Diário de Classe

O caráter ficcional do Direito brasileiro
e os limites de sua fantasia

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8 de julho de 2017, 8h05

Spacca
O Direito está permeado por ficções, apesar da insistência dos juristas em associá-lo exclusivamente ao plano da realidade. Para ilustrar minha premissa, faço um pequeno decálogo de conceitos e proposições que se consolidaram no imaginário jurídico: (1) a busca da verdade real; (2) a vontade do legislador; (3) o livre convencimento do juiz; (4) os fatos não contestados são confessados; (5) in dubio pro societate; (6) quem não assopra o bafômetro é considerado bêbado; (7) aquele que não faz exame de DNA é tido como pai; (8) álibi não provado, réu culpado; (9) o tribunal do júri é onde se faz justiça; (10) os tribunais são capazes de julgar milhares de processos num intervalo de poucos minutos.

Isso para não falar da famosa Republica de Curitiba, com seu código de processo penal próprio e todos os super-heróis nacionais que a habitam, com poderes especiais e imunidades. Tudo ficção produzida no e pelo Direito.

Sob outro ângulo, haveria um vasto campo — esse mais polêmico — para o estudo das ficções jurídicas na esfera normativa. “Todos são iguais perante a lei”, talvez seja o maior exemplo. No campo da teoria narrativista do Direito, Calvo González afirma que nossos sistemas jurídicos são instalações ficcionais e, por vezes, hiperficcionais: “o direito é uma forma linguística ficcional de um mundo puramente textual. Ele habita nos discursos narrativos e, portanto, não está imune aos efeitos da ficcionalidade”.

Todavia, o caráter ficcional do Direito não o equipara, de maneira nenhuma, à Literatura. O Direito produz violência. E as personagens que sofrem tal violência são de carne-e-osso. Além disso, apesar da dimensão narrativa que estrutura todo discurso e prática jurídica, existe sempre uma referência ao mundo empírico. Essa é a razão pela qual a verossimilhança adquire especial relevância para a reconstrução dos fatos e a interpretação das normas.

François Ost, em recente entrevista, publicada no último número da Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura, falou um pouco sobre sua experiência como dramaturgo, atividade que termina por ser uma extensão natural de suas atividades acadêmicas: “com esse tipo de escrita em primeira pessoa, passo para o outro lado do espelho”. Da ciência para a ficção, literalmente falando.

O renomado jurista chama atenção para a liberdade que a dramaturgia lhe oferece em relação à prática jurídica propriamente. Essa liberdade se manifesta tanto no plano da expressão quanto do conteúdo, pois, de um lado, tem-se a potencialidade da linguagem literária, “carregada de verdadeira humanidade”, que contrasta com a linguagem científica; de outro, a possibilidade de, através de situações imaginárias, explorar paixões reais, bem como de construir um discurso polifônico, que não encontra ancoragem nos textos acadêmicos.

A questão diz respeito ao locus da enunciação. Nas narrativas literárias construídas por Ost, as personagens podem expressar, livremente, as mais variadas opiniões — é aqui onde reside a potência do discurso literário —, ao contrário do que caracteriza a atuação dos juristas, sejam eles professores, advogados, promotores ou juízes, que é marcada por sua responsabilidade política.

Eis o ponto onde queria chegar. No Brasil, os “operadores do Direito”, na pior acepção da palavra, acreditaram que podem atuar livremente — o que, por óbvio, é bem diferente de independentemente —, tal qual as personagens literárias. Eles podem agir de qualquer modo, dizer qualquer coisa e decidir de qualquer forma. Não há mais limites. Se houver uma pitada de moral, melhor. O Direito sucumbiu diante da Política, como sempre adverte Lenio Streck.

No reino da fantasia que reflete o mundo jurídico tupiniquim, muitos passaram a sustentar a tese de que o tribunal está legitimado a “lavar provas ilícitas”, por exemplo. E, assim, seguimos, enquanto o cacique do MPF atira suas flechas de bambu, o governo se defende com seu escudo invisível.

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