Opinião

Relações entre corrupção e teorias que orientam gestão das companhias

Autor

  • Ana Frazão

    é advogada professora associada de Direito Civil e Comercial na UnB ex-conselheira do Cade e ex-diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

13 de julho de 2017, 6h35

Em recente entrevista, Eugene Soltes[1], Professor da Business School de Harvard, adiantou alguns dos pontos principais do seu novo livro Why they do it: inside the mind of the white-collar criminal[2]. Depois de oito anos de pesquisas sobre os motivos que levam à prática dos ilícitos de colarinho branco, incluindo entrevistas com executivos processados ou presos por ilícitos dessa espécie, o professor concluiu que os crimes de colarinho branco não decorrem de um cálculo de custo-benefício, ao contrário do que se poderia intuir a partir da análise econômica do direito. Pelo contrário, muitos dos executivos entrevistados não pensaram cuidadosamente sobre as consequências dos seus atos até serem descobertos. Mais do que isso, os executivos entrevistados normalmente ultrapassaram a linha do que separa o certo do errado porque entendiam que aquilo ajudava as suas empresas a aumentarem os lucros.

As conclusões do professor mostram que a cultura corporativa de obtenção de lucros a qualquer preço, tal como ensinada nas principais escolas de negócio do mundo e propagada nos ambientes corporativos, pode ter um importante papel para justificar crimes de colarinho branco e atos de corrupção. É este insight o ponto de partida do presente artigo que, a partir das preocupações mencionadas, buscará mostrar como algumas teorias econômicas dominantes, tais como o shareholder value e o short-termism, podem estar intrinsecamente associadas à prática de comportamentos ilícitos, ainda que obviamente não tenham a referida intenção.

A discussão sobre o parâmetro valorativo que deve orientar a gestão das companhias – o chamado interesse social – não é recente e foi objeto, ainda na década de 1930, do famoso debate entre Berle e Dodd[3]. Ocorre que, na atualidade, segundo Lynn Stout[4], a visão de Dodd, segundo a qual a gestão de companhias deve servir não apenas aos acionistas (shareholders) mas também a outros interessados (stakeholders), é vista na melhor das hipóteses como ingênua, quando não como um convite para que administradores usem as companhias para servir seus próprios bolsos.

Com efeito, a partir da década de 1970, a influência crescente da Escola de Chicago foi criando campo propício para o acolhimento da visão de Milton Friedman[5] de que a única responsabilidade social das companhias é a de aumentar seus lucros. O sucesso foi tal que Hansmann e Krakmann, no famoso artigo The end of history for Corporate Law[6], anunciaram o triunfo irrestrito da shareholder value theory. Uma das ironias, como afirma Stout[7], foi que, meses após o artigo ter sido publicado, houve o escândalo contábil da Enron.

Uma coisa é certa: partindo das premissas defendidas pela shareholder value theory, o interesse social de qualquer sociedade empresária deve ser apenas a maximização do valor das suas ações. Em sentido convergente, a short-termism theory potencializa tal busca, a partir da ideia de que os resultados financeiros de uma companhia devem ser planejados e obtidos a curto prazo.

Existe, pois, uma relação quase umbilical entre as teorias do shareholder value e do short-termism, assim como os efeitos de ambas apenas podem ser suficientemente compreendidos no contexto atual da financeirização da economia, diante da qual as companhias são vistas essencialmente como conjuntos de ativos financeiros. Na verdade, a própria financeirização da economia pode ser vista como consequência da emergência de novas formas de controle e gerenciamento com base no shareholder value, o que implica uma reconceitualização da natureza da própria empresa, vista crescentemente como um pacote de ativos (bundle of assets), sujeito ao aumento ou desmantelamento por parte dos executivos de acordo com o mercado[8].

Obviamente que os administradores ou top managers das companhias não agem de acordo com tais pressupostos apenas por acreditarem nas teorias ou no fato de que estão fazendo o melhor para os seus acionistas. Eles agem assim também – ou principalmente – em razão dos incentivos financeiros próprios, já que uma das consequências da aplicação prática do arcabouço teórico acima descrito é que a remuneração dos administradores passa a ser feita progressivamente por meio de parcelas variáveis em razão da sua performance, a ser medida pela valorização das ações. Uma das consequências é que, conforme o caso, o interesse dos administradores pode predominar sobre o interesse dos próprios acionistas na gestão empresarial.

Como bem sintetiza reportagem do Financial Times de 1º/4/2015, muitos dos problemas atuais da gestão empresarial decorrem da forma de pagamento dos administradores. Como a maior parte da remuneração é vinculada à performance, que, por sua vez, está atrelada à valorização das ações, o resultado é a obsessão pelos ganhos trimestrais em detrimento dos ganhos de longo prazo.

Uma das consequências preocupantes dos incentivos econômicos mencionados, segundo Joseph Stiglitz[9], é a excessiva assunção de riscos (excessive risk-taking), já que a shareholder revolution faz com que os CEOs busquem retornos a curto prazo de qualquer jeito, mesmo às custas de várias consequências nefastas, tais como (i) redução de investimentos em inovações saudáveis e a prosperidade a longo prazo; (ii) tratamento de empregados como responsabilidades de curto prazo e não como ativos de longo prazo; (iii) crescente desproporção entre a remuneração dos executivos, que chegou a patamares que não podem ser justificados por sua produtividade; (iv) crescente adoção do que se chama de creative accounting, para aumentar valor das ações e consequentemente inflar a remuneração dos CEOs; (v) grande aumento dos percentuais do faturamento das companhias destinados à recompra de ações e distribuição de dividendos, já que o fato de parte da remuneração dos CEOs ser em stocks options cria um grande incentivo para usar o dinheiro da companhia para comprar de volta suas ações, fazendo o preço subir.

Observa-se, a partir da breve descrição, que o cenário é preocupante sob diversos aspectos, especialmente no que diz respeito à inovação e à falta de investimento. Como também já apontou Michael Hudson[10], pesquisadores de Stanford concluíram que a pressão pelos ganhos a curto prazo vem reduzindo os gastos com pesquisa e desenvolvimento — especialmente nas companhias abertas — e ainda reduzindo o crescimento da economia americana ano a ano.

Portanto, o resultado prático da conjugação das teorias do shareholder value e do short-termism é que a busca de lucro tem sido alcançada às custas da inovação, da força de trabalho qualificada ou dos gastos essenciais de capital para sustentar crescimento de longo prazo.

Consequentemente, mesmo empresas não financeiras passam a ser orientadas para o lucro de curto prazo, ainda que proveniente de arriscados investimentos financeiros, tal como se observou no Brasil a partir dos famosos casos da Sadia e da Aracruz. Uma consequência do processo é a transformação de sociedades não financeiras em financeiras, com o consequente desestímulo para investimento em capacidade produtiva de longo prazo baseada em tecnologia, e a dependência cada vez maior das atividades financeiras.

Entretanto, além desses efeitos, que poderiam ser considerados até como naturais e esperados diante dos pressupostos adotados pelas teorias analisadas, as teorias do shareholder value e do short-termism podem também estar levando a outros tipos de efeitos reflexos e igualmente preocupantes: a criação de uma cultura corporativa que, a pretexto de buscar lucros a qualquer preço, acabe sendo propícia ou excessivamente condescendente à prática de crimes e atos de corrupção.

Como Stout[11] afirma, a shareholder value theory tem como consequência reduzir a gestão ao seu mínimo denominador moral, o que permite que a companhia seja vista como uma “criatura psicopata”, na medida em que não pode nem reconhecer nem agir de acordo com razões morais. É inequívoco que tal aspecto, ainda mais quando associado à crescente falta de discussões éticas nas escolas de negócios e nos ambientes corporativos, cria um contexto favorável para a prática de toda a sorte de deslizes morais e jurídicos.

Já se viu, com base no diagnóstico de Stiglitz[12], que a cultura corporativa atual possibilita que o setor financeiro deixe de servir à economia como um todo para servir a si mesmo, criando um ambiente econômico em que as corporações, financeiras ou não, deixaram de servir a outros interessados (stakeholders) e mesmo aos acionistas (stockholders) para servir apenas aos interesses da alta administração (top managers), o que tem como resultado prático comportamentos orientados para o curso prazo, subinvestimento em empregos e, no futuro, pouco crescimento, maiores preços e ainda maior desigualdade.

Entretanto, está na hora de avançar em outro importante desdobramento de tais teorias, para o fim de analisar em que medida a cultura corporativa delas decorrente também não tem um papel crucial no fomento ou estímulo à prática de ilícitos, mesmo quando severas penalidades são atribuídas pela legislação.

Sobre isso, é importante deixar claro que em nenhum momento se afirma que as referidas teorias autorizam expressamente a prática de ilícitos. O que se aponta é que, ao terem como única preocupação o lucro de curto prazo, sem maiores reflexões sobre restrições ou barreiras éticas, acabam criando um contexto cultural propício para a prática de ilicitudes.

Voltando à entrevista que motivou o presente artigo, é forçoso convir em que há algo de muito errado quando executivos não conseguem entender a dimensão de ilicitude de suas condutas, quando não conseguem calcular os riscos pessoais dos seus ilícitos ou quando ainda acham que, ao praticar ilícitos, estão ajudando as suas empresas.

Se não se pode atribuir às teorias mencionadas a responsabilidade direta por esse triste cenário, também não se pode afastar o seu papel na formação de uma cultura corporativa que, ao extirpar dos objetivos da gestão qualquer dimensão coletiva ou não relacionada à busca dos lucros, torna difícil a implementação de parâmetros de gestão baseados na ética e no cumprimento do direito.


[1] ZALIS, Pieter. Como nasce um corruptor. Revista Veja. 5 jul. 2017.
[2] SOLTES, Eugene. Why they do it: inside the mind of the white-collar criminal. Nova Iorque: Public affairs, 2016.
[3] O referido debate diz respeito à controvérsia estabelecida entre Adolf A. Berle e E. Merrick Dodd nos anos 1930. Em 1931, Berle escreveu importante artigo no qual sustentou que “todos os poderes atribuídos a uma corporação ou à administração de uma corporação, sejam derivados de estatutos, de acordos ou de ambos, não necessariamente e sempre exercitáveis apenas em benefício de todos os acionistas de acordo com seu interesse” (BERLE JR., Adolf A. Corporate powers as powers in trust. Harvard law review. v. 44, n. 7, pp. 1049-1074, maio 1931. p. 1049). Em 1932, de outro lado, Dodd argumentava que o direito deve reconhecer que as corporações não devem servir tão somente à maximização dos lucros dos sócios, mas também deve proteger outros interesses relevantes, a exemplo dos consumidores e do poder público (DODD JR., E. Merrick. For whom are corporate managers trustes? Harvard law review. v. 45, n. 7, pp. 1145-1163, maio 1932). Ver, no mesmo sentido: FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
[4] STOUT, Lyyn. The shareholder value myth: how putting shareholders first harms investors, corporations, and the public. San Francisco: Nerrett-Koehler, 2012.
[5] FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom. 40.ed. Chicago/Londres: University of Chicago Press, 2002. pp. 133-135. Ver também: FRAZÃO, Ana; PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Responsabilidade social empresarial. In: FRAZÃO, Ana. Constituição, Empresa e Mercado. Brasília: Faculdade de Direito – UnB, 2017.
[6] HANSMANN, Henry; KRAAKMAN, Reinier. The end of history for Corporate Law. Georgetown law review. v. 89, n. 2, pp. 439-468, jan. 2001.
[7] STOUT, Op. cit. p. 22.
[8] Ver: KRIPPNER, Gretta. Capitalizing on crisis: the political origins of the rise of finance. Cambridge: Harvard University Press, 2011.
[9] STIGLITZ, Joseph E. Rewriting the rules of the American Economy: na agenda for growth and shared prosperity. Nova Iorque: W. W. Norton, 2015.
[10] HUDSON, Michael. Killing the host: how financial parasites and debt bondage destroy the global economy. Petrolia: Counterpunch, 2015.
[11] STOUT, Op. cit., pp. 101-102.
[12] STIGLITZ, Op. cit.

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