Garantias do Consumo

Consumo digital e hipervulnerabilidade do consumidor

Autores

  • Amanda Flávio de Oliveira

    é sócia-fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre e especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • Ana Cândida Muniz Cipriano

    é advogada especialista em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo associada ao Instituto Brasilcon (Brasília) e à International Law Association (Londres) e consultora da Divisão de Concorrência e Proteção ao Consumidor da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).

19 de julho de 2017, 8h00

Nos dias 3 e 4 de julho, ocorreu em Genebra (Suíça) a Segunda Reunião do Grupo de Experts em Direito do Consumidor (IGE). Promovido pela UNCTAD (Conferência das Nações Unidas em Comércio e Desenvolvimento), o encontro reuniu representantes de centenas de países, entre governo, iniciativa privada, organizações da sociedade civil e acadêmicos, e teve como pauta os principais temas de preocupação na matéria em nível global. Entre os assuntos debatidos, destacaram-se a preocupação dos Estados com o consumo digital e a chamada “hipervulnerabilidade” de algumas categorias de consumidores.

No campo do consumo digital, as discussões transitaram pelo comércio eletrônico tradicional, pela economia de plataforma digital (ou economia compartilhada) e pela internet das coisas, evidenciando o fato de que o futuro do Direito do Consumidor necessariamente envolverá o uso da web. Nesse sentido, foi mencionada a necessidade de inclusão digital, que importa em tornar a internet acessível não apenas às classes menos favorecidas dos países, mas, igualmente, a grupos de consumidores que apresentam maior dificuldade pessoal em sua utilização, como é o caso dos idosos. Destacou-se, assim, a necessidade de programas oficiais que habilitem os idosos ao pleno manuseio dos aparelhos e à navegação segura. A representante da Consumers International, no ponto, também evidenciou a imperiosidade de se assegurar o pleno acesso aos meios de pagamento admissíveis na web, como forma necessária de permitir inclusão e acesso.

Em inúmeras manifestações, foi sublinhada a essencialidade da proteção dos dados pessoais no contexto de uma economia digital, especialmente considerando a expectativa de que, nos próximos três anos, espera-se atingir o número de aproximadamente 20 milhões de objetos conectados entre si. Assim, além de uma regulação adequada, impõe-se o desafio de se educar para a conscientização e informação dos consumidores sobre o nível de riscos envolvidos no consumo intermediado pela internet, no que diz respeito à disponibilização dos próprios dados.

No que concerne à economia de plataformas digitais ou economia compartilhada, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) reafirmou estar-se diante de um modelo que subverte as noções tradicionais de consumidor e fornecedor, ocasionando um cenário em que as técnicas tradicionais de proteção não se mostram mais adequadas. O mesmo ponto foi referido pela representante da França, que indicou a necessidade de se empreender uma regulação mais pertinente no que diz respeito aos padrões de responsabilidade. A representante dos Estados Unidos, por sua vez, expressou interesse pelo poder da avaliação on-line utilizada pelas plataformas e que não deve ser negligenciada no tratamento do tema.

Do conjunto do debate, destacaram-se os valores confiança, acesso, transparência, lealdade e privacidade como norteadores de uma política de proteção do consumidor na economia digital. A tudo isso, a representante de Hong Kong incluiu a necessidade, especialmente no caso das plataformas, de se fomentar a competição no mercado em que atuam, de forma a minimizar potenciais danos aos consumidores. Por sua vez, o representante da Itália mencionou a convicção de que uma proteção adequada do consumidor nesse cenário pode ser instrumento hábil a fomentar a competição saudável entre as novas empresas.

Em quase todas as manifestações, referiu-se à imperiosidade de que o tratamento do tema se dê em nível de cooperação internacional, dadas as características do consumo via web, que necessariamente se apresenta com potencial de abrangência global. Nas palavras da representante dos EUA, “We aren’t alone on this” (“Nós não estamos sozinhos nisso”). Ao final do encontro, em seu documento formal de encerramento, os países presentes concluíram pela importância do consumo digital para aprimorar o estado de bem-estar dos consumidores em todo o mundo, mas que deverá ter seus riscos potenciais minimizados. Os Estados se dispuseram a empreender juntos esforços para implementar as melhores práticas nesse campo, por meio da cooperação internacional, incluindo a possível colaboração informal entre agências para permitir a confiança do consumidor no mercado digital.

O reconhecimento da hipervulnerabilidade de algumas categorias de consumidores constituiu o segundo tema de destaque do encontro. No painel, moderado pela consultora da Divisão de Concorrência e Proteção ao Consumidor da UNCTAD e associada do Brasilcon, a brasileira Ana Cândida Muniz Cipriano, fez-se referência ao fato de que essa categoria especial de consumidores, ensejadora de um cuidado mais específico, foi consagrada nas diretrizes revistas para a proteção ao consumidor das Nações Unidas, publicadas no ano de 2015. Em conformidade com o secretariado da UNCTAD, podem ser identificados como consumidores hipervulneráveis grupos como as crianças, os idosos, os turistas, os migrantes e os consumidores rurais. Enfatizou-se, também, que, de acordo com pesquisas recentes, a hipervulnerabilidade do consumidor deve ser considerada à luz de várias dimensões, tais como situação sócio-demográfica, comportamental, pessoal (situação) e de mercado. Essas circunstâncias podem ser reforçadas devido a diversos fatores, como analfabetismo, conhecimento técnico, idade e status econômico, e podem mesmo ocorrer em períodos pontuais da vida de qualquer pessoa.

Devido ao grande interesse da maioria dos delegados pelo tema, que ensejou uma profícua discussão, envolvendo representantes dos Estados-membros e organismos internacionais, o secretariado da UNCTAD sugeriu, e foi aprovado pelos presentes, a criação de um grupo de trabalho específico para a matéria, no âmbito da ONU, com vistas a destacar as melhores práticas na questão, facilitar o intercâmbio de informações e consultas, bem como para dar continuidade às discussões iniciadas por ocasião do encontro.

Em suas conclusões, ao final de dois dias de intensos debates e contribuições, o Grupo Intergovernamental de Experts em Proteção ao Consumidor solicitou ao secretariado que forneça recomendações práticas aos Estados-membros sobre a implementação das diretrizes da ONU de proteção do consumidor, com base nas informações compartilhadas durante a reunião, também encorajando os Estados-membros interessados a se voluntariarem para uma revisão pelos pares sobre suas próprias lei e política de proteção ao consumidor. Foram também definidos como os temas prioritários para a agenda da terceira reunião do grupo, prevista para o ano de 2018, as temáticas da resolução de disputas e reparação e da segurança do consumidor.

O encontro, além de permitir o amplo debate sobre temas de consumo em um mercado crescentemente global, teve a relevantíssima função de confirmar e consolidar a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), mais especificamente a sua Divisão de Concorrência e Proteção ao Consumidor, como organismo internacional com competência para tratar o tema da proteção e defesa do consumidor em âmbito internacional, sendo tal mandato reconhecido tanto por países em desenvolvimento como por países desenvolvidos.

Autores

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    é advogada, professora decana de Direito Econômico da UFMG e presidente do Brasilcon – Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor.

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    é advogada, especialista em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Professora no Curso de Direito da Faculdade Iesplan (Brasília), associada ao Instituto Brasilcon (Brasília) e à International Law Association (Londres).

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