de vista jurisprudencial. O entendimento atual do TSE é o de que o beneficiário da ilicitude eleitoral também deve ser alcançado pela punição, por mais que não seja o titular do governo. Vice-prefeitos e suplentes já foram cassados com base nessa tese. No caso da chapa Dilma-Temer, o TSE vai ter de decidir se isso se aplica a chapas concorrentes à Presidência da República.

TSE

O caso da chapa vencedora de 2014 é atípico em todos os sentidos. O que os números mostram é a importância que a Justiça Eleitoral vem ganhando na democracia brasileira. É a decisão de um grupo de juízes originários de outros tribunais ou designados pelo presidente da República que vai determinar, em última instância, quem vai comandar a cidade. Ou o estado. Ou o país. O ministro do STF, Dias Toffoli, ex-presidente do TSE, acredita que essa realidade começou a se moldar com a Lei 9.504/1997, que criou a figura da captação ilegal de votos. Ali, disse Toffoli em entrevista à revista eletrônica ConJur, os poderes da Justiça Eleitoral de intervir nas eleições foram ampliados a ponto de permitir que um juiz de primeiro grau casse uma candidatura ou anule uma diplomação.

Antes disso, segundo o ministro, a legislação eleitoral tinha o objetivo de evitar e coibir abusos, mas as interferências eram pontuais. Mesmo assim, em 2014, o TSE decidiu punir, com redução do tempo de TV, as duas campanhas que estavam no segundo turno das eleições gerais, PT e PSDB, por falta de “conteúdo programático” nas campanhas. A interferência chegou ao ponto de obrigar as defesas das duas coligações a combinar de os candidatos não se atacarem mais, para evitar a perda de tempo de propaganda na reta final das eleições.

A situação piorou com a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010), que proíbe a candidatura de quem tiver condenações penais ou por improbidade administrativa. Para o ministro do STF, Gilmar Mendes, atual presidente do TSE, a lei é “uma roleta russa com todas as balas dentro”. Ele critica a criação de barreiras a candidaturas, por entender que o juiz do candidato é o povo, que vota. O ministro também é um notório crítico da redação da lei, anunciada como “de iniciativa popular”, mas escrita por eleitoralistas.

Segundo Gilmar Mendes, o texto é cheio de nuances que permitem muitas interpretações, o que causa insegurança tanto aos intérpretes como aos eleitores. Durante um julgamento em que se discutia que tipos de condenação por improbidade levariam à cassação de um prefeito com base na Ficha Limpa, Gilmar Mendes, que presidia a sessão, disparou: “Analfabetos não podem fazer leis, pessoas despreparadas não podem fazer leis, porque, depois, isso dá uma grande confusão no Judiciário”, disse. “Temos de ter muito cuidado com esse entusiasmo juvenil na feitura de leis, porque resulta nesse tipo de debate.”

O que advogados apontam como o maior problema da Justiça Eleitoral é o mesmo que apontam no Judiciário de forma geral: mudanças de entendimento que abalam a jurisprudência. Pode ser que a tese dos advogados simplesmente confirme a de Gilmar Mendes: leis mal feitas podem ser interpretadas de maneiras diferentes. Num exemplo recente, o ministro do STJ, Napoleão Nunes Maia Filho, no exercício da Presidência do TSE, autorizou a posse do candidato mais votado de Primavera do Leste (MT), que teve o registro de candidatura indeferido, mas tinha recurso pendente de julgamento pelo tribunal.

Com isso, cassou uma liminar proferida pela ministra Rosa Weber, para quem o registro não tinha efeito suspensivo e, portanto, o candidato deveria continuar inelegível até decisão em contrário. Num espaço de dois meses, Primavera do Leste teve dois prefeitos por causa de decisões judiciais. Houve ainda o caso de Bonito (MS), no qual o candidato mais votado em 2012 teve suas contas reprovadas pelo Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul e foi cassado. Em junho de 2016, o ministro Luiz Fux concordou com o recurso que o candidato apresentou ao TSE, mas o manteve afastado, para evitar a troca no comando da cidade a seis meses das eleições. Para o ministro, o interesse dos moradores da cidade era a estabilidade, e não a posse do candidato mais votado nas eleições.

O que mais preocupa, em matéria de Direito Eleitoral, ainda é a Lei da Ficha Limpa. O tribunal ainda não definiu qual deve ser a interpretação da alínea “l, do inciso I, do artigo 1º da Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990). Ela diz que é inelegível quem tiver sido condenado por ato doloso de improbidade administrativa que tenha resultado em dano ao erário e em enriquecimento ilícito. Em 2014, ao julgar recurso do deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), o TSE definiu que os dois critérios devem estar presentes ao mesmo tempo.

Dois anos depois, o TSE manteve no cargo o prefeito de Quatá (SP), cuja condenação falava apenas em dano ao erário, sem se referir a benefício pessoal com a improbidade. Provocada por Herman Benjamin, a corte começou a discutir que, se a intenção da Lei da Ficha Limpa é impedir que administradores ímprobos sejam eleitos, não faz sentido permitir que alguém que lesou o erário possa continuar na vida pública. Ou seja, onde a lei diz “e”, o tribunal quer substituir por “ou”.

Segundo o ministro Herman, a interpretação de que é necessária a presença dos dois critérios é “gramatical”, mas, “segundo as lições de hermenêutica”, os métodos de interpretação devem ser aplicados em conjunto. “Considerar inelegível quem causa dano ao erário e enriquece a si ou a terceiros, e assegurar elegibilidade a quem pratica ‘apenas’ um ou outro é incompatível com o parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição e, ainda, com os valores e princípios que norteiam a administração pública”, disse no caso de Quatá. “A conjunção ‘e’, utilizada em ‘lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito’, não significa que se exija presença de ambos em decreto condenatório de suspensão de direitos políticos.”

Dois meses depois, o TSE aplicou a tese de Herman Benjamin e declarou inelegível candidato condenado por improbidade cuja acusação não falava em dano ao erário. Para concordar com Herman, o TSE teve de rever outro entendimento importante definido em 2014: o de que a Justiça Eleitoral não pode ler o acórdão e concluir o que a Justiça comum não disse. Foi outra jurisprudência fixada no caso Maluf. O deputado não havia sido condenado por enriquecimento ilícito, apenas por dano ao erário. Mas o TSE, quando julgou o recurso, disse que, do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, era possível depreender que houve enriquecimento ilícito, embora isso não tivesse sido dito. Nos embargos de declaração, no entanto, a corte voltou atrás.

Em dezembro de 2016, por quatro votos a três, o TSE entendeu que não é necessário estar escrito “enriquecimento ilícito” no acórdão da Justiça comum se é isso o que ele quer dizer. No caso de fraude a licitação em Foz do Iguaçu (PR), a decisão falava em “diferença imotivada” entre o valor contratado e o valor pago. Venceu a tese de Herman Benjamin, acompanhada por Luiz Fux, Henrique Neves e Rosa Weber. No caso de Quatá, Fux havia chamado atenção para a tese de Herman. “Temos de ter consciência de que não estamos num governo de juízes”, disse. “No Estado Democrático de Direito, a instância hegemônica é o Parlamento.”

Anuário da Justiça Brasil 2017
Editora: ConJur
Páginas: 330 páginas
Preço: R$ 40 (versão impressa); R$ 20 (versão on-line)
Onde comprar exemplares: Livraria ConJur
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