Segunda Leitura

A relação da música de Adoniran Barbosa com o Direito

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

30 de julho de 2017, 8h00

Spacca
Ele se chamava José Rubinato e nasceu em Valinhos, interior de São Paulo, aos 6 de agosto de 1910, tendo falecido em 23 de novembro de 1982. Seus pais eram imigrantes italianos, de Cavárzere, região de Veneza.

Aí está a explicação do uso do paletó e gravata, esta muitas vezes no estilo borboleta. Compositor, cantor, ator e comediante, adotou o nome de Adoniran Barbosa, o mais popular de seus personagens nos programas de rádio.

Adoniran eram um sambista que fugia do padrão. Seu sotaque paulista, com forte influência italiana, suas roupas formais e as situações da vida que tratava em suas letras eram completamente diferentes do samba carioca, que deu e dá os grandes nomes do principal gênero de música popular brasileira.

Cantando a rotina dos menos favorecidos, como os solitários, os despejados, as mulheres submissas, mesclava em suas letras riso e choro, em um sutil humor que faz do triste um motivo de alegria. Aqui estava, certamente algo que trazia no seu DNA italiano, o tragicômico, tão ao gosto dos oriundos da península, retratado magistralmente nos escritos de Luigi Pirandello.

Nas letras usava o linguajar das pessoas simples, das classes sociais mais baixas, com erros de português, despreocupado com as críticas que isso gerava. Foi para a música o que João Antônio foi para a literatura, com a obra “Malagueta, Perus e Bacanaço”. E mais. Sem valer-se de vulgaridade, de apelos sexuais de baixo nível.

Suas músicas alcançaram sucesso que foi muito além do “Trem das Onze”, de todos conhecida, sendo, inclusive, compostas com pessoas do nível de Vinicius de Moraes (“Bom dia tristeza”, letra de Vinicius, música de Adoniran) e gravadas por artistas de primeira grandeza, como Ellis Regina (“Tiro ao Álvaro”), Caetano Veloso (“Trem das Onze”) e Beth Carvalho (“Iracema”).

Contudo, há um aspecto relevante e pouco notado, que é a forte relação da música de Adoniran com o Direito da época de suas composições (1951 a 1975). Através de pesquisa nas letras, é possível ter-se noção das regras jurídicas da época, de como eram aplicadas e vistas pela sociedade. Vale a pena conferir, inclusive fazendo-se a comparação com o Direito na atualidade.

Em 1951 foi composta “Saudosa Maloca”, que relata o drama dos hoje chamados de “sem-teto”. Tratava-se de um barraco construído em um terreno (posse de anos, segundo a letra) que sofre reintegração para a construção de um prédio. Chama a atenção o conformismo dos posseiros com a reintegração, explicitada nas frases “Os homens tá coa razão; Nós arranja outro lugá”.

Alguns anos depois (1959), em “Abrigo de Vagabundos”, o personagem revela ter conseguido comprar um terreno, trabalhando em uma cerâmica carregando potes, e regularizado a área na Prefeitura com a ajuda do amigo “João Saracura”, fiscal da Prefeitura.

Orgulhoso de sua maloca, que “Hoje está legalizada ninguém pode demolir”, não se esquece de seus antigos amigos e a oferece aos “vagabundos que não tem onde dormir”. A música revela o cumprimento das normas municipais de edificação e a solidariedade com os amigos antigos.

A música “Casamento do Moacir” é um caso típico de bigamia. Na Igreja, na hora em que o ato ia se consumar, alguém gritou “Seu padre, apara o casamento!; O noivo é casado, pai de sete rebento”. Logo adiante: ele é casado “Cinco vez, lá no estado do Rio”. Bigamia, crime previsto no artigo 235 do Código Penal, saiu totalmente de moda, inclusive pela possibilidade da união estável. Mas, no passado, muitos foram para a prisão.

No maior sucesso de Adoniran, “Trem das Onze”, a solidariedade e a ética estão retratadas na última estrofe. O personagem se despede da amada para pegar o último trem do bairro de Jaçanã, dizendo que “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar, sou filho único, tenho a minha casa pra olhar”.

Muito tempo depois, a Constituição de 1988 elevou a solidariedade a dever (artigo 3º, inciso I). O bom filho único demonstra, também, a responsabilidade de ser arrimo de família, responsável pela felicidade da mãe.

A música “Despejo na Favela” é altamente expressiva. Revela, no ano em que foi composta (1969), a existência dos primeiros conflitos coletivos por ocupação em áreas urbanas e o absoluto respeito à ordem judicial de despejo. O problema se agravou com o tempo e hoje faz parte da rotina das grandes cidades. Confira-se:

“Quando o oficial de justiça chegou;
Lá na favela;
E contra seu desejo entregou pra seu Narciso um aviso;
pra uma ordem de despejo;
Assinada seu doutor, assim dizia a petição, dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão;
É uma ordem superior;
Ôôôôôôôô Ô meu senhor, é uma ordem superior;
Não tem nada não seu doutor, não tem nada não;
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão”.

As relações amorosas eram bem diferentes. Fazer sexo era algo demorado, se fosse com moça virgem menor de 18 anos era crime de sedução. Na música “Fica mais um pouco, amor” o personagem acompanha a jovem da saída do baile até a sua casa e declara “Eu não vou pedir, mas se você quiser me dar; Aquele beijo, ao qual eu faço jús; Espero você entrar, acender e apagar a luz”.

Em “Acende o candieiro” ele, mostrando poder, manda a mulher sair para anunciar um “ensaio geral”, passar no armazém e “Trazer um pacote de vela e um litro de querosene”. Todavia, em “Apaga o fogo Mané”, é ela, Inês, quem se revela independente, porque “saiu dizendo que ia comprar um pavio pro lampião” e não voltou mais.

Os direitos trabalhistas eram menores. Em “Torresmo à Milanesa” vê-se que, não existindo previsão legal para o vale-refeição, os operários levavam a sua marmita e, segundo relata a música, um “troxe ovo frito”, outro veio com “Arroz com feijão e um torresmo à milanesa”.

Finalmente, na música “Vide verso meu endereço”, Adoniran fala de gratidão e de adoção. Seu personagem agradece ao seu benfeitor, “Seu” Gervásio, uma cadeira de engraxate, com a qual comprou “uma casinha lá no Ermelindo” (certamente um bairro distante) e narra ter “três filhos lindos; Dois são meu, um é de criação”.

No passado era comum colocar em casa uma criança órfã ou abandonada, sem qualquer forma de legalização. Ali cresciam e tomavam seu rumo. Essa informal adoção saiu da rotina, dando lugar a um processo complexo e, por vezes, demorado. Sinal dos tempos.

E assim Adoniran Barbosa, além de dar alegria a tantos que ouviram suas músicas e assistiram a seus filmes, ofereceu, provavelmente sem dar-se conta, uma preciosa colaboração para a análise do Direito de seu tempo.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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