Briga antiga

Eficácia de delação firmada pela polícia opõe delegados a procuradores

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25 de julho de 2017, 13h12

A notícia de que o publicitário Marcos Valério firmou acordo de delação premiada com a Polícia Federal levantou dúvidas sobre a eficácia dessa transação, que, na operação “lava jato”, vem sendo conduzida pelo Ministério Público Federal. Por um lado, delegados afirmam que essa forma de colaboração não difere da outra, e é prevista na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013). Por outro, procuradores da República dizem que tal via não dá segurança jurídica ao criminoso confesso, pois não impede o MP de mover ação penal.

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A delação de Marcos Valério com a PF reviveu o debate se a corporação pode firmar acordo do tipo — MPF diz que não.

A Lei das Organizações Criminosas estabelece que o acordo de colaboração premiada pode ser firmado tanto pelo MP quanto pelo delegado de polícia. Mas em abril de 2016, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade dos trechos do artigo 4º, parágrafos 2º e 6º, daquela norma, que conferem à polícia judiciária tal prerrogativa.

Segundo Janot, a delação só pode ser firmada pelo MP, uma vez que é este órgão que detém o poder de mover ou não a ação penal. Além disso, o PGR opinou que a cooperação feita com a polícia viola o direito de defesa do acusado, pois aquela corporação não é parte do processo.

Já a Advocacia-Geral da União pensa de forma diferente. Em sua manifestação nessa Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.508), a procuradora federal Maria Carla de Avelar Pacheco entendeu que a delação é só mais um meio de obtenção de provas. Por isso, seu uso pela polícia não pode ser impedido. Caso contrário, o combate ao crime organizado ficaria prejudicado, analisou a advogada da União. O STF ainda não julgou essa ação nem homologou alguma colaboração premiada firmada pela PF.

Diferentemente das delações celebradas pelo MPF, o acordo de Valério — que ainda não foi homologado — não estabelece benefícios, informou o jornal Folha de S.Paulo. Assim como o termo firmado pela PF com o marqueteiro Duda Mendonça, o do publicitário condenado a 37 anos de prisão na Ação Penal 470, o processo do mensalão, apenas prevê que o juiz poderá, depois de ouvir o MP, conceder perdão judicial ou reduzir a pena em até dois terços, como previsto no artigo 4º da Lei das Organizações Criminosas.

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De acordo com Márcio Anselmo, homologação de delação firmada pela polícia vincula o Ministério Público
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Na visão do delegado federal Márcio Anselmo, um dos integrantes da equipe original da operação “lava jato” em Curitiba, a cooperação celebrada pela polícia é mais fiel à Lei das Organizações Criminosas do que acordos que prevejam benefícios e obrigações não previstos na legislação — por exemplo: o cumprimento da pena a partir da assinatura do compromisso, sem sentença condenatória, como foi imposto pela PGR a executivos da Odebrecht.

Dessa maneira, explica o delegado, quando o magistrado for julgar a ação penal, já terá uma visão mais consistente sobre a veracidade das informações do delator e a qualidade das provas que ele apresentou para corroborar sua narrativa. Isso poderia evitar a revisão posterior da colaboração, algo admitido pelo Supremo Tribunal Federal se acontecer algo que justifique o ajuizamento de ação rescisória, nos termos do Código de Processo Civil.

Tania Fernanda Prado Pereira, também delegada de Polícia Federal, afirma que a fixação do benefício no momento da sentença aumenta a segurança jurídica do colaborador. Isso porque a concessão, pelo MP, de prêmio não previsto na Lei das Organizações Criminosas pode posteriormente ser considerada ilegal e anulada.

Já o procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Rio de Janeiro Afrânio Silva Jardim declara que a delação da PF afasta o absurdo do "negociado sobre o legislado" – algo que não se pode admitir em Direito Público, Direito Penal e Direito Processual Penal. “Vale repetir: na forma adotada pela Polícia Federal, o acordo não pode ‘inventar’ prêmios e criar regimes de penas não autorizados pelo nosso Direito. Não constariam também cláusulas que extrapolassem o objeto da investigação”, sustentou em sua página no Facebook.

A medida também tem o potencial de desestimular acusações exageradas com o objetivo de obter os benefícios da colaboração. Ao pedir o arquivamento de investigação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por obstrução de justiça, o procurador Ivan Cláudio Marx apontou que o ex-senador Delcídio do Amaral pode ter citado o líder do PT para “aumentar seu poder de barganha” perante a Procuradoria-Geral da República para fechar acordo de delação.

Outra diferença é que, no modelo da PF, o colaborador não conta “tudo o que sabe” sobre crimes e seus participantes. Ele se manifesta apenas sobre fatos investigados em um inquérito específico. Se for acusado de vários delitos, o suspeito pode firmar diversas delações.

Anselmo e Tania ainda argumentam que a delação celebrada pela polícia é eficaz, pois o órgão tem o poder constitucional de investigar. Tanto que compromissos desse tipo já contribuíram muito com apurações de grandes casos, como a operação acrônimo, que examina desvios em campanhas eleitorais, as investigações de cartel no metrô de São Paulo e inquéritos sobre pedofilia, menciona a delegada.

Na opinião de Márcio Anselmo, o MP fica vinculado ao acordo de colaboração conduzido pela polícia e homologado pelo juiz. E se o órgão não concordar com os benefícios concedidos pelo magistrado, pode recorrer contra eles, analisa Tania Pereira.

Outro lado
Porém, o secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República, Vladimir Aras, afirma que acordo de delação premiada firmado pela polícia é ineficaz, pois, mesmo homologado, não impede o MP de investigar os fatos e propor ação penal.

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Para Vladimir Aras, delação firmada com a polícia e ineficaz e insegura pro acusado.
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“Uma conciliação ou mediação, como é o acordo de colaboração premiada, serve para obter provas, gerar econômica processual e impedir que o conflito seja perpetuado em juízo. Se um acordo é firmado sem envolver uma das partes, aquela que não participou vai se sentir encorajada a contestar o compromisso. Para o sistema como um todo, não há nenhum proveito, pois a questão continuará sendo discutida”.

Como quem decidirá os benefícios do termo celebrado pela polícia é o magistrado, há risco de retrocesso ao modelo pré-Constituição de 1988, afirma Aras. Antes da Constituição, vigorava o sistema penal inquisitorial, no qual o juiz acusava e julgava.

No começo de julho, o procurador da República criticou, pelo mesmo motivo, proposta de deputados de excluir o MP das negociações de compromisso de delação. A ideia dos parlamentares é que o juiz, por ser o responsável pela homologação do acordo e por fazer valer a maioria de suas cláusulas, fosse o responsável por negociar com investigados.

Vladimir Aras também questiona os benefícios que podem ser oferecidos ao delator pela polícia, ainda mais no caso de alguém já condenado, como Marcos Valério. Nessa situação, a Lei das Organizações Criminosas autoriza a redução de até metade da pena ou a progressão de regime mesmo que ausentes os requisitos objetivos.

A definição dos prêmios só na sentença ainda aumenta a insegurança jurídica do delator, avalia Aras. Sem saber o que irá receber — e se irá receber — por contar o que sabe, ele pode ser desestimulado a cooperar com as investigações.

O alcance da imunidade conferida ao colaborador pela polícia ainda é menor do que o do MP, opina o secretário da PGR. Como exemplo, ele cita que delegados não podem proteger colaboradores de ações de improbidade administrativa, como promotores e procuradores fazem.

Integrante do Ministério Público Federal por quase 30 anos, o último ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, Eugênio Aragão, destaca que a polícia tem os mesmos poderes de sua antiga casa para celebrar colaborações.

No entanto, ele diz haver dúvidas sobre o poder da corporação de firmar delação em casos que envolvam autoridades com foro por prerrogativa de função, uma vez que a polícia não tem capacidade postulatória junto a tribunais.

A vantagem para o acusado de firmar delação com a polícia, conforme Aragão, é a de instrumentalizar o conflito entre a corporação e o MP. Assim, se uma dessas instituições não quiser levar as negociações adiante, o suspeito pode procurar a outra.

Acordo de paz
Em meio à disputa entre Ministério Público e Polícia Federal ou Civil, advogados cobram que esse órgãos lutem para que a Lei das Organizações Criminosas fosse reformada para incluir dispositivo estabelecendo que representantes das duas instituições participem das negociações de compromissos desse tipo.

Isso foi o que os criminalistas Pierpaolo Cruz Bottini, do Bottini e Tamasauskas Advogados, e Giovani Agostini Saavedra, do Saavedra & Gottschefsky Advogados, afirmaram à ConJur em maio de 2016.

Para Bottini, a inclusão de redação na lei prevendo a participação do MP e das polícias no acordo de delação diminuiria conflitos entre essas corporações e aumentaria a segurança jurídica. Além disso, deixaria o delatores mais tranquilo por saber que está lidando com autoridades que trabalham em conjunto.

Saavedra concorda e vai além: para ele, a colaboração premiada e o acordo de leniência seriam mais eficazes se tivessem efeitos em todas as esferas administrativas e judiciais. Isso, de acordo com ele, acabaria com situações como a de uma empresa que firma um compromisso com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica e fica imune na área concorrencial, mas continua respondendo por seus atos no âmbito da Lei Anticorrupção.

*Texto alterado às 14h16 do dia 25/7/2017 para acréscimo de informações.

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