Opinião

PEC 412/2009 poderá transformar
PF em agência de espionagem

Autor

  • Magne Cristine Cabral da Silva

    é escrivã da Polícia Federal aposentada diretora de Comunicação da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) da Ordem dos Policiais do Brasil (OPB) e do Instituto Federal de Fiscalização (IFF). É pós-graduada em Direito Público especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública e bacharel em Direito e Administração de Empresas.

3 de junho de 2017, 9h00

Em tempos de operação “lava jato”; corrupção envolvendo os três poderes; delações premiadas contra parlamentares, governadores, ministros de Estado e de tribunais superiores, ex-presidentes e até do atual presidente da República, a chamada “autonomia da Polícia Federal” é um tema, à primeira vista, simpático para a sociedade.

Porém, a “autonomia da PF”, prevista na Proposta de Emenda Constitucional 412/2009, apelidada de “PEC dos delegados”, menos que oportuna, é uma proposta oportunista e temerária. Sob o pretexto de fortalecer a PF, corre o risco de enfraquecê-la, ou até extingui-la, além de representar um risco ao estado democrático de direito.

É o que se pode concluir pela simples leitura do texto da PEC 412, de autoria do então deputado Alexandre Silveira (PPS/MG), que propôs a seguinte alteração no primeiro parágrafo do art. 144 da Constituição Federal, para dispor sobre a organização da PF:

Constituição Federal

PEC 412/2009

 

 

Art. 144. (…)

§1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

(…)

Art. 1º O parágrafo 1º do art. 144, da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 144. (…)

§1º Lei Complementar organizará a polícia federal e prescreverá normas para a sua autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de elaborar sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, com as seguintes funções institucionais:”

Ao mudar a redação do artigo 144 da Constituição, a PEC 412/2009 poderia provocar verdadeiro desmanche da PF, com a exclusão do texto constitucional de sua natureza jurídica (órgão permanente), forma de organização (organizado e mantido pela União) e estrutura funcional (estruturado em carreira).

Além disso, a PEC 412/2009 também suprime a PF do texto constitucional, sujeitando-a a lei complementar, a ser elaborada pelo Congresso Nacional, como um cheque em branco, sem qualquer parâmetro, nem prazo definido.

Mais grave ainda: com a PEC 412/2009, a PF poderia até ser extinta. É que a criação ou extinção de qualquer órgão público, como unidade integrante da Administração Pública que desempenha atribuições específicas do Estado, se dá através de lei de iniciativa do presidente da República (CF, art. 48, XI). Assim, quando o constituinte originário definiu a PF como “órgão permanente”, visou blindá-la contra o risco de ser extinta por lei ordinária. Essa proteção constitucional seria excluída pela PEC 412/2009.

Por outro lado, a PEC 412/2009 retiraria do órgão o status de “organizada e mantida pela União”. Ou seja, o Poder Executivo Federal deixaria de ter a função de administrar as atribuições da PF na segurança pública, assim como o seu diretor-geral não estaria mais subordinado ao Ministro da Justiça. A PF poderia, inclusive, passar a ser organizada e mantida pelo Poder Legislativo, a depender do que fosse definido pelos parlamentares, em lei complementar.

E mais: ao extinguir a prerrogativa de órgão “estruturado em carreira”, a PEC 412 interferiria na carreira policial federal e na estrutura dos cargos policiais. É mais um item em que a proposta viola a competência privativa do presidente da República para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal (CF, art.84, II e VI, a). Também desrespeita o princípio constitucional da separação de poderes (CF, art.60, §4º, III , cláusula pétrea no ordenamento constitucional.

É importante analisar o que representaria, de fato, a proposta de autonomia funcional, administrativa e orçamentária. Será que a Polícia Federal precisa mesmo de mais espaço para atuar ou alcançou autonomia investigativa nunca antes vista? A operação “lava jato” é o melhor exemplo de que a PF já tem autonomia.

A “autonomia funcional” significa que a PF atuaria independente do Poder a que estivesse vinculado, não receberia influências para o exercício de sua atividade-fim e poderia adotar as medidas legais perante agentes, órgãos ou instituições, sempre que necessário. Ou seja, a Polícia Federal não precisaria pedir permissão para muitas decisões ao presidente da República, por meio do Ministro da Justiça, ao qual hoje está vinculado.

A “autonomia administrativa” asseguraria à PF a prerrogativa de editar atos normativos relacionados à gestão de pessoal (admissão, exoneração, aposentadoria etc) sem se sujeitar ao juízo de mérito por qualquer outro órgão ou Poder. A Defensoria Pública, por exemplo, no dia seguinte em que obteve autonomia funcional, concedeu auxilio moradia para todos os defensores públicos do país.

Já a “autonomia orçamentária” concederia à PF dotação própria na lei orçamentária, com poder de elaborar sua própria proposta no Orçamento da União. Ora, para blindar o órgão de cortes orçamentários basta definir uma vinculação constitucional de sua receita, tal como hoje existe para a saúde (artigo 198, parágrafo 2º, I) e educação (artigo 212). Ou seja, restringiria a liberdade dos membros do Executivo ou dos legisladores de dispor do Orçamento como lhes aprouver, ficando a dotação orçamentária da PF vinculada à expressa definição constitucional.

Fica claro que a PEC 412 não trata da “autonomia investigativa”, pois esta a PF já possui, exatamente por força do art. 144 da CF, que a PEC tenta alterar. Com objetivos corporativistas e não declarados, campanhas de mídia patrocinadas por entidade classista tentam induzir a sociedade a erro, para angariar apoio de milhares de pessoas bem intencionadas e usar isso como instrumento de pressão junto aos parlamentares para o êxito da proposta.

A PEC 412/2009 também contém incorreções jurídicas. Como órgão público definido na CF, seria necessária prévia alteração em sua natureza jurídica para eventual concessão de autonomia. Isto porque autonomia funcional, administrativa e orçamentária são prerrogativas do ente federativo ao qual o órgão público é vinculado. É o caso da PEC 202/2016 — que visa conferir autonomia orçamentária, financeira e funcional às polícias civis —, cuja proposta é transformar aqueles órgãos policiais em autarquias especiais para conceder-lhes as ditas autonomias.

Outra possibilidade de autonomia à PF seria a alteração de sua natureza jurídica de órgão público para instituição independente, no próprio texto constitucional, como é o caso do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, que por isso detêm autonomia.

Contra a PEC 412/2009, já se manifestaram o Ministério Público Federal (MPF), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) e a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef).

Através da Nota Técnica 7º CCR, 4/2015, o MPF concluiu que “não se pode vislumbrar qualquer possibilidade de que as instituições policiais se tornem independentes e autônomas, pois isso não condiz com os conceitos de democracia e república. Não há exemplo histórico de democracia que tenha sobrevivido intacta quando Forças Armadas ou polícias tenham se desvinculado de controles. Em suma, não há democracia com braço armado autônomo e independente”.

Já a ANPR emitiu a Nota Técnica PRESI/ANPR/ACA 014/2015 que apontou: “A proposta pretende retirar do Ministério Público o controle externo da atividade policial e o exercício da supervisão criminal, pois, ao se conferir — ainda que por via transversa — independência funcional e administrativa à polícia, está-se, em verdade, mitigando o artigo 129-VIII e VIII da Constituição, o que representa desenganado retrocesso em uma conquista histórica de, pelo menos, 20 anos. É preciso lembrar que a Constituição de 1988, para coibir os abusos praticados pela polícia durante a ditadura militar, consagrou, como peça fundamental do referido sistema de freios e contrapesos, o controle externo da atividade policial ao Ministério Público”.

O subprocurador-geral da República, Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos, em artigo intitulado Por que polícia não pode ter autonomia, indicou os reais interesses da proposta: “Se a PF já dispõe da autonomia investigativa que diz buscar, no fundo, o que almeja com essa PEC é o mesmo objetivo visado com tantas outras reivindicações normativas pretéritas e futuras: concentração de poder, isto é, atributos estranhos à função de investigar crimes. A autonomia facilmente se converteria em soberania, pois seria virtualmente impossível resistir às pretensões de uma polícia dotada de tamanhos poderes”.

A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), que representa quinze mil policiais federais, emitiu a Nota Técnica 001/2016-Fenapef, na qual afirmou: “A PEC 412 é um proposta meramente corporativista dos delegados de polícia para que possam atuar com independência e discricionariedade, podendo definir desde os próprios salários, até “o que” e “quem” será investigado. As referidas propostas não passam pelo democrático processo de discussão interna antes de ser oferecida ao público e ao Congresso Nacional e, definitivamente, não traduzem o anseio da maioria da corporação. Em última análise, não refletem a busca por eficiência no trabalho da Polícia Federal, deixando a olhos vistos o viés corporativista em detrimento do bem coletivo e da melhoria da Segurança Pública cobrada pela sociedade”.

Se a PEC é tão absurda, resta indagar: o que estaria por trás dessa proposta de emenda? Quem a defende?

A PEC 412/2009 é uma proposta meramente corporativista defendida por uma associação de delegados que representa cerca de 10% do efetivo policial da PF. A mesma que defende a dispensa do atual diretor-geral do órgão, com a pretensão de indicar o novo comandante para a PF, através de lista tríplice, escolhida apenas pelos delegados, pois, com a recente publicação da Lei 13.047/2014, o cargo de diretor-geral é privativo de delegado de Polícia Federal.

A estratégia da associação com a PEC 412/2009 é ampliar, de forma ilimitada o poder do cargo de delegado de polícia e do próprio órgão, pois, com autonomia e independência, a PF estaria livre do controle do Ministério Público e do Poder Executivo e não prestaria contas a ninguém, podendo definir quem deveria ou não ser investigado. A PF poderia se transformar numa espécie de agência de espionagem autônoma. Como força pública de segurança, a PF teria mais poderes que as Forças Armadas.

Nos últimos anos, várias leis vêm ampliando as prerrogativas do cargo de delegado de polícia. Receberam do legislador ordinário a dupla e inédita classificação “jurídico-policial” do cargo, através da Lei 12.830/2013. Mas enquanto os cargos de natureza jurídica, como juízes e promotores, são impedidos de ocupar cargos públicos eletivos, os delegados de polícia não têm essa restrição e acumulam as prerrogativas inerentes à função policial, como a aposentadoria especial pelo exercício da atividade de risco.

Novas prerrogativas vêm sendo tentadas por entidades classistas para o cargo de delegado de polícia, como nos projetos de lei sobre delegado-conciliador (PL 1.028/2011), delegado-promotor (PL 5.776/2013 – Substitutivo), delegado juiz de instrução e garantias (PEC 89/2015) e delegado como autoridade policial exclusiva (PL 6.433/2013 e PL 7/2016). Alguns projetos de discutível constitucionalidade foram aprovados sem muita resistência, fenômeno que, em tempos de investigações contra dezenas de políticos, deixa dúvidas sobre os interesses em jogo.

Essas alterações legislativas vêm promovendo transmutações do cargo de delegado de polícia, desvirtuando-o do exercício da função policial definida na Constituição de 1988. Além disso, promovem impactos negativos na carreira policial federal, com reflexos no funcionamento do órgão, que hoje já convive com perseguições internas, pois os delegados possuem a percepção equivocada de que só eles fazem parte da atividade-fim policial.

Mais do que nunca, é necessário que instituições com a missão constitucional de promover a persecução penal e a prestação jurisdicional (PF, MPF e JF), estejam estruturadas, íntegras e livres de interferências, para continuarem o trabalho de prevenir e reprimir as práticas criminosas, observando os princípios constitucionais. Para isso, é preciso eliminar riscos de enfraquecimento da estrutura orgânica ou que ameacem atingir os relevantes serviços prestados pela PF no combate à criminalidade em todas as suas formas, em especial à corrupção e ao crime organizado.

Isso começa pela rejeição imediata da PEC 412/2009 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e com a formulação de uma proposta de fortalecimento da Polícia Federal, que promova a sua eficiência (CF, art.144, §7º), com a participação de todas as entidades representativas dos servidores do órgão, e que efetivamente atendam o interesse público, para além de vantagens pecuniárias e corporativistas.

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    é diretora de Comunicação da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), escrivã da Polícia Federal há 15 anos e diretora da Ordem dos Policiais do Brasil (OPB). É pós-graduada em Direito Público, especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública, bacharel em Direito e Administração de Empresas.

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