Opinião

A Justiça deve transcrever audiência de caso complexo

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22 de julho de 2017, 15h31

O avanço tecnológico está alcançando o direito. Ainda que a duras penas. E a irreversível migração para o sistema de processamento digital – incômodo constante dos tradicionalistas – é exemplo emblemático desta realidade. Assim, em que pese o desconforto de alguns, a comunidade jurídica parece uníssona quanto à necessidade inexorável de se incorporar tais ferramentas ao Judiciário, em busca de sua maior eficiência.

Contudo, há que se atentar a uma importante questão: o uso de inovações tecnológicas, na prática forense, sempre traz benefícios? Estaria, por exemplo, o direito de defesa amplamente garantido pela colheita de provas em audiência por meio  do sistema audiovisual? 

É indiscutível que o registro digital dos atos de instrução proporcionou resultados de grande valia. Da otimização do tempo, pela maior celeridade das audiências e capacidade das pautas, à possibilidade de se reviver sutilezas intransponíveis ao papel, como, por exemplo, fisionomias e  reações.

A implementação desse recurso pareceu satisfazer a todos os atores da justiça, conquistando, assim, cada vez mais adeptos – vide o próprio art. 367, §5º, do Novo Código de Processo Civil. Assim, mais uma vez, o argumento infalível das vantagens do progresso roubou a cena.

E o anseio pela modernização e eficiência fez calar as idiossincrasias dos casos concretos, fazendo-nos acreditar que a medida era de legitimidade incontroversa, restando, a quem ousasse questioná-la, apenas a pecha do conservadorismo. Por fim, a conformação do ordenamento jurídico à nova demanda, fundada, sobretudo, na alteração do art. 405, §1º e §2º do CPP, bem como na  implementação da Resolução 104/2010 do Conselho Nacional de Justiça, deu-nos a certeza de que não havia motivo para relutar contra o que estava na legislação.

Afinal, mais uma vez, fomos impelidos a acreditar, à semelhança do próprio desenvolvimento tecnológico, que os dispositivos legais estão, sempre, em constante evolução.  Nesse sentido, os benefícios da telemática na administração da justiça acabaram por  esconder a complexidade do assunto, inviabilizando, portanto, a devida reflexão.

Até porque, é bem verdade que os problemas pareçam de menor importância diante de situações de evidente simplicidade (ex: audiências relativamente rápidas com poucos indivíduos a serem ouvidos). Contudo, em face dos novos paradigmas, e de sua necessária contextualização ao cenário que permeia o Judiciário brasileiro, a matéria não se mostra assim tão simples. 

Não há como negar que vivemos a era das grandes operações. As ações penais, ao longo de todo país, hipertrofiam-se em semelhança ao exemplo oriundo de Curitiba. Todavia, os aparatos do sistema de justiça não contam com crescimento correspondente de infraestrutura. Somam-se os réus, multiplicam-se as testemunhas, enquanto o número de serventuários, juízes, desembargadores e ministros não acompanha a mesma proporção.  

Ora, pensemos no próprio caso da operação "lava jato". Nestes três ano foram realizadas 57 acusações criminais envolvendo 260 pessoas. Quantas horas são necessárias para que se tenha conhecimento de tudo aquilo que foi dito nas mais diversas audiências gravadas? 

Este é o pensamento que motiva processualistas como Aury Lopes Jr. a defenderem a degravação da prova produzida em audiências. Para o professor gaúcho, “se uma audiência é gravada (áudio e vídeo), isso não pode excluir a necessária transcrição. Os recursos não se excluem, senão que se complementam. Entregar, ao final da audiência, um CD é um grave erro, que causará grande prejuízo para todos.”2  

É inegável que a transcrição do conteúdo da audiência – que, por óbvio, não exclui a gravação audiovisual – além de facilitar a indicação dos trechos mais importantes nas peças processuais, inclusive com citações entre aspas que podem ser facilmente referenciadas, também permite maior facilidade na assimilação de todo o conteúdo processual  por quem posteriormente venha a trabalhar com o caso, especialmente em se tratando do estafado setor público. 

Há precedente nesse sentido. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já reconheceu o aumento exponencial de trabalho que a necessidade de se assistir gravações de audiências provoca. Em seu voto, o desembargador Aymoré de Mello explica que “não é difícil imaginar, não só para o defensor público, mas também para o juiz, para o membro do Ministério Público e para o advogado constituído, a multiplicação – de tempo real de trabalho individual e/ou de recursos humanos necessários – na hipótese de processos criminais complexos, com diversos réus presos, inúmeros depoimentos colhidos em audiência e vários outros deprezados, com diligências deferidas na fase do art. 402 do C.P.P."

Por outro lado, é justamente na celeridade processual que se funda o argumento utilizado para se negar a transcrição das audiências arquivadas em dispositivos de mídia. Segundo a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, “a conversão do julgamento de apelação em diligência para que a primeira instância providencie a degravação de conteúdo registrado em meio audiovisual contraria frontalmente o art. 405, § 2º, do Código de Processo Penal, assim como o princípio da razoável duração do processo.”4  

Dessa maneira, questiona-se: como o princípio da razoável duração do processo pode fundamentar a desnecessidade de transcrição da captação audiovisual de audiências, quando esta medida, se bem utilizada, pouparia o tempo de todos os atores processuais?

É fato que a gravação reduz a duração do tempo das audiências e permite que as partes tenham acesso imediato à prova produzida a partir da entrega da mídia digital. No entanto, essa aparente economia acaba sendo facilmente superada pelo posterior tempo gasto pela defesa, acusação e julgadores durante a apreciação dos arquivos produzidos, especialmente,  em casos de grande proporção.  

De acordo com o CNJ, atualmente, há mais de 8 milhões de processos em trâmite nas esferas da justiça criminal brasileira. O volume de serviço supera os limites humanos. Diante disso, parece bastante ingênuo esperar que os membros do Judiciário dispensem horas e mais horas reproduzindo integralmente os arquivos digitais que contenham as provas colhidas em juízo. 

Estima-se que em uma mesma unidade temporal, uma pessoa consiga ler, em média,  o dobro da quantidade das palavras que fala.  Deste modo, se considerarmos uma audiência com duração de 1 hora e diálogo ininterrupto do começo ao fim – o que é impossível, na prática – seria necessário menos de 30 minutos para tomar conhecimento de tudo o que foi registrado.  

Logo, ao que parece, o admirável mundo novo do direito caiu em contradição. Se antes as audiências eram transcritas pelo Poder Judiciário, no momento de sua realização, ocupando enorme espaço nas pautas, hoje acabam tomando tempo exponencialmente maior nos gabinetes e escritórios.

Acreditou-se que o trabalho da transcrição seria substituído pela gravação, mas o que aconteceu, em verdade, foi que, nos bastidores, passamos a ser obrigados a transcrever. Na prática, dobrou-se o trabalho. 

E este, ainda, não é o principal aspecto da questão, visto que a celeridade e a eficiência do Judiciário, embora importantes, não são argumentos tão arrebatadores quanto, por exemplo, o direito à ampla defesa. A possibilidade de se reviver o momento da audiência pela visualização de seu registro, incontestavelmente, aperfeiçoa a busca pela verdade processual e traz à defesa a garantia de um julgamento mais justo. 

No entanto, para que se alcance tal resultado, os vídeos precisam ser assistidos! O que, pela grande demanda tempo, na prática, quase não acontece. Assim, a constatação, embora pareça óbvia, confronta-nos com a dura realidade: é irrazoável, além de contraproducente, exigir ou esperar que juízes, desembargadores, ministros ou seus assessores dispensem dias inteiros, quando não semanas ou meses, assistindo a gravação de audiências de um único caso. 

Assim, o que antes parecia uma ferramenta de extrema importância para a construção da verdade processual, transformou-se em verdadeiro calvário. Isso porque são as partes que acabam tendo que transcrever o conteúdo das gravações em razão da certeza de que os vídeos não serão reproduzidos pelos julgadores. E esta  transcrição, obviamente, será parcial, pois se fundará em critérios seletivos, que jamais serão contrastados pela verificação integral dos extensos arquivos de mídia. 

Ademais, apesar de as partes terem, pela necessidade, assumido a incumbência da transcrição, cabe ao Poder Judiciário a garantia da integridade da prova. Isso porque, como bem se sabe, o exercício da jurisdição é monopólio estatal. E o art. 5º inc. XXXV da Constituição Federal garante o acesso à justiça. Sendo assim, “o Judiciário não pode delegar a terceiros o espelhamento e a manipulação processual das provas orais judicializadas, porque tal desvio orgânico de função poderá resultar, inclusive, na violação dos princípios da independência judicial e da imparcialidade dos julgamentos”7. 

Conforme se nota, as questões colocadas realmente provocam o debate. Se antes, apenas com a transcrição perdíamos as sutilezas de cada caso, hoje corremos o risco de perder muito mais. A consulta à imensidão de conteúdo digital que se forma nos processos mais volumosos dificilmente acontecerá. Ao fim e ao cabo, a dialética processual acaba por promover descontextualizações e a veracidade das  citações “ipsis literis”  sequer é verificada.  

E é por isso que, em casos de maior complexidade, faz-se necessário a transcrição das mídias gravadas em audiência. Não havendo que se negar tal direito a quem lhe requeira: seja pela busca por economia processual, já que demandará menor carga de trabalho futuro; seja para ampliar o direito à defesa, uma vez que a transcrição liberta a prova do confinamento imposto pelo arquivo digital, que ninguém, em que pese devesse, irá assistir.


Referências bibliográficas:

LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 600.

TJRS. HC n. 70.045.486.297. 6ª Câmara criminal. Rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello. J. 3 nov. 2011.

STJ. HC 172840 / SP. Quinta Turma. Rel. Min. Gilson Dip. DJe. 27 mai. 2011. No mesmo sentido: HC 153423-SP, HC 172840-SP, AgRg no RMS 34867/MT.

CNJ. Justiça em Números. Brasília: CNJ, 2016. p. 75. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf Acesso em: 7 jul. 2017

Disponível em: https://www.quora.com/Speeches-For-the-average-person-speaking-at-a-normal-pace-what-is-the-typical-number-of-words-they-can-say-in-one-minute Acesso em: 7 jul. 2017

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