Direito Comparado

Como se produz um jurista: final (parte 58)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

19 de julho de 2017, 16h36

Spacca
1. O fim (ou o início) de uma longa jornada
Em uma sequência não contínua de 57 semanas, apresentou-se ao público o que pode ser reconhecido como o mais amplo estudo feito em língua portuguesa sobre a educação jurídica no Direito Comparado. Com base em uma estrutura relativamente uniforme, expôs-se o modo como se produz um jurista em alguns países do mundo. Essa estrutura, na maior parte das vezes, iniciou-se pela contextualização histórica do país, suas tradições culturais e jurídicas, e teve seguimento com o enfoque dos seguintes tópicos: a) estrutura do ensino superior, modos de avaliação, disciplinas obrigatórias e optativas (com a informação sobre quais seriam em algumas das principais faculdades de Direito); b) número e qualidade dos cursos jurídicos, sua filiação às tradições de common law e de civil law, bem como seu eventual hibridismo, posição das unidades nos rankings internacionais; c) a carreira docente, sua estrutura, a remuneração dos professores (com termos de comparação face à realidade brasileira e com a oferta da equivalência em dólares e em reais); d) o perfil dos estudantes; e) as principais carreiras jurídicas, suas estruturas, remunerações e suas posições na ordem jurídica interna.

O estudo compreendeu todos os continentes: Europa (Alemanha, França, Itália, Portugal, Rússia e Inglaterra e País de Gales), América (Estados Unidos, Chile e Colômbia), África (Angola e África do Sul), Oceania (Nova Zelândia) e Ásia (China e Japão). Ao todo, examinou-se a realidade de 14 Estados, sendo 9 deles pertencentes ao modelo de civil law, três integrantes do modelo de civil law (Inglaterra e País de Gales, Estados Unidos e Nova Zelândia), além de dois que apresentam características híbridas: África do Sul, com preponderância para o comon law, e Japão, originalmente vinculado de modo estrito ao modelo de civil law, mas que passou a adotar parcialmente elementos de common law.

Para além da diferenciação geográfica, elegeram-se algumas variáveis para tornar o estudo mais representativo e menos vulnerável aos efeitos do reducionismo: a) países originalmente capitalistas e países oriundos do antigo sistema socialista ou que ainda se declaram como tais (Angola, China e Rússia); b) países capitalistas centrais e países capitalistas periféricos (Chile, Colômbia, Angola e África do Sul), além do caso particular da Rússia; c) países ocidentais e países orientais (China, Japão e parcialmente a Rússia); d) países geograficamente pequenos (Portugal, Inglaterra e País de Gales, Itália e Chile), médios (França, Alemanha, Japão, África do Sul, Angola, Colômbia e Nova Zelândia) e continentais (Rússia, China e Estados Unidos); e) países com intervenções do Direito na vida política classificáveis em forte (Alemanha, Colômbia, África do Sul), média (Itália, Estados Unidos e Portugal) ou fraca (Rússia, Angola, Inglaterra e País de Gales, Chile, Japão, China e França).

Todas essas variáveis poderiam ser combinadas para se chegar a conclusões sobre a correlação entre elas. Na versão consolidada dessas colunas, cujo preparo já se iniciou, tentar-se-á apresentar conclusões levando-se em conta essa combinação de variáveis. De modo superficial, porém, já se percebe que é interessante notar que não é possível construir teorizações a respeito. Só isso já é um resultado muito interessante, na medida em que servirá para combater certos mitos fecundados no Brasil.

Interessa, porém, apresentar alguns desses resultados, considerando-se tipologias sobre ensino, estrutura acadêmica, representação social do professor, metodologias de ensino e aprendizagem e centralidade do controle das diretrizes curriculares.

2. Alguns resultados interessantes (ou “assim é, se lhe parece”)
Luigi Pirandello (1867-1936), o grande renovador da dramaturgia no século XX, é autor de uma peça muito famosa, intitulada Assim é, se lhe parece (Così è, se vi pare), de 1917. O coração da peça é a ambivalência entre a vida externa de uma família, que é bastante exótica para os padrões provincianos do interior da Sicília do início do século XX, e a percepção da realidade por seus vizinhos. Com o tempo, a família tenta se adaptar a essas percepções e muda seus hábitos para parecer o que não é.

Em certa medida, alguns aspectos do debate sobre educação jurídica no Brasil estão cercados por essas aparências e pelo uso que delas se faz. Criam-se lendas, mistificações ou se invocam exemplos estrangeiros (o velho mal do bartolismo, que há séculos contamina nossa vida jurídica) de modo desastrado para fundamentar guinadas na estrutura da formação jurídica no país. A pesquisa revelou o quão desastrosas podem ser essas mudanças sem fundamento empírico ou mesmo teórico, ao exemplo do que ocorreu no Japão.

Uma das mais importantes contribuições da série de colunas sobre a educação jurídica no Direito Comparado foi a de expor as contradições entre o discurso reformista e a realidade estrangeira. Alguns exemplos confirmam o que ora se afirma.

2.1 Estrutura curricular aberta
O estudo demonstrou que não há correlação entre matrizes curriculares abertas e qualidade do ensino jurídico. Há países com preponderância de disciplinas obrigatórias (como Portugal, França e Itália) cujos modelos são considerados exitosos. Mesmo na Inglaterra e País de Gales, há um núcleo comum de disciplinas obrigatórias relativamente elevado. Os Estados Unidos são o grande exemplo de grades abertas, embora lá também haja um núcleo de disciplinas comuns, formado no final do século XIX e praticamente inalterado desde então. Dá-se, porém, como revelado pela coluna, uma diferença essencial dos Estados Unidos com a quase totalidade dos países pesquisados: o curso de Direito norte-americano não é de graduação, e sim de pós-graduação. Só essa diferença seria suficiente para demonstrar a falácia do argumento de que maior liberdade de escolha implica qualidade superior da formação jurídica.

2.2. Caráter residual das disciplinas não dogmáticas
A totalidade dos países pesquisados, mesmo aqueles que adotam matrizes mais abertas, têm disciplinas não dogmáticas como parte residual do currículo. Na Alemanha, um país que adota um eixo comum dogmático (Direito Civil, Direito do Estado e Direito Penal), estudar disciplinas como Filosofia ou Sociologia é facultativo e é muito pequeno o número de matriculados. A formação do aluno é preponderantemente dogmática e voltada para a preparação para os Exames de Estado.

Se isso é bom ou ruim, trata-se de um ponto discutível. Este colunista considera muito importante a formação metadogmática, o que é bem perceptível pelo leitor das 57 colunas anteriores, nas quais elementos metajurídicos impregnaram todo o texto. Mas, por um dever de honestidade intelectual, o colunista reconhece que os dados coletados não permitem associar qualidade do ensino ao caráter central ou residual dessa formação metadogmática. A pesquisa demonstrou que a preocupação das faculdades de Direito é dotar os alunos de uma formação jurídica básica.

2.3. Barreiras de controle de qualidade na saída
Nos países europeus continentais, as regras de universalização do ensino superior criaram regras de barreira à saída, e não à entrada. Os vestibulares ou índices de aproveitamento do ensino pré-universitário definem o ingresso no ensino superior ou a colocação do aluno em universidades melhores ou não tão boas. Quem deseja ingressar na universidade, porém, dificilmente terá uma barreira de entrada tão rígida. O controle da qualidade dá-se preponderantemente à saída.

Os Exames de Estado (modelo alemão), os Exames de Ordem (modelo japonês) e os controles ao longo do curso (modelo português nas universidades públicas) são eficientes (e algumas vezes draconianos) meios de seleção dos egressos. No caso alemão, o fracasso por duas vezes nos Exames de Estado (na maioria dos Estados) elimina as oportunidades de seguir carreira jurídica. A pontuação nesses exames é decisiva para a colocação do egresso em carreiras de maior ou de menor prestígio profissional.

2.4. Metodologias ativas e aulas magistrais
Alemanha, França, Itália, Inglaterra e País de Gales, Angola, Japão (nas faculdades que não adotaram o modelo de common law), Rússia, China e Colômbia são exemplos da preponderância até hoje do modelo de aulas magistrais.

No caso dos países europeus continentais, a estrutura da docência centrada no professor catedrático reforça esse modelo. O catedrático dá aulas magistrais e os assistentes (cujos nomes são variáveis conforme o sistema) dividem-se com grupos menores de alunos para as aulas de “repetição” ou de “explicação” (os “repetidores”, como se diz em Portugal) ou para estudos de caso.

O método socrático combinado com o estudo de caso é uma das técnicas mais antigas de ensino jurídico, surgido nos Estados Unidos no final do século XIX, graças a Christopher Columbus Langdell. É um sistema que exige o conhecimento pessoal dos alunos por parte do professor, que dispõe de um mapa da sala, com fotografia de cada discente e que deles exige uma carga de leitura semanal pesadíssima. Seu uso tem sido crescentemente contestado desde a década de 1960 por movimentos de teoria crítica do Direito norte-americano, por considerarem-no muitas vezes agressivo com o aluno.

Na Alemanha, combinam-se uma aula magistral fortemente baseada no estudo do Código Civil (ou do Código Penal), com estudos em grupos menores, com os assistentes, voltados para a discussão de casos práticos, os quais serão resolvidos pelos estudantes como forma de preparação para os futuros Exames de Estado.

2.5. Número de professores e de alunos
Não há correlação entre qualidade de ensino e número elevado de professores e de estudantes.

Na verdade, os países que possuem carreiras docentes mais fortes, bem remuneradas e com representação social mais alta (Portugal e Alemanha, por exemplo) têm características comuns em relação a esse tópico: número pequeno de catedráticos (com uma hierarquização forte das carreiras, que progridem com enorme lentidão) e número grande de alunos. É comum que as avaliações de algumas disciplinas ocorram em auditórios e que as aulas magistrais façam uso de anfiteatros e telões para auditórios anexos, a fim de comportar todos os alunos.

É óbvio que não se está a recomendar a importação desse modelo para o Brasil, pois ele só justificaria o aumento exponencial da exploração capitalista da mão de obra docente em instituições privadas. No caso europeu, essa combinação é possível porque aliada a dois princípios: (a) “Muitos são chamados, poucos são escolhidos”: o amplo acesso à universidade pressupõe um número grande de alunos, mas o desempenho individual é avaliado com rigor, e a aprovação não é automática. O comparecimento em aula é mais baixo. Mas quem não estuda terminará por ser reprovado ou ser retido pelas frestas dos Exames de Estado ou de Ordem, ao final do processo de formação; b) “Menos é mais”: o catedrático é o eixo do sistema. Ocorre que são poucos os professores catedráticos, o que permite que sejam muito bem remunerados (ao menos para os padrões brasileiros).

2.6. Representação social e dedicação exclusiva
Nos países capitalistas centrais pesquisados, o catedrático possui variáveis níveis de prestígio social. Portugal e Alemanha, por exemplo, têm no catedrático uma das posições de maior dignidade na burocracia e na sociedade. Esse prestígio vem acompanhado de remunerações elevadas. Em França, há um nivelamento de remuneração entre as carreiras públicas, o que impede distorções como as existentes no Brasil entre “carreiras estratégicas” e “carreiras não estratégicas”.

A dedicação exclusiva é uma decorrência jurídica da organização do sistema burocrático europeu, mais antigo e que precisa comportar regras de isonomia mais duras do que as existentes em países mais jovens. Só é possível ter um único cargo público em vários países europeus, em sendo assim a dedicação exclusiva se torna menos uma opção e mais uma decorrência da estrutura do cargo. Entretanto, há exceções em países como Portugal, Chile, África do Sul, Rússia, China e Inglaterra e País de Gales, nos quais existem professores catedráticos não exclusivos. Nos Estados Unidos e na Inglaterra e País de Gales, as figuras de maior prestígio são advogados e juízes. O ingresso na docência é, em muitos casos, resultante da uma migração parcial ou total do grande advogado ou do juiz de tribunais superiores.

2.7. Importância das carreiras jurídicas
Na Europa, à exceção de Portugal, a terra dos “catedráticos mandarins” e parcialmente da Alemanha e Itália, há relativa autonomia da política em relação ao Direito, o que se reflete na importância das carreiras jurídicas. Nos países pesquisados, encontraram-se exemplos extremos, como Japão, Chile, Rússia e China, de segmentação e alheamento das carreiras jurídicas dos núcleos de poder. Na Rússia e na China, esse quadro tem mudado lentamente com a abertura dos sistemas político e econômico desde o final dos anos 1980.

Em nenhum país pesquisado, todavia, encontrou-se algo semelhante ao grau de importância das carreiras jurídicas nas definições políticas fundamentais do Estado, como se dá no Brasil desde fins dos anos 1990.

***

Estes são apenas alguns dos resultados alcançados após tanto tempo dedicado ao tema da formação dos juristas no mundo. Com falhas e imprecisões, as quais se deseja corrigir quando o livro que consolidará este trabalho for publicado, este é o resultado que se oferece à comunidade jurídica de língua portuguesa.

Agradece-se, com enorme ênfase, a todos os que ajudaram à composição desta pesquisa: Jan Peter Schmidt, Tilman Quarch, Alexandre Veronese, Fernando Fontainha, Luís Felipe Rasmuss de Almeida, Dario Moura Vicente, Ibsen Noronha, Rui de Figueiredo Marcos, Masato Ninomiya, Takashi Kojiro, Rute Teixeira Pedro, Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, Lino Diamvutu, Riccardo Cardilli, Luciana Rodrigues, Denis Halis, Augusto Jaegger Jr, Karina Nunes Fritz e Stefan Grundmann. Todos eles, oriundos do Brasil e de “várias partes do mundo”, são também responsáveis direta ou indiretamente pelo êxito deste projeto. Finalmente, agradeço ao advogado Bruno de Ávila Borgarelli, que tem sido incansável na compilação e na complementação destes estudos.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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