Ambiente Jurídico

O custeio das perícias no processo coletivo ambiental

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

3 de junho de 2017, 8h05

Spacca
A questão do custo do processo é um dos temas centrais do acesso à Justiça em geral e, como não poderia ser diferente, do acesso à Justiça em matéria ambiental. Partindo da constatação de que, como regra, o processo judicial tem um custo e que esse custo, frequentemente, é elevado, a preocupação que se tem tido no Brasil e nos mais diversos países é a de que o custo do processo não constitua obstáculo para o acesso à Justiça em matéria ambiental[1].

Nesse sentido, é preciso que o custo do processo ambiental não seja fator de desencorajamento da propositura de demandas coletivas em defesa do meio ambiente, nem seja fator que dificulte a atuação dos demandantes no curso do procedimento, diante das despesas que devem ser realizadas para a prática de atos processuais e para a produção da prova[2].

Daí por que se exige, no processo coletivo ambiental, a adoção de soluções específicas e apropriadas para o seu regime financeiro, orientadas a não desestimular o ajuizamento de demandas destinadas à proteção do meio ambiente e a não limitar a atividade processual dos demandantes, que defendem em juízo direito de toda a coletividade, notadamente no que se refere à atividade instrutória.

Por essa razão é que, em termos gerais, os estudos e modelos relacionados ao custo do processo propõem, frequentemente, como soluções, a exoneração dos legitimados ativos do ônus do adiantamento das despesas processuais e a isenção total ou parcial dos autores da demanda ambiental dos encargos decorrentes da sucumbência, na hipótese de improcedência do pedido.

Portanto, o que se almeja, pelo menos no plano ideal, em matéria de processo coletivo ambiental é, invariavelmente, um sistema de acesso gratuito à Justiça, com a eliminação de todas as barreiras financeiras ao ajuizamento de demandas em defesa do meio ambiente e à atividade processual dos demandantes.

No Brasil, a opção do legislador, por intermédio da disciplina da ação civil pública pela Lei 7.347/1985 e pelas normas processuais do CDC, foi no sentido da adoção de regras especiais sobre a matéria, distintas do regime comum do CPC, seja o de 1973, seja o de 2015.

De fato, nos termos do artigo 18 da Lei 7.347/1985, nas ações civis públicas “não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais”. Assim, a Lei 7.347/1985, no âmbito do processo coletivo, excepcionou a regra tradicional do processo individual, do ônus do adiantamento das despesas processuais pelo interessado na realização de determinado ato ou diligência, com reembolso final pelo vencido, a quem cabe, também, o pagamento dos honorários do advogado da parte vencedora, ressalvados os casos de assistência judiciária gratuita (artigos 19 e 20 do CPC/1973 e artigo 82 do CPC/2015).

É importante observar que, na interpretação dada pela doutrina e pela jurisprudência ao artigo 18 da Lei 7.347/1985, a exoneração do adiantamento das despesas processuais (incluindo os honorários periciais) e da incumbência de arcar com os encargos da sucumbência, salvo litigância de má-fé, está restrita aos autores da ação civil pública (legitimados ativos), não beneficiando os réus[3]. Além disso, a isenção dos encargos da sucumbência, salvo má-fé processual, abrange todos os autores, e não apenas as associações civis[4].

Ou seja: o sistema brasileiro, na LACP, adotou, em relação ao autor da demanda, a gratuidade do acesso à Justiça em matéria ambiental, salvo hipótese de ocorrência de má-fé.

No que se refere à questão do ônus do adiantamento das despesas processuais, essa opção do Direito brasileiro foi importante, porque ela não só facilitou o ingresso em juízo na defesa do meio ambiente pelos legitimados ativos, devido à isenção das custas iniciais, como também assegurou a adequada participação dos demandantes no curso do procedimento, sobretudo no tocante à atividade instrutória, que implica, frequentemente, gastos importantes, sobretudo com a realização de perícias, muitas vezes imprescindíveis nas ações civis públicas e frequentemente de alta complexidade e custo elevado. Nesse contexto, se as perícias tivessem que ser custeadas pelos demandantes, poderia resultar inviabilizada a prova de lesões ou ameaças de lesões ao meio ambiente.

Pertinente insistir no fato de que a norma do artigo 18 da Lei 7.347/1985 é norma especial sobre a matéria, que prevalece sobre as normas gerais do CPC relativas ao regime financeiro do processo. Nesse sentido, as normas do CPC têm aplicação apenas subsidiária na disciplina da ação civil pública, naquilo em que não contrariarem o sistema estabelecido pela Lei 7.347/1985 (artigo 19).

Por essa razão, as normas do artigo 91, caput, e parágrafo 1º e 2º, do novo CPC, que pretendem impor ao Ministério Público e à Defensoria Pública o custeio da prova técnica por eles requerida no processo civil, não podem ter aplicação ao processo coletivo ambiental, por contrariarem frontalmente o sistema instituído pela Lei 7.347/1985[5].

Mas em que pese a adequação teórica do sistema estabelecido pela Lei 7.347/1985, a prática forense acabou evidenciando alguns problemas decorrentes da aplicação da regra do não adiantamento das despesas processuais pelo autor da ação civil pública, especialmente para a realização de perícias nas demandas ambientais, quando não é possível a requisição pelo juiz dos trabalhos técnicos a órgãos públicos, ficando, então, a perícia a cargo de peritos particulares que precisam ser remunerados[6].

A orientação que se firmou na jurisprudência é a da impossibilidade de se exigir do perito particular a realização da perícia sem a correspondente remuneração, não se podendo, tampouco, impor ao réu da ação civil pública o custeio de prova pericial que não requereu, nem mesmo com base na inversão do ônus da prova[7].

Daí por que, na prática, em razão da dificuldade de se encontrarem peritos de instituições públicas habilitados a fazer as perícias determinadas ou peritos particulares dispostos ao trabalho gratuito, muitos processos coletivos ambientais acabam ficando paralisados por muito tempo, do que resulta sério impasse no desenvolvimento da atividade instrutória nessas demandas todas.

Em função dessa realidade prática, os juízes e os tribunais, na aplicação da lei, acabaram buscando soluções capazes de viabilizar o custeio das perícias nas ações civis públicas ambientais. A prática forense passou a construir alternativas ao modelo legal, a fim de propiciar a realização das perícias.

Nesse contexto, em um primeiro momento, decidiu-se pelo adiantamento das despesas com as perícias nas demandas ambientais com recursos dos Fundos de Reconstituição dos Bens Lesados do artigo 13 da Lei 7.347/1985 (fundo federal e fundos estaduais)[8]. Tal solução, contudo, mostrou-se controvertida, dada a destinação precípua dos recursos dos fundos para a reconstituição dos bens lesados.

Além disso, chegou-se a entender que o adiantamento das despesas com as perícias no processo coletivo ambiental deveria ficar a cargo do próprio autor da demanda[9], o que, na sequência, acabou não prevalecendo, por contrariar, como visto, o sistema da Lei 7.347/1985[10].

Atualmente, a orientação jurisprudencial que parece predominar é a de que as despesas com os honorários periciais, nas ações civis públicas ambientais, devem ser adiantadas pela Fazenda Pública.

Esse entendimento teve origem em decisão monocrática proferida no âmbito do Supremo Tribunal Federal e em julgamento do Superior Tribunal de Justiça, em recurso especial que tramitou sob o regime dos recursos repetitivos. Em ambos os casos, a discussão envolvia o Ministério Público como autor da ação.

No STF, em decisão proferida pela ministra Cármen Lúcia, partiu-se do entendimento firmado pela própria corte de que o custeio dos honorários periciais, quando a parte responsável for beneficiária da assistência judiciária gratuita, deve ficar a cargo do Estado. No caso da ação civil pública, entendeu a ministra Cármen Lúcia que, embora não se trate de parte beneficiária da assistência judiciária gratuita, ainda assim é um ente estatal — no caso, o MP — beneficiado pela isenção legal de custas de qualquer natureza, razão pela qual incumbe ao Estado arcar com o pagamento dos honorários periciais. Nesses termos, o STF aplicou para a ação civil pública o mesmo raciocínio utilizado em relação à gratuidade da Justiça: custeio da perícia pelo Estado[11].

Já o STJ, em acórdão relatado pelo ministro Mauro Campbell Marques, após reafirmar expressamente que o artigo 18 da Lei 7.347/1985 traz disciplina própria e específica, a qual impede que o autor da ação civil pública arque com o ônus do adiantamento das despesas com as perícias, passou a aplicar, por analogia, a Súmula 232 da própria corte (“A Fazenda Pública, quando parte no processo, fica sujeita à exigência do depósito prévio dos honorários do perito”) para determinar à Fazenda Pública, à qual se acha “vinculado” o MP, o custeio dos trabalhos técnicos[12].

Portanto, a partir desse julgado do STJ, a orientação que se extrai na matéria é a de que, nas ações civis públicas — ao menos naquelas movidas pelo Ministério Público —, as despesas com o adiantamento dos honorários dos peritos particulares ficam a cargo da Fazenda Pública da esfera governamental correlata ao âmbito de atuação do MP — Fazenda estadual, no caso de ação civil pública proposta pelo MP estadual; Fazenda Nacional, no caso de ação civil proposta pelo MP da União.

E a solução a que chegaram o STF e o STJ pode ser aplicada, também, para os demais legitimados ativos, notadamente a Defensoria Pública e as associações civis (artigo 5º da Lei 7.347/1985), dada a similitude das situações que envolvem estes últimos e o Ministério Público, todos isentos legalmente do adiantamento das despesas processuais, incluindo os honorários periciais.

Essa, em síntese, é a alternativa encontrada pelo STF e pelo STJ, como forma de compatibilizar a regra do não adiantamento das despesas com as perícias pelo autor da ação civil pública ambiental com a necessidade prática de custeio das perícias feitas por peritos particulares. O autor da demanda não adianta as despesas, ficando o custeio da perícia por ele requerida a cargo do Estado.

A grande dificuldade, porém, da solução adotada pelo STF e pelo STJ está no fato de ela impor um encargo financeiro importante às Fazendas Públicas, do qual não se sabe ao certo se elas poderão efetivamente se desincumbir com a agilidade esperada para o adequado andamento dos processos ambientais, em função das inevitáveis questões orçamentárias, o que poderá gerar novos impasses na realização da prova pericial.

Daí por que se impõe aos órgãos do Poder Judiciário e dos poderes Executivos da União e dos estados trabalhar institucionalmente e em conjunto, a fim de encontrar estratégias adequadas para viabilizar a realização das perícias nas demandas coletivas ambientais, como a promoção de parcerias com instituições e institutos públicos e privados, capazes de propiciar a indicação de profissionais competentes e independentes, aptos a atuar como auxiliares do juízo, sem remuneração oriunda do processo, preservada, sempre, em qualquer situação, a regra de ouro do processo coletivo ambiental, consagrada na legislação vigente, da gratuidade do acesso à Justiça em matéria ambiental para o autor da demanda, exceto hipótese de litigância de má-fé[13].


[1] CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Padova: Cedam, 1936, v. 1, p. 435; FRIEDMAN, Lawrence. Réclamations, constestations et litiges et l’État-Providence de nos jours. In: CAPPELLETTI, Mauro (Org.). Accès à la justice et État Providence. Paris: Economica, 1984, p. 253-254.
[2] BENJAMIN, Antônio Herman V. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico: apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor. In: MILARÉ, Édis (Coord.). Ação civil pública – Lei 7.347/85: reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 108-110; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 301; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 560; O ônus do adiantamento das despesas processuais na ação civil pública ambiental – a questão do custeio das perícias – Revista de Direito Ambiental, vol. 85, jan-mar 2017, p. 219 e ss.
[3] STJ – 1ª T. – REsp 479.830/GO – j. 3/8/2004 – rel. min. Teori Zavascki; STJ – 2ª T. – AgRg no REsp 1.096.146/RJ – j. 19/2/2009 – rel. min. Herman Benjamin; STJ – 2ª T. – REsp 858.498/SP – j. 26/9/2006 – rel. min. Castro Meira.
[4] STJ – 2ª T. – REsp 900.283/RS – j. 25/3/2008 – rel. p/ acórdão min. Castro Meira; STJ – 2ª T. – REsp 928.397/SP – rel. min. Castro Meira – DJU de 25/9/2007; STJ – 2ª T. – REsp 716.939/RN – rel. min. Herman Benjamin – DJU de 10/12/2007; STJ – 1ª T. – REsp 786.550/RS – rel. min. Teori Zavascki – DJU de 5/12/2005.
[5] LEONEL, Ricardo de Barros. Ministério Público e despesas processuais no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, n. 249, nov/2015, p. 180-183; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. O ônus do adiantamento das despesas processuais na ação civil pública ambiental — a questão do custeio das perícias, cit., p. 224.
[6] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 29ª ed. São Paulo: Saraiva. 2016, p. 698; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Sílvia. Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 225.
[7] STJ – 1ª T. – REsp 846.529/MS – j. 19/4/2007 – rel. Min. Teori Zavaschi; STJ – 2ª T. – REsp 972.902/RS – j. 25/8/2009 – rel. min. Eliana Calmon.
[8] TJ-SP – Câmara Reservada ao Meio Ambiente – AI 0098177-19.2011.8.26.0000 – j. 25/8/2011 – rel. des. Torres de Carvalho; TJ-SP – Câmara Reservada ao Meio Ambiente – AI 0438915-10.2010.8.26.0000 – rel. des. Renato Nalini; TJ-SP – 1ª Câmara de Direito Público – AI 2143650-86.2014.8.26.0000 – j. 4/11/2014 – rel. des. Vicente Amadei; STJ – 2ª T. – RMS 30.812/SP – j. /4/3/2010 – rel. min. Eliana Calmon.
[9] STJ – 1ª T. – REsp 846.529/MS – j. 19/4/2007 – rel. min. Teori Zavascki; STJ – 2ª T. – REsp 933.079/SC – j. 12/2/2008 – rel. p/ acórdão min. Eliana Calmon.
[10] STJ – 1ª Seção – Embargos de Divergência em REsp 733.456/SP – j. 24/2/2010 – rel. min. Humberto Martins.
[11] STF – AI 793.555/RS – j. 22/10/2012 – rel. min. Cármen Lúcia.
[12] STJ – 1ª Seção – REsp 1.253.844/SC – j. 13/3/2013 – rel. min. Mauro Campbell Marques – julgado sob o regime dos recursos repetitivos – artigo 543-C do CPC/1973.
[13] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. O ônus do adiantamento das despesas processuais na ação civil pública ambiental — a questão do custeio das perícias, cit., p. 241-243.

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    é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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