Segunda Leitura

Entrada e rejeição nos círculos de poder das profissões jurídicas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de julho de 2017, 8h01

Spacca
Os relacionamentos humanos só são simples na aparência, pois, na verdade, trazem consigo toda uma série de sentimentos ocultos, positivos e negativos. Por outro lado, sabidamente, são essenciais para o sucesso profissional, sendo sua importância tão grande quanto a do conhecimento.

No universo das relações pessoais, formam-se, naturalmente, círculos de pessoas com pensamentos, interesses e objetivos semelhantes. Estes grupos, que se criam desde o início de nossa vida escolar e que nos acompanham durante toda a vida, estão presentes em todos os setores. Não há diferença entre o que ocorre em um clube de uma pequena cidade do interior e a cúpula da universidade colocada em primeiro lugar no ranking nacional.

Se assim é em todos os lugares, inclusive no alto clero da Igreja Católica, onde o Papa Francisco sofre forte resistência de grupos conservadores, não poderia ser diferente no interior das profissões jurídicas. Nelas, também, o ingresso em determinados círculos de poder é extremamente difícil.

A primeira observação que se faz é a de que alguém poderá passar toda a sua vida sem sofrer este tipo de rejeição. Basta que não tenha interesse, ambição. Uma pessoa pode passar a vida sem enfrentar confrontos, basta que não procure mudar as coisas. Mas, evidentemente, não terá nenhuma chance de transformar a situação no que supõe que seria melhor. Suas insatisfações ficarão no plano interno ou em uma conversa de mesa de bar. Em poucas palavras, é o falar e o fazer. O primeiro é cômodo e o segundo, trabalhoso. Mas só este transforma.

Com efeito, se a pessoa acredita e tem a intenção de mudar o mundo, mesmo que nos pequenos limites de sua sala de trabalho, terá que enfrentar interesses que, por vezes, são opostos.

Nas profissões jurídicas dá-se o mesmo. Todas possuem seus círculos de poder que ditam as regras em determinados assuntos. E estranhos, ainda que competentes e bem-intencionados, podem ter dificuldades em entrar nestes pequenos mundos.

A primeira indagação a ser feita é sobre o motivo da construção da invisível muralha que impede o acesso de terceiros. Os motivos nunca são ditos com clareza, mas basicamente eles se fixam em dois pontos: a) quem está no poder teme a entrada de novos parceiros, porque podem ofuscar seu brilho; b) estranhos podem não ser bem-intencionados.

Vejamos algumas situações, exemplos tirados de casos reais:

  1. A jovem Promotora de Justiça, que desde a graduação era apaixonada pelo Direito Ambiental, quer participar do grupo de apoio à Coordenadoria do Meio Ambiente. Contudo, nela estão históricos membros da instituição, que não se animam a abrir espaços de poder, porque, afinal, ali alcançam destaque e recebem convites para palestras em congressos.
  2. O jovem aprovado no concurso para a magistratura conhece profundamente a informática e quer participar da comissão do Tribunal que trata do processo eletrônico. No entanto, suas manifestações a respeito não têm resposta.
  3. Advogada especializada em Direito de Família habilita-se a participar da Comissão da OAB sobre a matéria. Todavia, nas reuniões, ao tentar expor seus planos e suas ideias, tem a palavra cortada, sob a alegação de falta de tempo. No Congresso organizado pela Comissão, não é lembrada para qualquer atividade e seu acesso ao conferencista que idolatra é barrado sutilmente.

Estas e outras situações da vida se repetem continuamente. Diante delas surgem duas alternativas: afastar-se e passar a falar mal do grupo no poder, o que em nada mudará as coisas, ou usar estratégias para alcançar o seu espaço. Afinal, a resistência pode ser quebrada, ainda que isto possa exigir tempo e dedicação.

A primeira medida a ser tomada é analisar a situação com autocrítica, se possível, até com aconselhamento junto a um amigo mais experiente. É muito bom perguntar a si próprio: será que errei? E, se for o caso, corrigir a falta, sem nenhum constrangimento. Reconhecer um erro é ato de grandeza e em nada diminui a pessoa.

A segunda providência é controlar severamente o orgulho, a arrogância. Imagine-se um jovem professor que, com os mais disputados títulos acadêmicos, ingressa no programa de pós-graduação em Direito de uma universidade, lecionando no mestrado e doutorado. Na primeira reunião enfrenta um antigo colega que está no programa desde a sua fundação. Com argumentos fortes, vence a discussão. Mais tarde, suas propostas serão sistematicamente rejeitadas pelos demais. O preço a ser pago por sua arrogância vai ser cobrado com juros e correção monetária.

Uma terceira estratégia nesse jogo complexo é aceitar e cumprir as tarefas que lhe são solicitadas. Muitas vezes o grupo quer testá-lo, ver seu grau de responsabilidade e comprometimento. E com isto dão-lhe atribuições de menor complexidade, como colher notícias ou tirar fotos para serem colocadas no site. Se o pretendente julgá-las indignas de sua imensa sabedoria, poderia negar-se a cumpri-las e, consequentemente, sair do grupo. Mas, se mostrar-se disposto a colaborar, com certeza, mais adiante, será lembrado para atividades de maior envergadura.

Uma outra forma de entrar e conquistar o território inóspito é mostrar que é reconhecido fora. Pode parecer estranho, mas funciona. Por exemplo, o servidor da Justiça tem mil ideias na cabeça para aprimorar o sistema. Todavia, um antigo grupo de funcionários do Tribunal, por vezes antigos amigos dos desembargadores, não lhe dá entrada. Participar de um grupo externo, de uma associação ou instituto afinado com seus interesses, ter amigos da área em outros Tribunais, são excelentes medidas para que os da casa abram-lhe as portas. Voluntária ou involuntariamente.

Capacitar-se, fazer-se respeitar, é também um bom caminho. Um delegado de Polícia Civil que deseja ser professor na Academia, integrar grupos de estudos, propor reformas, estará muito mais legitimado a reivindicar posições importantes se apresentar um título de doutorado ou, pelo menos, de mestrado. Se tornar-se palestrante, autor de artigos, melhor ainda. O caminho é mais árduo, mas será compensador. O crescimento cultural vai auxiliá-lo muito além do desejo inicial de lecionar na Academia.

Outro ingrediente necessário nesse complexo cenário é não criar caso por coisas pequenas. Se na caminhada da afirmação do nome e do conceito surgirem momentos desagradáveis, a eles não deve ser dada maior importância. Por exemplo, o defensor público recebe o primeiro convite para falar aos colegas do interior sobre a matéria de sua especialidade. No entanto, no aeroporto não há ninguém a esperá-lo ou, no momento da palestra, somente três colegas comparecem. Tais aborrecimentos não devem ser superestimados. Ao contrário, devem ser minimizados, pois quem ouvir um relato choroso a respeito poderá concluir que dele é a culpa, pois, provavelmente, sua palestra é um sonífero superior ao Rivotril.

Sintetizando o exposto: para mudar as coisas é preciso ter poder e este nunca é dado, sempre é conquistado. As resistências encontradas na caminhada não devem ser motivo de desânimo, mas sim ser recebidas como essenciais ao crescimento pessoal. Superá-las é a atitude dos que, realmente, querem alcançar seus objetivos. Desistir diante dos desafios significa abrir mão dos sonhos e isto pode ir muito além do ingresso em um círculo de poder.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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