Opinião

Liberdade de testar e doar seria alternativa mais eficaz à legítima

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30 de julho de 2017, 7h30

O instituto da legítima, que restringe a liberdade de testar e doar e obriga a destinação de uma parcela do patrimônio a determinado rol de familiares, vem de longa data. No Direito romano, exigia-se a menção no testamento de alguns herdeiros, ainda que fosse para deserdá-los. Em fins da República romana, testamentos com deserdações eram considerados inoficiosos, pois desrespeitariam o dever de piedade.

O Direito brasileiro acolheu a regra das Ordenações Filipinas, que deixava disponível para testar e doar apenas um terço dos bens. Em 1907, a Lei Feliciano Pena alterou o regime da legítima, garantindo a disponibilidade de se testar metade dos bens, o que perdura, com algumas modificações, até os dias de hoje.

Não obstante a longevidade do instituto, seu regramento é falho e complexo, com variadas divergências jurisprudenciais. Tal situação é, em boa medida, reflexo do que parece ser um descuido legislativo e doutrinário a respeito do Direito sucessório. A legislação é marcadamente sucinta no tratamento da legítima, apesar de suas amplas consequências.

Conforme estabelecido no Código Civil de 2002, o princípio da intangibilidade da legítima não significa apenas a indisponibilidade para testar sobre metade dos bens. Ele afeta as doações em vida que ultrapassarem o limite da legítima, protege a igualdade da legítima entre os herdeiros necessários (ascendentes, descendentes e cônjuge ou companheiro) e exige que as cláusulas restritivas sobre a legítima (inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade) sejam acompanhadas das respectivas justificativas. Como se vê, o instituto da legítima é bastante amplo e atingevários direitos inerentes à própria propriedade.

O descompasso entre o parco regramento da legítima e a extensão dos seus efeitos suscita, assim, diversos questionamentos doutrinários e jurisprudenciais. Exemplo é a falta de consenso a respeito do vício existente nas doações que ultrapassam o limite da legítima. Seria caso de nulidade ou de anulabilidade? Quem seria legitimado a questionar a doação que frauda a legítima? Estaria sujeito a prazo prescricional ou decadencial? Há decisões do Superior Tribunal de Justiça afirmando que a doação inoficiosa é caso de nulidade, com prazo prescricional de 10 anos. Sem embargo, não poucos tribunais de justiça continuam entendendo que se trata de anulabilidade, ainda que, inexplicavelmente,não apliquem o prazo decadencial previsto para essa situação, de dois anos, mantendo o prazo de 10 anos. Como é natural, essas controvérsias apenas acirram contendas familiares, contrariando o objetivo do instituto da legítima, que, em tese, visa a proteger as relações familiares.

A crítica contemporânea à legítima não se restringe, porém, às falhas operacionais do instituto. O aspecto de maior questionamento é o seu próprio fundamento, um tanto desconexo com a atual realidade econômica e social. Ao limitar a liberdade de testar e doar, a legítima manifesta uma desconfiança na autonomia individual e institui uma presunção absoluta um tanto questionável, a de que o Estado saberia definir com mais acerto do que o próprio cidadão o que é melhor aos seus ascendentes, descendentes e cônjuge ou companheiro. Não cabe dúvida de que a lei deve proteger os herdeiros menores e aqueles que padecem de alguma incapacidade. O ponto que se indaga é a razoabilidade de o ordenamento jurídico generalizar esse tratamento, supostamente protetor, a todos os herdeiros necessários.

Além disso, nessa desconfiança em relação à liberdade de testar e doar, a lei tolhe iniciativas que podem representar um significativo interesse público. As regras da legítima impedem, por exemplo, a doação de 90% do patrimônio a causas humanitárias ou a instituições sem fins lucrativos. Parece razoável que a lei, em vez de proibir, deveria estimular esse tipo de iniciativa.

Também não se deve esquecer que a legítima afeta desigualmente os cidadãos de um mesmo país. As famílias mais abastadas têm a possibilidade de transferir integral ou parcialmente o seu patrimônio para o exterior, deixando-o à administração de trustou fundação privada numa jurisdição muitas vezes imune a questionamentos de violação de direito à legítima. Já o restante das famílias, impossibilitadas de custear trustsou fundações privadas nessas jurisdições, ficaria submetido aos rigores da legítima, que, como apontam alguns autores (Gustave Boissonade e Thomas B. Lemann, por exemplo), ainda induz a uma fragmentação desses pequenos patrimônios.

Cabe, portanto, indagar quais bens o instituto da legítima ainda protege nos dias de hoje e se não seria preferível a adoção de sua alternativa mais imediata, a liberdade de testar e doar, protegendo tão somente aqueles que não podem se proteger – os menores de idade e os que padecem de alguma incapacidade. A regra deve ser a autonomia responsável, e não um anacrônico paternalismo estatal baseado em relações patrimoniais.

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