Opinião

Norma anacrônica da Ancine contraria convergência tecnológica

Autor

  • Gesner Oliveira

    é ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (1996-2000) e da Sabesp (2006-2010) professor de economia da FGV-SP doutor em Economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e sócio da GO Associados. Coordena o grupo de Economia da Infraestrutura & Soluções Ambientais da FGV.

4 de junho de 2017, 10h32

A fusão da Time Warner com a AT&T reacendeu o debate regulatório sobre a TV por assinatura no Brasil. Desde a promulgação da Lei 12.485, de 11 de setembro de 2011, conhecida como Lei do Serviço de Acesso Condicionado (Lei do SeAC), a regulação parecia estabelecida. A referida norma foi criada para destravar principalmente a distribuição de TV por assinatura, permitindo a participação das operadoras de telecomunicações nesse mercado.

Também previa proteção e estímulos à produção de conteúdo nacional, como a criação de cotas que obrigam os canais a dedicarem 3,5 horas semanais de seu horário nobre à veiculação de conteúdos nacionais — dos quais, pelo menos metade deve ser produzida por uma produtora brasileira independente.

Todavia, a lei definiu rigorosas travas a qualquer indício de verticalização. Por ocasião de sua elaboração, o efeito disruptivo sobre o mercado da disponibilidade de conteúdo sob demanda (streaming) não era tão claro. Mas tal fato deve ser levado em consideração, especialmente para avaliar corretamente o poder de mercado das empresas e os impactos de uma fusão no setor.

O mercado audiovisual no Brasil e no mundo evoluiu significativamente desde a criação da Lei do SeAC, em especial em virtude do crescente alcance das plataformas online. O segmento de TV por assinatura brasileiro experimentou forte retração nos últimos dois anos, ao passo que o streaming cresceu significativamente no mesmo período. A título de exemplo, a Netflix tornou-se um grande e importante player.

O chamado over-the-top (OTT) provocou um crescimento sem precedentes na variedade de opções para consumo e produção de conteúdo audiovisual. Assim, o debate regulatório precisa se adaptar aos novos tempos. Três pontos merecem destaque.

Em primeiro lugar, não se pode ignorar a convergência tecnológica para entender o mercado. A lei criou rigidez em parte do mercado, a de TV por assinatura, e desconsiderou o streaming, o que é inconcebível na atualidade.

Em segundo lugar, há uma descoordenação decorrente da existência de duas agências reguladoras distintas se ocupando do mesmo assunto: a Ancine (Agência Nacional do Cinema), ligada ao Ministério da Cultura, e a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). A complexidade gerada pela sobreposição de competências é enorme e o resultado é a insegurança jurídica.

Em terceiro lugar, verifica-se a nefasta propensão do regulador exorbitar, indo muito além daquilo que a lei previu. É o caso de norma da Ancine que coloca obstáculos à concorrência e ao desenvolvimento do setor.

A Lei 12.485/11 foi incapaz de atender os efeitos desejados de promover o segmento. Mesmo após sua promulgação, o mercado de TV por assinatura se mantém concentrado, sem que a oferta de canais brasileiros não prosperou após a criação deste marco regulatório.

É notório que a Sky detém somente metade do mercado da Net, atual líder de mercado. Como se pode argumentar que a Sky teria poder determinante de mercado se a operadora não detém parcela suficiente do mercado para exercer dominância?

Também é pouco crível que a Time Warner estabeleça exclusividade para a Sky, uma vez que, pelo menos no Brasil, não é a maior programadora de conteúdo. Logo, pelos mesmos motivos, a suposta prática resultaria em significativa perda de sua participação de mercado. Para se falar em concentração vertical, seria necessário que, pelo menos, um elo da cadeia tenha poder significativo de mercado, o que não é o caso.

Por fim, supondo que a Ancine, a Anatel e o Cade decidam pelo veto da operação, nada impede que a Time Warner oferte o seu conteúdo de forma exclusiva via plataforma de streaming, como já ocorre com o Netflix, por exemplo.

Os próprios radiodifusores e canais de TV por assinatura brasileiros já estão seguindo esta tendência e utilizando novas plataformas além da TV tradicional para distribuir seu conteúdo. Nesse caso, o dano maior seria para as próprias operadoras de TV por assinatura, que poderiam ter a demanda ainda mais reduzida, além da retração substancial que vem sofrendo em decorrência do streaming.

Portanto, eventual posicionamento contrário à fusão da Time Warner com a AT&T seria totalmente contrário às boas práticas regulatórias e concorrenciais. Não faria sentido proibir uma operação pró-concorrencial em função de uma norma anacrônica e ilegal da Ancine que está em contradição à inexorável convergência tecnológica.

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