Opinião

Fornecimento de remédios pelo SUS: o Estado James Bond e a licença para matar

Autor

  • Guilherme Henrique Lage Faria

    é mestre em Direito Processual pela PUC-MINAS professor universitário do curso de Direito do Centro Universitários Newton Paiva da Fundação Presidente Antônio Carlos e do Curso de Pós-Graduação da Escola Superior da Advocacia - ESA. Membro da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-MG. Advogado sócio do escritório Pedron Advogados.

1 de junho de 2017, 6h09

James Bond, também conhecido como 007, é um agente secreto fictício do serviço de espionagem britânico MI-6, criado pelo escritor Ian Fleming em 1953. Bond é um exímio atirador com licença 00 para matar (sétimo agente dessa categoria especial, daí seu código 007), que combatia o mal pelo mundo (via de regra representado pela URSS naqueles tempos de Guerra Fria), a serviço do governo de sua majestade.

Dado as informações do famoso James Bond, faz-se essencial o seguinte questionamento: qual a relação do referido personagem fictício com a decisão de afetação[1] proferida no Recurso Especial 1.657.156, de relatoria do ministro Benedito Gonçalves, que, aplicando a sistemática dos recursos repetitivos (artigo 1.037, II do CPC), determinou a suspensão de todos os processos que tramitam no território nacional e possuem como controvérsia a obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Portaria 2.982/2009 do Ministério da Saúde?

A resposta, considerando tratar-se de suspensão de processos que visam a implementação do direito fundamental à saúde (artigo 6º da CF/1988), através da obtenção coercitiva (pelo jurisdicionado carente) de medicamentos essenciais à manutenção de sua subsistência (porém, que não se encontram incorporados à Portaria 2.982/2009 do Ministério da Saúde[2]), nos parece uma só: o Estado também possui licença para matar[3].

Assim, busca-se com o presente texto apontar a insuficiência das técnicas de coletivização de litígios para resolução de demandas que envolvam implementação de políticas públicas, tais como a controvérsia ora em comento, sem, contudo, possuir quaisquer pretensões de exaurimento do tema, em especial pela limitação de espaço.

No Brasil, a Constituição de 1988 é um marco para o sistema jurídico pátrio ao efetivamente apresentar a importância dos direitos fundamentais para uma concepção democrática do Direito Processual, mas com um efeito prático complexo, de se permitir o ingresso no sistema de novos perfis de litigiosidade[4].

Desde o segundo pós-guerra, o processo e a jurisdição são convidados a solver novos litígios, alguns decorrentes da inércia das demais funções estatais, com a judicialização massiva de novos litígios, que num primeiro momento apostava num ativismo judicial e discurso publicista, mas que hoje busca um sistema coparticipativo dentro (entre os sujeitos processuais) e fora (mediante diálogos institucionais entre todos os envolvidos sistemicamente) do processo.[5]

No lugar de um sistema que apostava somente no Estado-juiz e em sua suposta força hierárquica, se persegue no CPC/2015 uma abordagem normativa coparticipativa que enfatiza a negociação entre partes interessadas de modo contínuo, mediante decisões que sejam revisadas quando necessário e através de um processo decisório transparente.

De modo inovador no sistema processual pátrio, o CPC/2015 busca implementar um sistema de dimensionamento da litigiosidade repetitiva e de formação de precedentes na construção de um verdadeiro direito jurisprudencial embasado normativamente em deveres cooperativos de estabilidade, coerência e integridade[6].

Busca-se ofertar maior estabilidade para o trato do direito jurisprudencial, sem, contudo, deixar de ressaltar que tal estabilidade não significa petrificação ou fechamento argumentativo, como se fosse possível fechar a interpretação do direito em uma decisão, mas, sim, a persecução da necessária estabilidade enquanto não se apresentarem novos fundamentos hábeis à mudança decisória.

Precisamos perceber que há de se respeitar os entendimentos estabilizados e que os acórdãos devem possuir uma linearidade argumentativa para que realmente possam ser percebidos como verdadeiros precedentes capazes de gerar esse dever cooperativo normativo[7].

Essa percepção da importância de mantermos uma estabilidade mostra-se essencial e, ao mesmo tempo, distante da realidade de nossos tribunais, haja vista que parece haver um fomento do desrespeito da opinião da corte, mesmo após a prolação de uma decisão pelo Pleno ou Órgão Especial, em prol de um juízo personalista que despreza o passado institucional (integridade) e que acaba alimentando a litigiosidade pela evidente possibilidade de êxito embasada em julgado extraído de nossa jurisprudência lotérica[8].

Faz-se essencial, nesses termos, julgar melhor para julgar menos, à medida que um precedente aborde todos os fundamentos, favoráveis ou contrários (dever de consideração: artigo 489, parágrafo 1º, IV), em contraditório amplo, com a participação de amici curiae, oitiva de argumentos em audiências públicas e respeito a um dever de congruência entre o que se fixou (preparou) para julgamento e o que se efetivamente julgou, poderá induzir uma efetiva redução do retrabalho e, inclusive, diminuição da litigiosidade pela existência de uma verdadeira opinião da corte sobre o caso, de modo a se assegurar uma jurisprudência coerente, íntegra e estável[9].

Nesse contexto, uma das temáticas mais importantes (e estranhamente negligenciada no estudo do direito jurisprudencial) é a pesquisa das causas e espécies de litigiosidades. Via de regra, preocupa-se exclusivamente com as consequências do litígio, e não com as causas (gatilho) deste.

Em um sistema de litígios com tamanha pluralidade, não se pode tolerar acriticamente a estruturação de técnicas de julgamento em larga escala, partindo-se de uma suposta homogeneidade de casos (idênticos), devido às contingências de um sistema com inúmeros problemas operacionais de aplicação e a busca de uma Justiça de números. Não se pode negligenciar a aplicação coerente dos direitos fundamentais dos cidadãos sob argumentos econômicos e funcionais[10].

Na atualidade, a ciência processual precisa lidar com três tipos de litigiosidade: a) individual ou de “varejo” (sobre a qual o estudo e dogmática foram tradicionalmente desenvolvidos; b) coletiva (envolvendo direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, mediante a utilização de procedimentos coletivos representativos) e; c) em massa, repetitiva ou de alta intensidade (embasadas prioritariamente em direitos individuais homogêneos que dão margem à propositura de ações individuais seriais, as quais possuem como base pretensões isomórficas comuns para a resolução da causa)[11].

Não obstante, a doutrina tem percebido que nos litígios repetitivos a técnica de julgamento por amostragem (sub-representação) não consegue, em regra, analisar todos os fundamentos e interesses em discussão no julgamento.

Nesse cenário, vislumbra-se a necessidade do sistema processual prever técnicas específicas para cada uma dessas espécies de litigiosidade, de forma que, por exemplo, soluções para litígios repetitivos não sejam aplicadas para litígios de varejo e vice-versa, ou que em litígios de interesse público sejam pensadas medidas estruturantes (structural injunctios) com uma inerente vinculação técnica entre a atividade cognitiva de julgamento e a de cumprimento (novo sincretismo) que induzam, no momento decisório, além de uma preocupação com a declaração do direito, a necessidade de se levar em consideração como essa declaração deva ser efetivada[12].

Nos litígios de interesse público (os quais envolvem questões de política), essa preocupação se mostra salutar, tendo em vista que nesses casos se faz necessária a adoção de medidas executivas estruturantes que partem da necessidade de um diálogo coparticipativo na implementação da decisão, na qual o Estado-juiz é incapaz técnica e estruturalmente de solitariamente obter resultados legítimos[13].

Em países como o Brasil, em que não são asseguradas políticas públicas adequadas à obtenção de direitos fundamentais, a litigância de interesse público consiste num fator determinante para a geração de demandas repetitivas, visto que conduz inúmeras pessoas à propositura de demandas envolvendo pretensões isomórficas (contra o poder público) que merecem um tratamento diferenciado e legítimo.

Essa situação induz a necessária mudança do papel do processo, tendo em vista que a mera “declaração do direito” pelo tribunal superior, tal como se pretende no Recurso Especial 1.657.156, em que pese formar um “precedente”, nos termos do artigo 927, III do CPC/2015, não é suficiente para resolver as causas (gatilho) do litígio.

Os medicamentos que ensejam a multiplicação das demandas em juízo não passarão a existir com a simples prolação da decisão. Outros fatores, inclusive de natureza econômica, necessitam ser levados em consideração no momento de implementação do julgado.

A ampliação do contraditório é essencial para induzir tecnicamente a participação dos interessados governamentais no estabelecimento de políticas públicas, de modo a subsidiar elementos decisórios a que o juiz solitariamente não teria acesso e em relação aos quais nem deteria conhecimento para proceder a um julgamento cooperativo e deliberativo.

Conforme noticiado por Eduardo José Fonseca da Costa, não é incomum a utilização em algumas varas federais brasileiras do chamamento de todos os envolvidos numa política pública para buscar viabilizar uma possibilidade de fixação e cumprimento de uma decisão judicial em temáticas de interesse público, o que se convencionou denominar de “execução negociada”[14].

É certo que não se olvida que todos temos direito à saúde. No entanto, mais do que nunca, há que se construir entre nós, com clareza, uma doutrina que estabeleça uma diferença entre ser detentor de um direito e as obrigações que dele advêm, pois, como mostra Canotilho, quando se trata de direitos prestacionais, da afirmação de um direito não decorre necessária e diretamente um dever do Estado[15].

Quando o Judiciário tenta tornar “reais” os direitos sociais promovendo políticas públicas, mergulha em “nebulosas normativas”, já que, como dito, esses direitos, diferentemente dos direitos individuais, nem sempre implicam uma prestação correlata pelo Estado[16].

Compreende-se, nesses termos, que uma abordagem jurisdicional tradicional, limitada à análise solitária pelo juiz de temáticas inerentes à políticas públicas, sem um contraditório mais dinâmico e panorâmico, não possui o condão de analisar com menores riscos a imposição de comandos que inúmeras vezes terão pouca possibilidade de gerar impactos efetivos no auferimento de direitos fundamentais[17].

Em casos como o abordado no Recurso Especial 1.657.156, faz-se essencial uma problematização da técnica de coletivização do litígio (causa-piloto), tendo em vista que apenas a consequência de sua existência (número de demandas) será trabalhada pelo Judiciário.

Para se solucionar a causa do litígio em massa, ou seja, a obrigatoriedade de fornecimento pelo Estado de medicamentos não contemplados na Portaria 2.982/2009 do Ministério da Saúde, faz-se essencial o estabelecimento de um diálogo entre o Judiciário e o Executivo, responsável pela implementação da política pública.

Direito à saúde é um direito fundamental, garantido pela Constituição (artigo 6º), dever do Estado (artigo 196) e tem aplicação imediata (artigo 5º, parágrafo 1º) em qualquer das esferas da federação.

Contudo, quando o Judiciário, na tentativa de “concretizar” esse direito, toma decisões sem respeito à coparticipação dos que serão afetados pelo provimento, tende a dificultar e, em alguns casos, até mesmo inviabilizar qualquer possibilidade de implementação de políticas públicas voltadas à saúde.

Questões complexas não são solucionadas com respostas fáceis.

A afetação da temática, com a correlata suspensão dos processos em todo território nacional, nem de longe conseguirá solucionar as causas do litígio.

Não podemos tratar demandas que envolvem políticas públicas como quaisquer outros litígios de natureza serial, sob pena de, como ocorre no exemplo em análise, meramente concedermos ao Estado a “licença para matar”.


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. ProAfR no Recurso Especial 1.657.156 – RJ. 1º Seção. Relator ministro Benedito Gonçalves, julgado em 26 de abril de 2017, publicado em 3 de maio de 2017. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1595643&num_registro=201700256297&data=20170503&formato=PDF. Acesso em 19 de maio de 2017.
[2] Portaria disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt2982_26_11_2009.html.
[3] Frisa-se que a paralisação total dos processos não se trata de regra absoluta, uma vez que o CPC autoriza os magistrados a deliberar sobre questões urgentes, nos termos do artigo 314. Contudo, a análise da urgência da medicação recairá sob um aspecto puramente subjetivo do magistrado, o que se revela preocupante.
[4] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre de Melo Franco. Litigância de interesse público e execução comparticipada de políticas públicas. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 224, out. 2013.
[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre de Melo Franco e PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. 3ª ed, Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 377.
[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto, et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. p. 373.
[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto, et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. p. 374.
[8] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. “Jurisprudência Instável” e seus riscos: a aposta nos precedentes vs. uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; MARINONI, Luiz Guilherme; WAMBIER, Teresa Arruda Alvin (orgs.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2014. v. II, p. 433-471.
[9] THEODORO JÚNIOR, Humberto, et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. p. 376.
[10] THEODORO JÚNIOR, Humberto, et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. p. 378.
[11] THEODORO JÚNIOR, Humberto, et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. p. 379.
[12] THEODORO JÚNIOR, Humberto, et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. p. 379.
[13] THEODORO JÚNIOR, Humberto, et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. p. 380.
[14] FONSECA, Eduardo José da Costa. A “Execução Negociada” de políticas públicas em juízo. RePro. V. 212, outubro de 2012, p. 25-26.
[15] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre de Melo Franco. Litigância de interesse público e execução comparticipada de políticas públicas. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 224, out. 2013.
[16] CANOTILHO, J. J. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed.; SP: RT, 2008, p. 97.
[17] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre de Melo Franco. Litigância de interesse público e execução comparticipada de políticas públicas. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 224, out. 2013.

Autores

  • Brave

    é sócio do escritório Alves & Lage Advocacia e professor do Centro Universitário Newton Paiva, da Escola Superior da Advocacia e da Faculdade Alis de Itabirito (MG). Tem mestrado em Direito Processual e especialização em Direito Processual Civil pela PUC Minas.

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