Contas à Vista

Por que a reforma política não deve ser confiada apenas aos políticos

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

11 de julho de 2017, 8h05

Spacca
Você acredita no Brasil? Consideremos três variáveis: território, população e PIB. Pouquíssimos países possuem mais de três milhões de km2 de área (muitas delas plenamente agricultáveis e repleta de riquezas minerais); reúnem população acima de 140 milhões de habitantes e PIB acima de US$ 800 bilhões. Nesse grupo encontram-se apenas Brasil, Rússia, Índia, China e Estados Unidos[1]. Penso que temos inúmeras vantagens comparativas com os nossos companheiros de Brics, seja por buscarmos trilhar rumo a uma democracia consolidada, não termos disputas religiosas, falarmos apenas um idioma em todo o território, sermos uma sociedade rica em diversidade étnica e afastada de problemas com terroristas.

Temos nossos problemas, alguns dos quais revelados aos olhos da população apenas recentemente. Precisamos reorganizar nosso sistema político, que não vem correspondendo aos desafios para o pleno desenvolvimento socioeconômico da população brasileira. Parece-me, contudo, que são poucas as alternativas realmente válidas que vêm sendo colocadas ao debate.

Afinal, quem está pensando o país para os próximos 20 ou 30 anos? A saída pelo aeroporto, rumo aos EUA ou a Portugal, em definitivo, não me parece ser a melhor alternativa nos dias atuais, pois ainda há oxigênio para respirar por aqui e alternativas para melhorar o Brasil. Exatamente por isso, ouso fazer uma proposta para debate.

Nesse âmbito, o problema está na existência de uma abissal separação entre o povo e os políticos-partidários, entre representantes e representados, de tal modo que a expressão "ele não me representa" virou voz corrente. Porém, como sair dessa sinuca de bico? Será através da reforma política em curso no Congresso? As perspectivas são baixas, não sendo necessárias muitas explicações sobre os motivos pelos quais a classe político-partidária está desacreditada em nosso país, em todos os níveis federativos, sendo que o âmbito federal possui maior visibilidade (Congresso Nacional e Presidência da República). São tantos os envolvidos em escândalos sucessivos que a sociedade não dá mais conta de saber quem está sendo processado por qual das inúmeras operações policiais em curso e seus desdobramentos, nem consegue saber ao certo se quem está solto já esteve preso, ou vice-versa. É digna de registro a Sessão da Câmara do dia 30 de junho, em que o único presente — o único dentre 513 — foi o deputado federal Celso Jacob (PMDB-RJ), que se encontra preso em regime semiaberto, e obteve permissão da Vara de Execuções Penais do DF para comparecer ao trabalho[2]. Precisa de exemplo melhor?

Se nada for feito, seremos chamados novamente às urnas sob as mesmas regras eleitorais, ou sob um remendo delas; e isso, por certo, se revelará como um novo naufrágio de esperanças para a sociedade brasileira.

O pressuposto da proposta é que a reforma política é tão importante que não deve ser deixada exclusivamente nas mãos dos políticos-partidários.

Políticos somos todos nós, embora não exerçamos atividade partidária. O homem é um ser político, que precisa viver em sociedade para sobreviver. Isolados, morremos. Eis o motivo pelo qual precisamos de um governo para gerenciar os serviços e as políticas públicas a serem prestadas à população. A chave do cofre público está nas mãos dos políticos-partidários, eleitos periodicamente na forma de uma democracia representativa, e que usam o Direito Tributário para arrecadar dinheiro de todos nós e o Direito Financeiro para gastar o dinheiro arrecadado — e é patente que eles têm feito muito mau uso desses dois ramos do Direito.

As demais reformas, tributária, previdenciária, trabalhista e outras, podem ser encaminhadas ordinariamente pelo Legislativo, mas não a política, mãe de todas as reformas. Através dela é que poderemos reduzir o imenso vale que afasta cada indivíduo de seus representantes. Basta ver que a última vez que fomos às urnas para eleições gerais foi em outubro de 2014, e tanta água já rolou desde lá que se pode até dizer que o Brasil não é mais o mesmo desde então, tantas foram as mudanças ocorridas.

Deixar a reforma política exclusivamente nas mãos dos políticos-partidários se revela um erro, por uma questão de interesse. Eles têm interesse pessoal e direto na matéria, sendo seus principais beneficiários. Afinal, estão votando regras que regerão sua própria eleição e sobrevivência política, além de uma gama enorme de outros interesses envolvidos. Logo, quem tem interesse pessoal e direto não pode ser o juiz da causa. Está impedido e deve ser afastado da deliberação sobre o tema — pelo menos da deliberação exclusiva sobre o tema.

Como afastar o monopólio dos políticos sobre a reforma política? Como colocar o povo no centro do debate, a fim de que ele não seja apenas levado às urnas para referendar os candidatos escolhidos pelos partidos, do qual uns poucos serão eleitos de conformidade com as regras eleitorais que eles mesmos estão votando, seja para o Legislativo ou para o Executivo? Como resgatar a cidadania que foi sequestrada pelos políticos-partidários? Eis o ponto a ser enfrentado.

Não é preciso mudar a Constituição, que é avara nessa matéria. Basta alteração da legislação ordinária, o que facilita o procedimento. Com isso, afasto a hipótese de uma Constituinte.

No mesmo sentido, antecipar eleições gerais, sob as regras atuais, nos levará a cometer os mesmos erros — em especial no que tange ao financiamento eleitoral, que é a matriz de todos os problemas que avultam na imprensa e vêm sendo caçados pela operação "lava jato".

Existem poucos pontos centrais a serem delimitados. Sem a pretensão de esgotá-los, menciono: 1) financiamento eleitoral, tema atinente ao Direito Financeiro Eleitoral; 2) cláusula de barreira para os partidos; 3) duração do mandato, com ou sem reeleição; 4) voto distrital ou misto, com ou sem lista fechada; 5) coligação partidária nas eleições proporcionais. Outros temas centrais podem ser listados — ou mesmo esses que apontei serem alterados.

A proposta passa por afastar os políticos-profissionais dessas escolhas centrais, atribuindo-as ao povo. A fórmula nos é dada pela Constituição, em seu artigo 14, incisos I e II, que trata de dois mecanismos de democracia participativa, quais sejam, o plebiscito e o referendo.

Os pontos acima indicados, ou outros, devem ser submetidos ao plebiscito da população brasileira, que escolherá previamente qual o modelo mais adequado para reger as eleições — o modelo para a escolha de seus representantes. Com a tecnologia atualmente disponível, que é de total domínio da Justiça Eleitoral, isso poderia ser feito com relativa facilidade.

Estabelecidos esses pontos prévios através de escolha plebiscitária, os políticos-partidários seriam chamados para fazer a lei, obedecendo rigorosamente ao que foi decidido pelo povo no plebiscito.

Tal lei, para ser válida, deverá ser novamente submetida à apreciação popular, através de referendo. Caso rechaçada, outra deveria ser formulada, até que se chegasse a uma solução adequada para a maioria da população. Pode-se pensar também em estabelecer um quórum qualificado para tal referendo: só será aprovada a lei se conseguir 60% dos votos válidos, ou outro percentual que se julgue adequado, para evitar decisão por pequenas maiorias — erro do Brexit.

É possível pensar em algumas variáveis a esse modelo, tal como criar uma comissão (sem políticos-partidários) para preparar um anteprojeto de lei, com base nos pontos aprovados pelo plebiscito, o qual seria encaminhado ao Congresso para deliberar. Ou mesmo estabelecer que essa comissão viesse a ser responsável por identificar os pontos que deverão ser submetidos ao plebiscito.

Os pontos inafastáveis da proposta são: plebiscito prévio para estabelecer os pontos centrais do modelo; referendo posterior para confirmar o texto final da lei elaborada pelos políticos-partidários.

É necessário colocar o povo no centro do debate político, permitindo que a população decida a melhor forma de escolher seus representantes. A fórmula atual é insuficiente, pois a população só é chamada para votar em candidatos previamente escolhidos, como um cardápio de restaurante — só que não existe a possibilidade de mudar de restaurante… Hoje é feita uma escolha prévia, realizada pelos partidos, e, mesmo que mudem os nomes na cédula eleitoral, o sistema atual não tem mais legitimidade para atender aos anseios da população, tantos são os desvios éticos e financeiros que gerou. O academicamente denominado presidencialismo de coalizão fracassou.

Devem ser afastados os ajustes de cúpula, hoje composta apenas dos representantes e seus financiadores, e trazer para o debate os representados, o povo, a fim de tornar nossa democracia mais legítima. Não basta a legalidade, é preciso ter mais legitimidade no processo eleitoral.

As eleições se caracterizam por ser um jogo, com derrotados e eleitos, os quais, estejam ou não no governo, devem agir em prol do país — na maior medida do possível. O papel da oposição parlamentar também é muito importante — no Brasil atual existe quem esteja sempre na situação governista. Basta recordar os políticos-partidários que permaneceram ministros até o último minuto apoiando a presidente Dilma e seguiram ministros com a posse do presidente Temer — sequer esvaziaram as gavetas. E o povo assistindo a tudo isso bestificado, para usar uma expressão consagrada na época da proclamação da República.

As principais regras do jogo político devem ser estabelecidas pelo povo, e não pelos jogadores. Hoje são os jogadores que criam as regras para sua própria eleição — não pode ser assim, pois eles têm interesse pessoal e direto na disputa. Aos vencedores caberá o direito de gerenciar o Orçamento, composto de receitas havidas de todos e gastas de acordo com as regras que vierem a ser determinadas (http://www.conjur.com.br/2016-mar-22/contas-vista-democracia-incompleta-vencedor-orcamento). As regras eleitorais não podem ser um jogo de cartas marcadas, que afasta muitas pessoas de sequer querer disputar as eleições.

Exatamente por isso é que a proposta de plebiscito e referendo para a reforma política é a forma de oxigenar as estruturas carcomidas que se apresentam aos olhos de todos e afastar os políticos-partidários do monopólio do processo eleitoral. Tendo eles interesse direto na matéria, não podem legislar amplamente a respeito, sem uma tutela direta e imediata dos representados, que compõem a população em geral.

Penso que, se houver vontade política, ainda dá tempo para se preparar tudo isso para 2018. Pode-se criar desde logo uma comissão para estabelecer os pontos centrais a serem submetidos ao plebiscito. Pode ser uma comissão oficial, criada, por exemplo, pela presidente do STF, Cármen Lúcia; ou ser uma comissão não oficial, criada no âmbito das universidades ou de uma das diversas organizações que despontam em nosso país, como a OAB ou ABI.

A proposta permanece válida mesmo que não seja para as eleições de 2018, que devem se realizar conforme o calendário estabelecido, sendo necessário que se caminhe desde já para sua concretização, pois o modelo atual se esgotou, a despeito dos vários experimentalismos aos quais vêm sendo submetido. Um exemplo: nas eleições locais de 2016, foi permitido o autofinanciamento, que comprovadamente privilegiou os candidatos ricos — nada contra os ricos, como já afirmei em outra coluna (http://www.conjur.com.br/2016-set-06/contas-vista-financiamento-campanhas-eleitorais-risco-cafe-society), mas não será justa e equânime a disputa eleitoral a partir desse modelo — o jogo fica desequilibrado desde o início. O debate atual visa reservar R$ 6 bilhões para o Fundo Partidário, visando financiar os candidatos, porém, é isso que queremos?

É preciso pensar o país para os próximos anos, muito além de 2018.

Essa proposta será atacada, por certo. Muitos dirão que não há tempo, que será muito custosa, que o Brasil não está preparado para isso, e outras expressões semelhantes. Mas, quem sabe, possa ser uma alternativa para sairmos do impasse existente e pensarmos o país que queremos para as próximas décadas.

Como visto, trata-se de um singelo esboço de proposta, embora suspeite que venha a ser desqualificado no debate, pois não atende aos interesses do andar de cima de nossa sociedade democrática, o qual, algumas vezes, apenas quer saber do povo no dia das eleições.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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