Tribuna da Defensoria

Improbidade e a inconformidade de delegado com prisão ilegal

Autor

  • Bruno de Almeida Passadore

    é doutorando em Teoria do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Processual pela mesma instituição defensor público estadual em Curitiba e diretor da Escola da Defensoria Pública do Estado do Paraná.

25 de julho de 2017, 14h37

A socialização é uma característica humana básica, vista como inerente ao indivíduo e capaz de moldar seu comportamento e forma de pensar. Para tanto, o meio social faz uso de métodos cada vez mais eficientes, sendo um dos mais recorrentes a utilização de formas punitivas estatais contra comportamentos socialmente desviantes[1].

Em sociedades erráticas e primitivas, a punição se dava de forma assistemática e irracional, a qual, por ter um viés não igualitário, incontrolável e decisionista — é um recorrente exemplo deste momento a condenação de Robert-François Damiens por parricídio nos idos do século XVIII[2] — era incapaz de moldar com eficácia o comportamento humano. Todavia, contemporaneamente o poder punitivo estatal organiza-se em um sistema institucionalizado, limitado através de uma série de regras e que o torna muito mais previsível. Assim, mostra-se eficiente na internalização da sensação de controle social e apta a normalizar — no sentido de moldar conforme uma norma — o comportamento dos indivíduos de acordo os interesses do poder constituído[3].

Esse sistema punitivo, por sua vez, vai muito além da força física, das grades e das correntes, dando-se de forma mais eficiente por meio de mecanismos mais “leves”. Assim, abandona-se o suplício físico — e até mesmo a prisão — e investe-se em mecanismos que criem uma sensação de vigilância no cidadão e, nesse aspecto, capazes de controlar e moldar o comportamento humano com maior eficácia[4].

Especificamente em relação ao servidor público, torna-se de especial importância que este não possua comportamentos refratários aos interesses dominantes. Afinal, mostra-se certo que um funcionário do Estado que não seja dotado de “disciplina moral” poderá tornar a administração pública altamente instável, ameaçando sobremodo o sistema político vigente[5].

Esse comportamento, por outro lado, não se mostra democraticamente ruim em todo e qualquer momento político. A respeito, André Karam Trindade aponta que a insubordinação de certos servidores públicos — através da denominada jurisprudência dos valores — se mostrou deveras importante para romper com o modelo jurídico vigente na época do nazismo, bem como para superar diversos impasses que a legislação desse regime ainda trazia para o ambiente político alemão do final dos anos 1940 e início de 1950[6].

Não obstante, em um ambiente democrático tal postura mostra-se absolutamente insatisfatória. Neste momento político, no qual a administração pública é submetida aos interesses do povo, permitir o condicionamento do exercício de atividades públicas a um viés pessoal significa colocar em risco ilegitimamente todos os interesses comunitários.

Ante essa situação, o sistema jurídico brasileiro criou a figura da “improbidade administrativa”, procurando estabelecer uma forma de controle do servidor público. Com isso, almejou-se normalizar seu comportamento para que não condicione as funções administrativas — em prol da coletividade — às suas convicções pessoais.

Curiosamente, porém, vive-se um momento em que as garantias fundamentais consagradas na Constituição e representativas do interesse coletivo último passaram a ser vistas por determinada casta política como contrárias aos seus interesses íntimos. Estes se veem como supostamente mais legítimos que as leis e regulamentos consagrados pelos representantes do povo.

Segundo Ingeborg Maus, ao recrudescer um pensamento acerca jurisdição com base nesse paradigma, e antes de ser guardião da lei, “o juiz torna-se o próprio juiz da lei […] investindo-se como sacerdote-mor de uma nova ‘divindade’: a do direito suprapositivo e não-escrito”[7], autorizando-o, portanto, a fazer um juízo de oportunidade e conveniência acerca das escolhas do legislador ou até mesmo do constituinte.

O Judiciário, então, passa a entender que “seus parâmetros de controle de constitucionalidade das leis (ou controle de atos constitucionais relevantes) não deveriam ser pautados pela Constituição vigente, podendo ultrapassar os seus horizontes”. Nesse aspecto, a “competência” do Judiciário deixa de decorrer da Constituição e passa a “deriva[r] diretamente de princípios de direito suprapositivos que o próprio Tribunal desenvolveu em sua atividade constitucional de controle normativo”. Logo, em uma inversão de valores, o Judiciário deixa de ter seu poder decorrente da Constituição e das leis e estas passam a ter legitimidade se decorrentes do interesse de seu suposto protetor[8].

Assim, enquanto representante dos novos “donos do poder”, não é surpreendente que o mesmo magistrado que entende que o Judiciário deve conferir legitimidade ao Legislativo através de interpretação ousadas (para dizer o mínimo) de suas leis[9] defenda a concessão de auxílio de legitimidade duvidosa aos seus pares, uma vez que estes “precisam comprar ternos e não dá para ir toda hora para Miami comprar terno”[10].

Em igual sentido, o mesmo tribunal que é comparado a um sindicato — conforme editorial da Folha de S.Paulo[11] — é o mesmo tribunal que esvazia garantias constitucionais e passa a permitir a prisão de acusado criminal antes do trânsito em julgado de decisão condenatória, apesar da clara intenção do constituinte em sentido oposto[12].

Disso, e em que pese o projeto democrático original, pelo qual a sociedade atua sobre si mesma, programando suas leis e Constituição, as quais, por sua vez, programam e garantem a sua necessária execução através das decisões de órgãos administrativos e judiciais, consolida-se um movimento contrário. Os órgãos de decisão funcionalizam o Direito, direcionando, a seu juízo, a forma como esta será imposto ao cidadão, e, assim, deslocam o procedimento de legitimação da sociedade para si próprios[13] em evidente prejuízo à democracia[14].

Como dito, isso se dá através do esvaziamento de uma série de garantias constitucionais, como: a transformação de indícios e presunções em provas em desfavor do acusado; a inversão do ônus probatório em matéria criminal; a conivência de ex-ministra do STJ com a divulgação de prova ilícita; a ausência de prazos para prisões preventivas e seu uso com o fito de buscar delações premiadas etc.[15].

Por sua vez, ante a consolidação do entendimento de que os interesses da administração pública, antes de refletir diretamente o interesse da sociedade, merecem ser “filtrados” pelo Poder Judiciário, deve-se normalizar o comportamento do servidor público que deseja impor seu viés pessoal ao interesse dominante. Deve-se internalizar nos funcionários públicos que o estado policialesco — desejado pelas autoridades de plantão — está na ordem do dia.

Com esse triste viés, temos a notícia da condenação de delegado da Polícia Civil por ato de improbidade administrativa e perda de seu cargo, tendo em vista que se recusou a lavrar auto de prisão em flagrante de uma mulher — sem prova cabal de sua dedicação a atividades criminosas — que procurava adentrar em estabelecimento prisional com cerca de 40 gramas de maconha em seu ânus para visitação de seu companheiro. Essa mulher, vale apontar, também possuía um filho de tenra idade, tornando apta, portanto, à substituição da prisão cautelar pela domiciliar — nos termos do artigo 319, V, do CPP[16]—, o qual igualmente levava para visitar seu companheiro preso.

Nesse sentido, recusando-se a lavrar o auto de prisão em flagrante, classificando a conduta narrada não no caput do artigo 33 da Lei de Drogas, mas em suas figuras privilegiadas, que até mesmo permitiriam a conversão da pena corporal por restritiva de direitos, o indigitado delegado de polícia perdeu seu cargo. Afinal, e conforme a decisão do juízo local, “a conduta do réu mostrou-se incompatível com os princípios regentes da atividade estatal, mormente a honestidade e a lealdade das instituições”, ressaltando, que, a conduta do delegado não permitiu a prisão preventiva da acusada, ocasionando o “desestímulo ao combate ao tráfico de entorpecentes, dentro das unidades prisionais”[17].

Temos, portanto, o curioso paradoxo. Chegamos a um momento de esgarçamento das garantias constitucionais penais em prol de um discurso punitivista extremado e decorrente de uma verdadeira apropriação indébita do poder do povo pelo aplicador, como bem frisa Alexandre Morais da Rosa[18]. Por sua vez, um dos principais instrumentos utilizados para garantir uma necessária “disciplina moral” dos servidores públicos — e imperiosas para que estes não submetam os interesses públicos e representativos da vontade do povo a suas vontades privadas, como apontado — passa a ser utilizado exatamente por aquela casta que isso o faz. Nesse aspecto, sequestra-se o poder de normalização democrático do Estado para transformá-lo em um instrumento de retroalimentação destes novos donos do poder.

A conclusão que se chega não é outra, exceto que projeto democrático constitucional sofre (duplamente), de um lado, pela imposição de um viés pessoal ao exercício da função pública em benefício de poucos; e, de outro, pelo uso de instrumentos de normalização de comportamentos em favor deste grupo e em prejuízo de todo a comunidade.


[1] QUEIRÓZ, Paulo, Direito Penal – Parte Geral. 4ª edição, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008, p. 24/25.
[2] Segundo Michael Foucault, a pena de Damiens foi o suplício de ser ser-lhe jogado chumbo derretido e óleo fervente, ter pernas e braços desmembrados por cavalos e, finalmente, ter queimado seu dorso vivo até ser reduzido a cinzas (Vigiar e Punir, trad. Raquel Ramalhete. 27ª Edição, Petrópolis: Ed. Vozes, 1999, p. 09/11).
[3] FOUCAULT, Michael, Vigiar e Punir, trad. Raquel Ramalhete. 27ª Edição, Petrópolis: Ed. Vozes, passim.
[4] Citamos, a título de comentário, a recente película denomina O Círculo (2017), de James Ponsoldt. Em um determinado momento e exatamente no sentido de moldar o comportamento de determinadas pessoas — inclusive uma congressista — aos interesses de empresa que inspira o título da obra, propõe-se que tais se submetam à vigilância constante. Nesse aspecto, o comportamento da personagem principal, Mae Holland — interpretada por Emma Watson —, se inicialmente se mostrava duvidosa sobre a legitimidade dos interesses do “O Círculo”, após se submeter a uma constante vigilância, torna-se defensora de tais, demonstrando, portanto, a intensa capacidade normalizadora de poderes “leves” e não violentos.
[5] WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações, trad. Leonidas Hegenberg e Octany da Mota. 18ª edição, São Paulo: Ed. Cultrix, 2011, p. 97.
[6]TRINDADE, André Karam. Garantismo versus Neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo judicial em terrae brasilis. in Garantismo, Hermenêutica e (Neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli, coord. Luigi Ferrajoli, et. alii., Porte Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2012, 112/114. Sobre a questão, e apesar de contundente crítico do voluntarismo judicial, assim se manifesta o autor: “[…] o ativismo judicial impulsionado pela jurisprudência dos valores foi uma das primeiras respostas jurídicas à crise de paradigma inaugurado após a queda do Terceiro Reich” (Ibidem, p. 114).
[7] MAUS, Ingebord. O Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”, trad. Martonio Lima Albuquerque. in Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), n. 58, nov./2000, p. 196.
[8] MAUS, Ingebord, O Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”, trad. Martonio Lima Albuquerque. in Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), n. 58, nov./2000, p. 191.
[9] “É isso o que deve legitimar um novo protagonismo do juiz contemporâneo. Protagonismo saudável, consequência da possível anomalia da função legislativa. Resposta democrática à potencialidade de danos decorrentes dessa lei com endereço certo. Não é só isso. Há uma verdadeira inflação normativa. À proliferação das regras, corresponde o comprometimento de sua clareza conceitual. O ordenamento torna-se opaco e o juiz lhe devolverá transparência, à medida que vier a aplicá-lo. O juiz, que já foi considerado braço do Executivo, é hoje o braço legitimador do Legislativo. É exclusivamente seu o desafio de fazer conformar a vontade da lei à vontade da Constituição” (NALINI, José Renato. A Rebelião da Toga. 2ª edição, Campinas: Ed. Millennium, 2008 p. 323 – grifos adicionados).
[10] Referimos à entrevista do então presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Renato Nalini, à TV Cultura defendendo a instituição do famigerado auxílio-moradia a juízes e promotores. Para acesso da entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=AbrQc22CJE0, acesso em 10/7/2017. Essa entrevista, por sua vez, foi objeto de interessante crítica cômica por Gregório Duvivier e pode ser acessada em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-duvivier-fala-dos-direitos-e-privilegios-do-judiciario-como-os-penduricalhos-nos-salarios/, acesso em 10/7/2017.
[11] "Péssimo Exemplo". In Folha de S.Paulo, ano 95, n. 31.544, 14/8/2015.
[12] Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus 126.292, rel. min. Teori Zavaski, j. 17/2/2017.
[13] HABERMAS, Jürgen, Soberania Popular como Procedimento: um conceito normativo de espaço público, trad. Márcio Suzuki. in Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), n. 26, mar./1990, p. 107/108. Igualmente, Ferrajoli aponta um inadequado crescimento da importância da atividade judicial, sendo que esta acaba por se tornar o principal fator de legitimidade do Direito (FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo Principialista e Constitucionalismo Garantista, trad. André Karam Trindade. in Garantismo, Hermenêutica e (Neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli, coord. Luigi Ferrajoli, et. alii., Porte Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2012, p. 21).
[14] Sobre a questão, Fausto Santos de Morais é enfático: “Não há democracia ao se substituir a vontade do legislador pela vontade do julgador” (Hermenêutica Jurídica e Pretensão de Correção: uma revisão crítica da aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Tese de Doutorado em Direito, Universidade do Vale do Rio Sinos, 2013.p. 223). Também nesse caminho, Alexandre Morais da Rosa fala de uma apropriação indébita do poder soberano do povo pelo Judiciário: A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal. 2ª edição, Lisboa: Ed. Rei dos Livros, 2015, p. 96. Assim como Fábio Konder Comparato: Réquiem para uma Constituição. in Edição Comemorativa da Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, 2015, p. 84.
[15] A situação, vale apontar, vai muito além. Ante a limitação de espaço da presente coluna, lembramos do reiterado posicionamento de Lenio Streck acerca da ameaça à democracia tendo por algozes não mais detentores de cargos no Poder Executivo, mas, sim, no Judiciário. Por todos, ver: STRECK, Lenio Luiz. Check List: 21 razões pelas quais já estamos em Estado de Exceção, http://www.conjur.com.br/2017-jun-29/senso-incomum-check-list-21-razoes-pelas-quais-estamos-estado-excecao, acesso em 29/6/2017.
[16] “Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: […] V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; […]”.
[17] Processo 1008253-56.2014.8.26.0361, Vara da Fazenda Pública de Mogi das Cruzes, juiz de Direito Bruno Machado Miano, decisão de 18/5/2017.
[18] A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal. 2ª edição, Lisboa: Ed. Rei dos Livros, 2015, p. 96.

Autores

  • Brave

    é defensor público auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná, presidente da comissão de Prerrogativas da Defensoria Pública do Paraná e mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP.

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