Opinião

A prisão em segunda instância nos tempos de "lava jato"

Autor

  • Luiz Flávio Borges D'Urso

    é ex-presidente da OAB-SP (por três gestões 2004/2012) membro honorário vitalício da OAB-SP presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP.

26 de julho de 2017, 7h11

Depois de algum tempo que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é possível impor, ao condenado em segunda instância, o início do cumprimento provisório da pena de prisão, cabe uma avaliação do impacto desastroso desta decisão na vida do cidadão brasileiro.

Primeiramente, há que se destacar, que nas duas decisões do STF, a primeira no HC 126.292/SP, proferida em 17 de fevereiro de 2016, com um placar de 7 a 4, e a segunda, nas ADCs 43 e 44, em 5 de outubro de 2016, com placar de 6 a 5, os Ministros do STF decidiram que é possível executar a pena imposta na condenação, a partir do julgamento realizado em 2º grau, todavia, não há obrigatoriedade ou efeito vinculante nestas decisões, que contrariam o primado constitucional da presunção de inocência.

Na prática, ocorreu uma radical mudança nas Cortes de Apelação brasileiras, pois se tornou corriqueiro a expedição de mandado de prisão, quando do julgamento do recurso de apelação, iniciando-se, portanto, neste momento, a execução provisória da pena. Trata-se de milhares de pessoas que antes aguardavam a decisão final de seus processos em liberdade, mas, agora, são encarceradas, agravando o caos prisional vivido no Brasil.

Só por este fato, verifica-se o desacerto destas decisões, pois, enquanto o mundo caminha para o desencarceramento, buscando outras formas de punição, o STF caminhou na contramão, inflando a população carcerária das unidades prisionais já superlotadas e promíscuas do Brasil, sem falar que estas unidades encontram-se, na sua maioria, sob comando do crime organizado, nas mãos dos líderes de facções criminosas.

Porém, o ponto mais grave reside no fato de que estas decisões contrariam a nossa Constituição Federal, que estabelece em seu artigo 5º, inciso LVII, que ninguém será considerado culpado, até o trânsito em julgado da condenação, vale dizer, todos devem ser considerados inocentes, e assim tratados, até a decisão final, contra a qual não caiba mais recursos. Esse é o princípio constitucional da presunção de inocência, insculpido em nossa Carta Magna, o qual deveria ser garantido pelo próprio STF.

A Corte Suprema tem como principal atribuição, como tribunal constitucional que é, a de ser a guardiã da Constituição Federal e, nestas decisões, o que se verifica é exatamente o oposto, pois foi negado o primado da presunção de inocência, flexibilizando-o, contrariando, assim, nossa Carta Magna.

O Brasil vive hoje uma grave crise, e nestes tempos da chamada operação "lava jato", mais do que nunca, deve-se observar com rigor o cumprimento da nossa Lei Maior, até porque sem o respeito à Constituição Federal não há caminhos num Estado Democrático de Direito. Vale dizer, todos devem estar sob o império da lei, especialmente, repita-se, da Lei Maior.

Nosso sistema penal, desenvolvido à luz do aperfeiçoamento legislativo e da própria jurisprudência, sedimentou-se no equilíbrio entre o poder estatal e o cidadão que a ele se submete, de modo que, esse equilíbrio, foi obtido mercê das garantias individuais conferidas pelo constituinte em nossa Constituição de 1988.

Dentre essas garantias, uma que se pode admitir como cláusula pétrea é exatamente a da presunção de não culpabilidade, assim, negando-a, verifica-se o abalo no sistema penal, que se desequilibra, fortalecendo o Estado em detrimento do cidadão.

Também não se admite que o Congresso Nacional venha mutilar nossa Carta Magna, por meio de Emenda Constitucional, visando diminuir as garantias individuais. Apesar de inadmissível, já houve uma proposta, formulada pelo ex-Presidente do STF, Ministro César Peluso, apresentada por meio de um Projeto de Emenda Constitucional, conhecido como PEC do Recursos, que levou ao Congresso Nacional, exatamente essa proposta do início da execução da pena em 2º grau, projeto que foi fragorosamente rejeitado.

Nos tempos de "lava jato", diante da mobilização da opinião pública, leiga, verifica-se uma revolta popular contra o sistema recursal, como se este servisse para procrastinar o processo, na busca da impunidade, quando, na verdade, o sistema recursal existe porque a justiça é realizada por homens, portanto, falível, pois falível é o homem. Assim, quem investiga pode se equivocar, como também quem acusa, além de quem julga, que também pode errar, servindo os recursos para diminuir, o quanto possível, a margem de erro.

Neste ponto, registra-se manifestação do próprio Ministro Marco Aurélio, que traz um percentual de aproximadamente 30% de reformas de decisões pelos tribunais superiores, o que leva à conclusão de que 30% das pessoas condenadas em 2º grau e encarceradas a partir de então, serão inocentadas, restando efetiva prisão injusta, violenta e promíscua, como gravame irreparável em suas vidas. Assim, somente este dado, já deveria ser suficiente para o STF rever sua posição.

Muitos outros argumentos poderiam ser trazidos para demonstrar o desacerto do STF nestas decisões, e hoje, o próprio Ministro Gilmar Mendes, demostra a mudança de sua posição, diante do desastre provocado pelo encarceramento prematuro.

Por derradeiro, admitindo-se que o tempo é o senhor de tudo, resta observar que, no afã de se “ouvir as vozes das ruas”, ocorreu a condenação de Jesus Cristo, bem como a expansão do nazismo, dentre outros tantos erros históricos cometidos. Deste modo, há que se reconhecer que erros judiciais graves são cometidos, e a prisão executada provisoriamente, a partir de decisão de 2º grau, soma-se a eles.

Fica a esperança, portanto, de toda a comunidade jurídica, que o nosso STF, formado por ministros competentes e experientes, revejam sua posição e que ouçam somente a voz da nossa Constituição Federal, restabelecendo o inabalável e inflexível primado constitucional e democrático da presunção de inocência.

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  • Brave

    é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, Conselheiro Federal da OAB, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), presidente de honra da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM). Foi presidente da OAB-SP por três gestões (2004/2012).

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