Prerrogativa de foro

Sistema da Receita controla quem acessa dados de pessoas expostas politicamente

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25 de julho de 2017, 16h49

A Receita Federal tem um sistema de monitoramento interno que dá proteção especial às pessoas politicamente expostas, ou PEPs, na sigla em inglês. Trata-se do Sistema Alerta. Por meio dele, toda vez que um funcionário da Receita acessa informações protegidas por sigilo fiscal dessas pessoas, é enviado um aviso ao delegado regional e à superintendência local do órgão.

De acordo com estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (Unafisco), o sistema foi criado para dar “foro privilegiado fiscal” às PEPs. O Fisco possui regras contra o “acesso imotivado” a informações protegidas por sigilo fiscal por funcionários da Receita que não tenham permissão nem senha de acesso aos sistemas.

Como o Sistema Alerta avisa às chefias toda vez que alguém acessa informações de PEPs, a prática acaba constrangendo os auditores a fazer seu trabalho em relação a essas pessoas, diz a Unafisco.

A Receita refuta as acusações. Segundo o subsecretário de Fiscalização da Receita, Iágaro Jung Martins, o Sistema Alerta não tem nada a ver com a área de fiscalização e atinge apenas os servidores das outras áreas. “É uma ferramenta de auditoria, que trabalha com os órgãos de controle interno, e não de fiscalização”, disse, em entrevista à ConJur (veja mais abaixo). “As ferramentas que os auditores fiscais usam não disparam o Sistema Alerta e não estão abrangidas por ele”, garante.

Lógica invertida
Segundo o estudo da Unafisco, o Sistema Alerta inverte a lógica das pessoas politicamente expostas: em vez de dar atenção especial a elas, cria camadas de proteção que o contribuinte comum não tem. De acordo com a Receita, hoje a lista tem 4.471 nomes — a variação no número é grande, já que, pela lei brasileira, a pessoa deve deixar essa lista cinco anos depois de sair do cargo.

O conceito de PEPs foi criado em 2003 pela Convenção da ONU contra a Corrupção. A ideia é identificar um grupo de pessoas cujo risco de cometer crimes financeiros ou de se envolver em atividades ligadas ao financiamento do terrorismo é maior. Entram nessa lista “pessoas que desempenhem ou tenham desempenhado funções públicas eminentes e de seus familiares e estreitos colaboradores”, conforme diz o item 1 do artigo 52 da Convenção da ONU, assinada pelo Brasil.

A lista foi concretizada em 2006, depois que o Grupo de Ação Financeira (Gafi), entidade intergovernamental que define padrões de medidas de combate a crimes financeiros, publicou a Recomendação 6 (clique aqui para ler todas as recomendações). Ela diz que os membros do Gafi devem prever “sanções financeiras específicas” para quem for condenado por relações com terrorismo e seu financiamento.

Diante dessas regras, a Estratégia Nacional de Combate a Corrupção e Lavagem de Dinheiro (Enccla), do Ministério da Justiça, criou, em 2006, a lista de pessoas expostas politicamente no Brasil. Quem cuida do rol é o Conselho Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério da Fazenda, e quem define o que são PEPs é o Banco Central, por meio da Circular 3.461/2009.

Posicionamentos oficiais
Para fazer a nota técnica, a Unafisco enviou uma série de questionamentos à Receita. Em resposta a um deles, o Fisco disse que o Sistema Alerta não está previsto em lei nem em qualquer texto normativo. A lista das PEPs, disse a Receita, em ofício, é usada apenas como “amostra não estatística baseada em riscos” para controle interno de atividades sobre o controle de acesso a dados protegidos por sigilo funcional.

“O monitoramento do acesso aos dados da declaração de Imposto de Renda, atualmente realizado de forma contínua e automática através do Sistema Alerta, é um importante meio que auxilia a Receita na detecção de possível acesso imotivado a informações protegidas por sigilo fiscal”, diz a Receita, em resposta a questionamentos da Unafisco. No mesmo documento, o Fisco diz que só adota procedimentos contra auditores fiscais nos casos de “acesso imotivado”.

Em outro ofício, a Receita diz que não há fiscalização específica sobre as PEPs, apenas sobre o grupo de “grandes contribuintes”, que, segundo os ofícios da Receita à Unafisco, correspondem a 60% da arrecadação fiscal. “Dessa forma, na hipótese de alguma pessoa politicamente exposta estar classificada nesse segmento de elevada capacidade contributiva será acompanhada em razão do perfil de arrecadação e não pela exposição política”, diz o comunicado, assinado pela Subsecretaria de Fiscalização da Receita.

Ou seja, conclui a Unafisco: a Receita assumidamente descumpre as regras de atenção especial às PEPs para se focar apenas em regras internas de recorte de fiscalização.

“Compreensão equivocada”
“A nota técnica decorre de uma conclusão equivocada do que seja o trabalho de fiscalização da Receita Federal”, afirma à ConJur Iágaro Martins. O subsecretário de fiscalização da Receita contradiz alguns pontos das respostas do órgão à Unafisco. Por exemplo, diz ele que as PEPs são “uma das camadas” de verificação de riscos usadas pelos órgãos internos de controle para saber se as ferramentas de prevenção funcionam.

Outros critérios são artistas famosos, ou grandes empresários. “A declaração de renda de uma pessoa física comum não desperta o mesmo interesse de criminosos quanto a de uma pessoa politicamente exposta”, afirma o subsecretário de Fiscalização. Segundo ele, as PEPs são 16,64 vezes mais fiscalizadas que os demais contribuintes. Os números são esses desde 2012, anota Iágaro.

“Estou nessa função desde 2009 e nunca vi nenhum caso que se encaixe na situação descrita pela nota técnica. Quando esse estudo foi publicado, minha preocupação, como a do secretário Jorge Rachid [secretário-geral da Receita], era a de saber se havia denúncia de casos concretos. E não há”, afirma o subsecretário.

Kleber Cabral, presidente da Unafisco, diz que não poderia fazer denúncias porque as pressões são sempre informais. “É sempre um telefonema, uma conversa, mas nunca um ofício, nada por e-mail. Até para que o auditor não possa denunciar, se contrapor”, diz Cabral.

“Se o auditor tem constrangimento informal, ele tem que pedir demissão”, rebate Iágaro Martins. “O auditor não pode se constranger. Se ele está diante de uma situação que apresente indícios de lavagem ou sonegação, por exemplo, ele tem que atuar. É a mesma coisa de um juiz dizer que não vai julgar alguém porque está constrangido diante do cargo que aquela parte ocupa.”

Sem motivos
A preocupação da Receita com o “acesso imotivado” não é banal. Decorre da Portaria 2.344/2011, assinada pelo ex-secretário-geral da Receita Carlos Alberto Barreto, hoje presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

A portaria foi editada por ordem do então ministro da Fazenda, Guido Mantega. Em 2010, a ex-presidente Dilma Rousseff disputava suas primeiras eleições presidenciais, contra o hoje senador José Serra (PSDB-SP). Durante a disputa, informações fiscais de uma filha do senador foram vazadas à imprensa, o que foi reputado a uma manobra eleitoral de emissários do PT, partido de Dilma e do presidente Lula.

Comprovou-se que o vazamento aconteceu depois que uma funcionária do Serpro, a empresa de processamento de dados do governo federal, acessou as informações da filha de Serra e as imprimiu. Ela trabalhava na área de atendimento ao contribuinte, e o governo chegou à conclusão de que não poderia ter acesso àquelas informações, protegidas por sigilo fiscal.

Foi editada, então, a Medida Provisória 507/2010, que descrevia sanções disciplinares para quem vazasse informações fiscais sigilosas de contribuintes. A MP não foi aprovada pelo Congresso e, em 2011, a Receita editou a Portaria 2.344.

“Como o dever de sigilo fiscal não era decorrente daquela Medida Provisória, mas do Código Tributário Nacional, e considerando que já há sanções administrativas disciplinares previstas na Lei nº 8.112/90, a Secretaria da Receita Federal do Brasil decidiu editar novo ato para disciplinar a questão no âmbito do órgão”, diz um informe da Assessoria de Imprensa da Receita, divulgado no dia da edição nova regra.

Entre as sanções previstas está a demissão, com o consequente envio dos autos do processo administrativo para o Ministério Público, para que instaure ações penais e de improbidade administrativa. É com isso que o Sistema Alerta joga quando avisa as chefias de que auditores acessam informações de PEPs, afirma Kleber Cabral, presidente da Unafisco.

Resultados
A Unafisco relaciona essa “proteção” às PEPs com a operação “lava jato”. Segundo o estudo, bilhões de reais foram desviados dos cofres públicos e reinseridos na economia por meio de lavagem de dinheiro. Entre os investigados no Supremo Tribunal Federal, 113 são pessoas politicamente expostas, de acordo com a nota técnica. São seis ministros de Estado, 30 senadores e 71 deputados federais.

Em resposta, a Receita afirma que, somente em relação à “lava jato”, foram abertos 1,6 mil procedimentos fiscais para autuar R$ 12 bilhões. “Muitas das informações investigadas pela força-tarefa da ‘lava jato’ somos nós que passamos”, conta Iágaro Martins, da Receita.

Segundo a entidade de auditores, esses números poderiam ser maiores se o Fisco usasse o critério das PEPs para endurecer a fiscalização. “Teria sido possível descobrir no nascedouro ou até mesmo inibir os crimes hoje investigados na Lava Jato”, diz o estudo.

Talvez. De acordo com levantamento da consultoria AML Consulting, que trabalha com gestão de risco e gerenciamento de imagem para empresas, 10% das pessoas politicamente expostas analisadas pela plataforma da empresa estão envolvidos em crimes financeiros ou de corrupção.

A plataforma, chamada Risk Money, usa o critério do Gafi para definir PEPs. Pela regra do órgão, uma pessoa nunca deixa de ser politicamente exposta, ao contrário do que diz a regra brasileira, que esquece uma PEP depois de cinco anos. Por isso, hoje, a AML acompanha as movimentações de 281 mil pessoas. Dessas, 30 mil estão envolvidas em crimes que podem resultar em danos à imagem de uma contratante, ou até mesmo em responsabilidade penal.

A Risk Money considera “envolvidos em crimes” tanto pessoas formalmente condenadas ou denunciadas quanto pessoas citadas em notícias ligadas a crimes. E dos 30 mil apontados pela consultoria como ligados a crimes financeiros, 11 mil têm ligação com a “lava jato”.

Por isso a Unafisco considera que, se a Receita seguisse as orientações da Convenção da ONU para Corrupção, talvez as investigações hoje não fossem necessárias. “Em vez disso, a Receita Federal editou uma Portaria que penaliza o auditor fiscal por acesso imotivado, e criou um monitoramento sobre os auditores fiscais, com o verniz de um procedimento de auditoria, sob fundamento de proteger a sociedade”, conclui o estudo.

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