Opinião

Análise Econômica do Direito é instrumento de Justiça social

Autor

  • José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins

    é advogado professor dos cursos de graduação e pós graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e pós-doutorando pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra.

10 de julho de 2017, 11h58

A interdisciplinaridade entre Direito e Economia, embora conhecida e de inegável importância, historicamente parece não ter recebido a devida e completa atenção dos juristas brasileiros. Sem ignorar a influência da ciência econômica nos campos do Direito Financeiro e Econômico, uma das poucas áreas que essa intersecção é patente, aos poucos começa a ganhar espaço no Brasil a chamada Análise Econômica do Direito, também conhecida como Law & Economics.

Trata-se do uso das ferramentas próprias da economia às normas jurídicas, reinterpretando o ordenamento jurídico em conformidade com as escolhas racionais para que se efetivamente compreenda os efeitos daquelas, assinalando também as consequências indesejáveis ou involuntárias que possam ocorrer. Assim, tenta-se “explicar e prever o comportamento dos grupos que participam do sistema jurídico, além de explicar a estrutura doutrinal, procedimental e institucional do sistema[1]”.

Posto que com fundamentos que remetem a Thomas Hobbes, David Hume, Adam Smith e Jeremy Bentham[2], sem falar da influência do próprio movimento do realismo jurídico estadunidense[3], a Análise Econômica do Direito é inaugurada como disciplina própria a partir do seu desenvolvimento na década de 60, com os estudos de Guido Calabresi[4], Ronald Coase[5], Gary Becker[6]. Recentemente, com o desenvolvimento por Robert Cooter com Thomas Ulen[7], Richard Posner[8], Ejan Mackaay com Stéphane Rousseau[9], entre outros.

A disciplina ainda engatinha no Brasil por nove fatores apontados por Pargendler e Salama[10] a partir de uma profunda revisão bibliográfica sobre o tema: a alegada singularidade da ideologia americana, atitudes divergentes em relação a ciência e prática jurídicas no mundo civil, a falta de habilidades em matemática e economia dos estudantes dos países de civil law, as barreiras linguísticas e a inércia, o poder comparativamente maior dos tribunais estadunidenses, os diferentes incentivos dados aos professores de Direito, o grau de protecionismo dos profissionais do Direito, a má interpretação sobre o método comparativo, diferenças culturais e até mesmo a dominação marxista das faculdades econômicas.

Essas barreiras se refletem na sua propagação na academia: só existem dois cursos de pós-graduação sobre o tema no Brasil, país que possui mais faculdades de Direito que o mundo inteiro somado. Ainda assim, é notável o aumento do número de decisões que aplicam a Análise Econômica do Direito para se chegar a um veredicto justo[11] e de estudiosos[12] sobre o tema.

As dificuldades apontadas, todavia, não são de todo descartáveis por mera discriminação ou desinteresse na evolução do pensamento jurídico pátrio. Deve-se levar em consideração que a Law & Economics, no modo como nos é apresentado, reflete as condições e institutos jurídicos do sistema da common law, berço de seu desenvolvimento. Nesse sentido, algumas das conclusões podem ser aproveitadas parcialmente, haja vista haver incompatibilidade com o sistema jurídico de civil law adotado pelo Brasil.

Um exemplo interessante que pode ser apontado é o Recurso Especial 962.934/MS, de relatoria do ministro Herman Benjamin. O caso trata da responsabilidade civil do Estado pelas más condições dos presídios, em que um presidiário pleiteou indenização moral individual em razão da superlotação e a falta de condições mínimas nas celas. Apesar de o entendimento ter sido superado em fevereiro deste ano pelo Supremo Tribunal Federal, ao aprovar a tese para fim de repercussão geral[13] de ser cabível indenizar o presidiário pelas más condições do sistema carcerário, é interessante para este estudo a argumentação trazida pelo ministro relator para dar provimento ao recurso do Estado e não conceder a indenização.

Diante do problema das más condições carcerárias, havia três possibilidades de tomada de decisão: (a) não dar provimento ao recurso, reconhecendo as violações aos direitos fundamentais do presidiário e, por conseguinte, concedendo a indenização por danos morais; (b) dar provimento ao recurso, reconhecendo as violações aos direitos fundamentais do presidiário, mas não concedendo a indenização por danos morais por não ser (b.1) suficientemente grave a ensejar reparação ou (b.2) suficiente para reparar e desestimular a produção do dano; ou (c) dar provimento ao recurso, não reconhecendo qualquer violação a direitos fundamentais do presidiário e, consequentemente, sem condenação a indenização por danos morais.

O voto considerou que a condenação do Estado instituiria uma espécie de “pedágio-masmorra”, em que o Poder Público, ao invés de melhorar as condições dos presos, pagará somente um valor indenizatório, uma “bolsa-dignidade” pela ofensa diária e continuada aos direitos fundamentais. Além disso, a medida serviria para somente drenar os recursos públicos escassos para alguns, não resolvendo o problema.

Ainda que não o faça de maneira explícita, a fundamentação do seu voto possui uma alta carga de Análise Econômica do Direito, pois se encaixa dentro da hipótese (b.2). Dentro de um escopo de eficiência, de análise de custo e benefício, o ministro relator entendeu não compensar a reparação por dano moral, pois o custo econômico não traria um benefício social. Ao contrário: aumentaria o custo social, pois seria mais benéfico economicamente ao Estado pagar a indenização ao invés de melhorar as condições do presídio.

Sob o ponto de vista econômico, a decisão não merece reparos: ao lado da hipótese (c), que seria uma total alienação acerca da realidade carcerária brasileira, é realmente mais barato não pagar qualquer indenização. Ocorre que isso nem ao menos desestimula as reiteradas violações a direitos fundamentais, da Lei de Execução Penal e de inúmeros tratados internacionais sobre o tema, tendo em vista que mantém a inércia do Poder Público, nada fazendo sobre tal situação degradante[14]. Ou seja, a decisão economicamente eficiente mantém direitos fundamentais desprotegidos.

Saindo da seara estritamente judicial, pode-se trabalhar com a Lei 13.455/17, a qual dispõe sobre a diferenciação de preços de bens e serviços oferecidos ao público em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado. A medida pode ser interessante pela via econômica: o fornecedor de produtos e serviços pode oferecer melhores condições de pagamento para aquele que paga à vista ou em dinheiro, por exemplo, aquecendo a concorrência e a busca de melhores ofertas. Ademais, teve por justificativa a legalização de uma prática comercial irregular costumeira.

Por outro lado, trata-se de medida que vai de encontro ao que sempre se entendeu acerca do tema. A diferenciação de preços sempre foi entendida como uma nítida violação ao Código de Defesa do Consumidor, em particular aos incisos V e X do artigo 39 por exigir do consumidor uma vantagem manifestamente excessiva e causar elevação sem justa causa do preço. Haveria violação à chamada Lei da Concorrência (Lei 12.529/11), a qual considera infração da ordem econômica e, por conseguinte, violação à boa-fé objetiva, a discriminação por meio de fixação diferenciada de preços e a recusa de venda de bens ou prestação de serviços dentro das condições normais aos usos e costumes comerciais (artigo 36, §3º, incisos X e XI).

Em nível constitucional, haveria violação ao princípio da isonomia, por tratar desigualmente os consumidores e violar o espírito constitucional protecionista da relação de consumo pelo mandamento do artigo 5º, inciso XXXII e do artigo 170, inciso V. Com isso, a medida que se mostra economicamente mais eficiente não pode ser encarada como a ideal, por desconsiderar outros interesses juridicamente protegidos.

Num último exemplo, temos as colaborações premiadas e os acordos de leniência. Em exemplo nacional recente, foi realizada colaboração premiada por Joesley Batista que, em troca de informações sobre atos de corrupção de diversos políticos, assumiu cumprir penas que se mostraram excessivamente brandas, com multas de valores ínfimos perto do seu patrimônio pessoal e de sua empresa.

São termos que, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da Questão de Ordem e do Agravo Regimental na Petição 7.074, não podem ser alterados caso tenha sido homologado e providos de regularidade, voluntariedade e legalidade, salvo se ausente este último elemento, nos termos do parágrafo quarto do artigo 966 do Código de Processo Civil.

Em uma perspectiva meramente econômica, de verificação de custo social, é desejável que sejam concedidas as maiores benesses possíveis ao colaborador para a revelação do esquema criminoso. No entanto, essa lógica traz uma perversidade implícita: compensa delinquir em conjunto para negociar, futuramente, uma colaboração premiada. Restaria para os agentes Estatais uma verificação utilitarista: sacrifica-se a punição de um, por pior que seja seus crimes, em favor da punição de vários.

Pela proteção de bens juridicamente protegidos pelo Estado, considerando que o Direito Penal atua em última ratio e é regido pelo princípio da fragmentariedade, é inadmissível considerar essa lógica mercantil na solução de delitos pelo uso dos institutos da colaboração premiada e do acordo de leniência. Afinal, não está em jogo pura e simplesmente a revelação da verdade pela investigação, mas a defesa daquilo que é considerado de máxima importância para a sociedade.

Através dos exemplos tratados acima é que se percebe a obrigatoriedade de se realizar uma análise econômica do Direito vinculada a comportamentos éticos, incorporados pelo sistema jurídico. Em outras palavras, princípios como a boa-fé (objetiva) e dignidade da pessoa humana, em ambos os casos em todos os seus desdobramentos, por exemplo, precisam ser levados em consideração antes de se aplicar os instrumentos à disposição da Law & Economics.

Sendo assim, no primeiro exemplo, antes de analisar a eficiência econômica da indenização para o preso, deve ser verificada a existência de violação aos seus direitos fundamentais, o que norteará como ele invariavelmente deverá ser indenizado, e nesse ponto sim qual medida trará maiores benefícios. No segundo exemplo, antes de fomentar a concorrência comercial e aquecer a economia, deveria ter sido levado em consideração a proteção do consumidor, hipossuficiente diante dos fornecedores. No terceiro exemplo, antes de considerar a progressão das investigações, devem ser levados em conta os bens jurídicos tutelados em jogo.

Portanto, é importante e desejável que a Análise Econômica do Direito avance no Brasil. Todavia, não se pode delegar a ela a determinação dos objetivos perseguidos pelo Direito para a realização de justiça (social), uma vez que em seu conteúdo está, naturalmente, a promoção mais eficaz e efetiva de um objetivo já pré-determinado.

Por isso, é imprescindível que previamente estejam bem posicionadas as peculiaridades que devem ser considerados, quais sejam, direitos e especificidades do caso, para que a Law & Economics auxilie posteriormente com a medida que concretize a justiça diante do caso concreto consoante esperado pela sociedade.


[1] POSNER, Richard. Fronteiras da Teoria do Direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva, Jefferson Luiz Camargo, Paulo Salles e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 8.
[2] Idem, p. 6-7.
[3] Em apertada síntese, o realismo jurídico estadunidense, das décadas de 20 e 30, defende a reformulação do direito a partir da pesquisa empírica em grande escala. Direito é aquilo que é aplicado concretamente pelo juiz. A atividade judiciária, portanto, é o objeto de estudo do Direito e não o chamado dogma do idealismo normativista.
[4] CALABRESI, Guido. Some thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts. The Yale Law Journal, vol. 70, n. 4, p. 499-553, 1961.
[5] COASE, Ronald. The problem of social cost. The Journal of Law and Economics 3, p. 1-44, outubro de 1960.
[6] BECKER, Gary. Crime and Punishment: an Economic Approach. Journal of Political Economy, vol. 76, p. 169-217, mar.-abr. 1968.
[7] COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. 5ª ed. Boston: Pearson Addison Wesley, 2008.
[8] POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9ª ed. Nova Iorque: Wolters Kluwer Law & Business, 2014.
[9] MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise Econômica do Direito. Tradução de Rachel Sztajn. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.
[10] PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno. Law and Economics in the Civil Law World: The Case of Brazilian Courts. Disponível em: http://direitogv.fgv.br/publicacoes/working-papers. Acesso em 05/07/2017.
[11] Vide, a título exemplificativo, magistrado que aplicou a Teoria dos Jogos para a solução de uma reclamação trabalhista, conforme noticiado pelo ConJur: http://www.conjur.com.br/2017-jun-16/juiz-usa-teoria-jogos-restabelecer-vinculo-servidor
[12] Como, por exemplo, o colunista do ConJur Alexandre Morais da Rosa em sua obra “Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos”.
[13] Tese definida no Recurso Extraordinário 580.252/MS: “Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento”.
[14] Importante mencionar que, em consonância do que fora decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 592.581/RS, a intervenção judicial neste caso não se reveste de ativismo, pois nada mais são que mandamentos, inclusive específicos no caso da Lei de Execução Penal, de dever do Estado para com os presidiários.
As condições básicas previstas nos artigos 88 e 89, por exemplo, ainda que possuam certos conceitos jurídicos indeterminados, não permitem sérias dúvidas sobre o preenchimento de seu conteúdo a ponto de dificultar sua aplicação pelo Poder Público.

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