Opinião

Aumento de PIS/Cofins de combustíveis desrespeita sua destinação legal

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28 de julho de 2017, 7h35

O aumento do PIS e da Cofins, duas contribuições da seguridade social, sobre a gasolina, diesel e etanol, veiculado através de decreto publicado no Diário Oficial da União no dia 21 de julho, é um desprestigio a Constituição Federal por desobediência expressa aos princípios tributários garantidos neste diploma, que nos cidadãos, ainda tentamos acreditar, ser a carta magna do país.

São três as razões que justificam o enquadramento deste aumento como inconstitucional: (i) o desrespeito ao Princípio da Legalidade Tributária consagrado no artigo 150, I da CF, tendo em vista que o aumento foi feito por decreto presidencial; (ii) o desrespeito ao Princípio da Noventena, introduzido pela EC 42/2003, garantidor  da eficácia da majoração das contribuições sociais somente após 90 dias da publicação da respectiva lei, garantindo aos contribuintes um período de adaptação a nova carga tributária (iii) o desvio da destinação legal das contribuições, matéria a qual se dedicará este estudo.

A natureza jurídica das contribuições sociais

A acepção da palavra contribuição varia de acordo com seu emprego em determinado contexto. No Brasil, o significado variou de acordou com a época. Antes da República, utilizava-se a palavra como imposto, mas com algumas características próprias. A principal é que eram cobradas com uma finalidade específica, por exemplo, a contribuição sobre o couro para consumo, a contribuição extraordinária incidente sobre os vencimentos recebidos dos cofres públicos, e anos depois, a contribuição do empregador e empregado em favor da velhice, invalidez, acidente de trabalho e morte dentre outras (Martins, 2004, p. 123).

O conceito de contribuição se aperfeiçoou com a Constituição Federal de 1988, ganhando novos traçados e diferenciando-a das taxas e dos impostos. Passou a se caracterizar como espécie tributária autônoma. (Barreto, 2006, p. 132). Por estarem integradas no Sistema Tributário Nacional — artigo 149 da Constituição Federal — e sujeitas aos Princípios tributários e às limitações do poder tributário, a doutrina é inequívoca em classificá-la como de natureza tributária (Paulsen, 2012, p.102).

Para Mizabel Derzi, o artigo 149 “veio espancar, definitivamente, quaisquer dúvidas em torno da natureza tributária das contribuições” (Derzi, 1992, p. 223).

O fato das contribuições serem exceção ao princípio da anterioridade, sujeitando-se apenas à noventena (trimestralidade), não é suficiente para descaracterizá-la como tributo. A relevância da sua natureza jurídica tributária está, fundamentalmente, na compulsoriedade exigida pelo artigo 3º do Código Tributário Nacional (Harada, 2002, p. 317).

Por fim, o Supremo Tribunal Federal consolidou o mesmo entendimento nos julgamentos de dois Recursos Extraordinários, (138.284-8-CE, relator ministro Carlos Mário da Silva Velloso, e 146.733-9-SP,[1] relator ministro Moreira Alves). O artigo 149, caput, da Constituição Federal, agrupa três figuras rotuladas como contribuições: as contribuições da seguridade social (perfil traçado no Título VIII da Constituição), contribuições de intervenção no domínio econômico (interventivas) e as contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas (custeio das atividades das instituições fiscalizadoras e representativas das categorias econômicas ou profissionais, que exercem funções legalmente reputadas como de interesse público).

Uma vez concebida sua natureza tributária, guarda relevância constitucional a confirmação na prática dos requisitos que a destaca das demais espécies, são eles (i) o enquadramento na finalidade proposta na lei instituidora; (ii) a destinação legal e fática dos recursos a um fim especifico; (iii) a correlação entre o custo da atividade estatal e o montante arrecadado e, por fim, a vantagem ou o benefício da atividade estatal deve ser obtida pelo contribuinte que suportou o custo do tributo (Barreto, 2006, p.133).

Eventual mudança de finalidade, por exemplo, das contribuições objeto deste trabalho — PIS e Cofins — cuja razão de sua instituição é o financiamento da saúde, previdência e assistência social,  para um fim simplesmente arrecadatório, a classificará como imposto, despersonificando o tipo tributário, ensejando, inclusive, uma inconstitucionalidade superveniente (Stucky, 2006 apud Paulsen, 2012, p.104).

A relevância da destinação do produto da arrecadação do PIS e Cofins
Desde 1988, tivemos a ascensão da constitucionalização do Sistema Tributário Nacional por intermédio de uma reestruturação normativa. A principal característica desta nova ordem foi a abordagem dos princípios e garantias fundamentais, pétreos e supremos, propiciando o que seria chamado de constitucionalização do direito (Toyoda, 2012).

Em seu texto, destacam-se a diferenciação das espécies tributárias pelos critérios da vinculação da atividade estatal e destinação de receitas; as limitações ao poder de tributar (princípios tributários e imunidades constitucionais); a distribuição das competências tributárias e, por fim, a adequação das matérias tributárias às espécies legislativas (ibidem).

Em contrapartida, o Código Tributário Nacional (CTN) é o vigente de 1966. Antes disso, não havia um estudo estruturado do Direito Tributário, embora os Princípios da Legalidade e anterioridade já se faziam presentes. Os regulamentos eram esparsos, sem quaisquer consolidações. A função do CTN foi sistematizar o Direito Tributário Brasileiro (Oliveira, 2016, p.101).

Dotado do status de lei complementar, os dispositivos legais que conceituam a disciplina estão no Código Tributário Nacional. Neste diploma, encontramos os institutos fundamentais para aplicação das normas tributárias (Folloni, 2014, p. 207).

A definição de tributo exposta no Código Tributário é suficiente para identificar se determinada cobrança é ou não tributo, identificando também se um regime jurídico tributário lhe é aplicável ou não. Se a prestação for pecuniária, se for compulsória, se não for decorrência do cometimento de ato ilícito, estar-se-á diante de tributo e, então, o regime jurídico tributário será exigível (Folloni, 2014, p. 27). Todavia, é insuficiente para análise da “intimidade estrutural da figura tributária” (Carvalho, 2007, p. 28).

O artigo 4º do Código Tributário nos impõe outras normas de identificação das espécies tributárias, o que nos levará a reflexões sobre a importância do destino do produto da arrecadação dos tributos, e nos faz debruçar sobre as vicissitudes tributárias.

Considerando, por várias vezes, as imperfeições do trabalho legislativo — formado por políticos de formações culturais diversificadas e não cientistas do Direito — o legislador do Código Tributário, quase ingenuamente, supôs que bastava a análise do fato gerador para identificar a natureza jurídica do tributo. Equivocou-se. Faz-se necessária a identificação da hipótese de incidência e a base de cálculo (Carvalho, 2007, p. 28).

Além de eleger somente o fato gerador como determinante na fixação da natureza do tributo, desprezou o critério da destinação legal da receita arrecadada. E, neste ponto, parte da doutrina, praticamente vencida, entende que o legislador agiu corretamente e a outra parte entende que a destinação é critério fundamental para identificar as espécies tributárias.

Neste artigo, interessa-nos a destinação como um dos critérios de validação constitucional dos tributos, razão pela qual mencionaremos somente as posições antagônicas. A da teoria tricotômica e quinquipartite.

A teoria tricotômica, defendida pelos doutrinadores Roque Antonio Carrazza (2011, p. 558), Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 67) e Geraldo Ataliba (2001, p. 132), utiliza como critério de identificação das espécies o da vinculação, ou seja, se há ou não uma contraprestação do Estado. Temos assim três espécies, taxas, impostos e contribuições de melhoria.

Em que se pese a opinião destes doutrinadores, prevalece a teoria quinquipartite, defendida por Hugo de Brito Machado (2010, p. 69-70) e adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo esta corrente, os tributos dividem-se em taxas, impostos, contribuições de melhoria, contribuições sociais e empréstimos compulsórios.

Corroborando-se da corrente majoritária, em que a destinação legal é relevante, teremos os tributos classificados em cinco espécies e não em três, como prevê o artigo 5º do Código Tributário Nacional. Na opinião de Leandro Paulsen (2012, p. 658), somente uma Emenda Constitucional pode autorizar a desvinculação do produto da arrecadação de contribuições. A Contribuição da Seguridade Social é uma espécie tributária com finalidade especifica e com os recursos destinados ao cumprimento deste fim.

Conclui-se, portanto, que foi intencional o legislador constituinte estabelecer a destinação como critério de validade desta espécie tributária. Esta certeza evidencia-se quando o mesmo legislador proíbe a destinação, chamada de vinculação pelo texto constitucional, de impostos a órgão, fundo e despesa.

Esta elaboração somente faz sentido se houver o imprescindível controle do destino do produto da arrecadação de contribuições, tanto no que diz respeito à destinação legal como à destinação efetiva. Ensina Paulo Ayres Barreto (2006 p. 167): “[…] Estaríamos diante de uma condicionante que, verdadeiramente, nada condicionaria; de um pretenso limite jurídico que não serviria a nenhum propósito; de um controle de Legalidade que nada controlaria.”

O controle da destinação deve ser feito no plano legal ou abstrato e no plano fático ou concreto (Castellani, 2006, p. 234). Primeiramente, é feito por meio do exame de previsibilidade na lei. Deve ser exercido pelas Comissões de Constituição e Justiça e eventualmente pelo Judiciário. O segundo passo é a destinação fática, quando a norma orçamentária prevê a utilização de tais recursos e posteriormente há o ingresso nos cofres públicos dos recursos auferidos com a cobrança da contribuição (Ibidem, p. 242).

O desvio da destinação fática poderá ser impugnado por recurso administrativo, mandado de segurança repressivo, ação de anulação de crédito tributário, inclusive com a responsabilização administrativa e penal do agente (Ibidem, p. 243). Aos responsáveis pelas transgressões orçamentárias, caberá a responsabilização administrativa e criminal (Paulsen, 2012, p. 105).

Conclusão
Defende-se neste artigo, a inconstitucionalidade da majoração das contribuições do PIS e da Cofins sobre combustíveis em razão do desrespeito aos princípios da legalidade e noventena, mas, essencialmente pelo desvio da finalidade da arrecadação que é o financiamento da seguridade social.

Avesso a todas as normas constitucionais, o governo decidiu aumentar duas das contribuições valendo-se de uma justificativa completamente alheia a destinação legal. Ao invés de destinar a receita para seguridade social, o valor será desviado para arrecadar R$ 10,4 bilhões e cumprir a meta fiscal.

Com a pesquisa bibliográfica, demonstrou-se que a (i) destinação legal, orçamentária e fática das receitas da espécie tributária “contribuições” é pressuposto constitucional de validade do tributo, ou seja, toda contribuição, quando instituída, deve prever qual a sua finalidade, caso contrário, haverá enquadramento em outra espécie, a dos impostos.

Pode-se alegar que há uma rigidez constitucional desnecessária no controle da destinação das receitas, mas esta matéria deve ser discutida dentro de um amplo debate de reforma tributária. Enquanto prevalecerem as normas vigentes, a Constituição Federal deverá ser respeitada.

Referências
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[1] Para ver o conteúdo completo dessa decisão, acessar: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoDetalhe.asp?incidente=1534598>.

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