Direito Civil Atual

Caso Charlie Gard: quem define o melhor interesse da criança?

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24 de julho de 2017, 12h00

ConJur
Charlie Gard, nascido em agosto de 2016 e filho de Chris Gard e Connie Yates, foi diagnosticado aos dois meses de idade com uma rara doença genética, a Síndrome de Depleção Mitocondrial, enfermidade degenerativa que acarreta debilidade motora, perda dos sentidos e danos cerebrais. Encontra-se internado no Great Ormond Street Hospital, em Londres, e sobrevive graças a aparelhos. Em março deste ano, a equipe médica do hospital convenceu-se de que os danos cerebrais causados eram irreversíveis e que nada mais podia ser feito pelo pequeno Charlie, além de cuidados paliativos que lhe permitissem morrer com dignidade.

Os pais do menino, por outro lado, desejavam submetê-lo a um tratamento experimental nos Estados Unidos, tendo angariado os fundos necessários para custear a transferência e as despesas médicas. Diante da divergência, o hospital judicializou o conflito, requerendo a declaração de que a retirada da ventilação artificial e a oferta de cuidados meramente paliativos é lícita e corresponde ao melhor interesse de Charlie; e de que é lícito e corresponde ao melhor interesse da criança não se submeter à terapia experimental. Após ouvir diversos profissionais, tanto do hospital, quanto indicados pelos pais, além de profissionais independentes, o juiz Nicholas Francis convenceu-se de que o tratamento em questão não traria benefícios ao menor e que o melhor interesse da criança seria morrer com dignidade, sendo lícito ao hospital retirar todos os tratamentos em curso, mantendo apenas cuidados paliativos.

Inconformados com a decisão, os pais de Charlie recorreram ao Tribunal de Apelação e à Suprema Corte Britânica, sem sucesso. Pleitearam, inclusive, a intervenção da Corte Europeia de Direitos Humanos sem que tenham obtido resposta favorável. Ao analisar as decisões prolatadas[1], vê-se que uma questão absolutamente relevante para o caso, mas ignorada na argumentação do primeiro grau, passou a ser apreciada a partir da apelação: em que situações o Estado está autorizado a sobrepor-se à decisão dos pais acerca do melhor interesse da criança? Seus pais argumentam que – para que o Estado se sobreponha à autoridade parental – , é necessário que a criança em questão esteja sofrendo ou na iminência de sofrer dano significativo atribuído ao cuidado dos pais ou que ela esteja além do controle parental.

É interessante destacar que desde a primeira instância os juízes que participaram do caso destacaram o afeto e o cuidado que os genitores de Charlie demonstram por ele. Em nenhum momento cogitou-se que os pais não estejam agindo em vista do que consideram ser o melhor interesse da criança. Ainda assim, as afirmações médicas da irreversibilidade dos danos cerebrais sofridos por Charlie e da ausência de comprovação científica da viabilidade da terapia com nucleósidos convenceram os magistrados de que o melhor interesse do infante consiste em não se submeter ao tratamento e passar a receber apenas cuidados paliativos. Parece que, neste caso, a intervenção estatal na definição do melhor interesse da criança prescinde da análise do exercício da autoridade parental, mas submete-se a um critério médico ou, pode-se até dizer, à jurisdição médica.[2]

A questão da “jurisdição médica” encontra um dos seus principais pressupostos no julgamento do case Quinland, pelo Tribunal Superior do Estado de New Jersey (EUA) em meados da década de 1970. Trata-se do caso de uma jovem de vinte e um anos, que se encontrava em coma há cerca de sete meses, sobrevivendo apenas devido ao auxílio de um aparelho que artificialmente mantinha a sua atividade respiratória. Os médicos consultados, apesar de não acreditarem ser possível a recuperação da jovem, insistiam em manter aquela situação artificial. Os pais adotivos da jovem, diante das expectativas negativas geradas pelo parecer profissional, pediram uma autorização ao poder judiciário para desconectar o aparelho que mantinha a atividade respiratória.[3] A decisão judicial, contudo, não acolheu o pedido dos familiares da jovem paciente. Segundo o juiz, “a questão de prolongar a vida da jovem era uma decisão que invadia a competência ou jurisdição médica”, pelo que rechaçou a tentativa de desligar o respirador e concordou com a opinião dos médicos que acompanhavam o quadro de saúde da paciente. Além de reconhecer a “jurisdição médica”, também fundamentou a sua decisão nas leis vigentes no Estado de New Jersey, que prescrevem taxativamente que “a simples intenção de pôr fim à vida de outra pessoa, quaisquer que sejam os motivos, é causa suficiente para o ajuizamento de uma ação criminal.”[4]

Talvez cause espanto para muitos, tanto no caso “Charlie Gard” como no precedente norte-americano, o poder conferido a uma classe profissional como a dos médicos de decidir sobre a aplicação de normas jurídicas e, especialmente, sobre “a vida ou a não-vida.”[5] Nestes casos, aparentemente, os órgãos supostamente investidos de competência para decidir sobre esta questão (o poder legislativo, o judiciário etc.) abdicaram deste mister, transferindo esta responsabilidade para os técnicos (ou seja, os médicos), o que torna ainda mais dramática a questão. Parece-nos, entretanto, que esta “jurisdição médica” — tendo em vista muitas vezes a premência na tomada de decisões (sob pena de tornar irreversível o dano à saúde dos pacientes) — não é dotada da mesma dialeticidade da seara jurídica. Tome-se, por exemplo, o caso da interpretação das diretivas antecipadas de vontade no Brasil.

De acordo com a Resolução 1.995/2002 do Conselho Federal de Medicina, o médico está liberado de cumprir tais diretivas se considerar que estão em desarmonia com o que prescreve o Código de Ética Médica (art. 2º, parágrafo 2º). Otávio Luiz Rodrigues Júnior, uma das principais referências nacionais em matéria de direitos da personalidade, observa que esta resolução conferiu ao médico uma atribuição deveras complexa e difícil, qual seja de “interpretar a vontade do paciente e de confrontá-la com os limites do código de ética médica”; e que é no mínimo curioso o fato do legislador se encarregar de regular minudentemente um contrato como o de mandato, que tem conteúdo preponderantemente patrimonial, mas se omitir quanto a regulação das diretivas antecipadas de vontade (ou “testamento vital”), deixando tal mister “para a esfera normativa de uma corporação de profissionais, contentando-se com a invocação da dignidade humana como ratio para o exercício de um direito que interfere no sentido e no alcance da própria vida de um indivíduo.”[6]  Enquanto no judiciário impõe-se o contraditório e a ampla defesa, com ampla possibilidade de interposição de recursos perante os diversos tribunais, a decisão médica parece produzir uma coisa julgada “imediata”, restando prejudicada a possibilidade de rediscussão.

O médico (assim como o cientista), na qualidade de profissional especializado, realiza julgamentos políticos e jurídicos questionáveis. Não é que se possa colocar em dúvida o “caráter” dos médicos, ou que se possa acusá-los de ingênuos; “mas precisamente o fato de que habitam um mundo no qual as palavras perderam o seu poder. E tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido.”[7] Considerando estritamente os argumentos médicos, os tribunais britânicos concluíram ser do melhor interesse de Charlie desligar-se da ventilação mecânica, uma vez que, segundo a opinião dos profissionais consultados, o tratamento alternativo seria fútil, não traria benefícios à saúde da criança. Por outro lado, uma razoável dúvida acerca da eficácia do tratamento alternativo, corroborada por novas evidências científicas, levou o próprio Hospital a solicitar nova audiência com a Suprema Corte. [8]  Uma questão prioritária, como visto, consiste em deliberar, inicialmente, se compete aos pais decidir dentre as vias de tratamento possíveis, a que melhor atende aos interesses do filho. Se fôssemos utilizar os critérios brasileiros, certos de que não há má conduta dos genitores em relação ao filho, a estes caberia decidir e consentir acerca do tratamento médico.[9]

No caso britânico, os pais de Charlie lutam para convencer os magistrados de que o tratamento alternativo não causa dano significativo à criança e de que o melhor interesse do filho é submeter-se ao tratamento numa última tentativa de debelar a doença genética que lhe acomete. Após o requerimento de nova audiência pelo hospital, Charlie está sendo submetido a nova bateria de exames para avaliação do médico norte americano Michio Hirano, disposto a realizar o tratamento experimental. Novo pronunciamento do juiz Nicholas Francis está previsto para 25 de julho. É possível que a noção de melhor interesse até agora vigente modifique-se com base nas novas evidências. Neste caso, não teria sido o melhor interesse desde sempre aquele defendido pelos pais em pleno exercício do poder familiar? Aguardemos os desdobramentos do caso e vejamos.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1]Decisão de primeiro grau disponível em: http://www.bailii.org/ew/cases/EWHC/Fam/2017/972.html, Decisão da Corte de Apelação: http://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/Civ/2017/410.html, Decisão da Suprema Corte Britânica: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/charlie-gard-190617.pdf
[2]COSTA FILHO, Venceslau Tavares da. Fim da personalidade jurídica da pessoa natural: breve estudo a partir do direito positivo brasileiro. In: EHRHARDT JR, Marcos (Coord.). Os 10 anos do Código Civil: evolução e perspectivas. Belo Horizonte, 2012. p. 55-65.
[3]DIÉZ-PICAZO, Luis. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos esbozos). Madrid: Civitas, 1979, p. 105
[4]DIÉZ-PICAZO, Luis. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos esbozos). Madrid: Civitas, 1979, p. 106.
[5]DIÉZ-PICAZO, Luis. Derecho y masificación social: tecnología y derecho privado (dos esbozos). Madrid: Civitas, 1979, p. 106-107.
[6]RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Diretivas antecipadas de vontade: questões jurídicas sobre se conceito, objeto, fundamento e formalização. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães (org.). Estudos em homenagem a Ivette Senise Ferreira. São Paulo: LiberArs, 2015, p. 386. Em matéria de diretivas antecipadas de vontade, destaque-se também o alentado estudo conduzido pela Professora Doutora Maria Vital da Rocha: ROCHA, Maria Vital da; DIAS, Eliza Cristina Gonçalves. Direitos para além da vida: a possibilidade de testar sobre direitos da personalidade. Revista Jurídica Luso-brasileira, n. 1 (2015), p. 1635-1651. Disponível em: http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2015/1/2015_01_1635_1651.pdf Acesso em: 21 de julho de 2017.
[7]ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 12.
[8]http://www.gosh.nhs.uk/news/latest-press-releases/latest-statement-charlie-gard
[9]De acordo com o Código de Ética Médica brasileiro, é vedado ao médico (art. 41, caput) “Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único.” Entretanto, tal vedação é excepcionada pela regra contida no parágrafo único do art. 41: “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”

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