Interesse Público

Proposta aprovada no Congresso afeta credores de precatórios e RPVs

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

6 de julho de 2017, 10h20

Spacca
Palavra quase amaldiçoada por refletir o diferimento do pagamento das condenações judiciais definitivas que recaem sobre os entes federados, suas autarquias e fundações, o precatório, e em especial, as dificuldades dos credores em recebê-los e dos devedores em pagá-los, é assunto que costumeiramente assume posição de destaque na agenda nacional.

Em tempos de crise econômica o sempre tormentoso tema dos precatórios ganha combustível novo, em especial quando os devedores vislumbram estratégia capaz de evitar o desembolso efetivo do valor devido.

Nesta quarta-feira (5/7), noticiou-se que o Senado, em regime de urgência, aprovou projeto de lei (PLC 57/2017), com 44 votos favoráveis e 23 desfavoráveis, cujo intuito é a devolução aos cofres públicos de montantes depositados em instituição financeira, a título de precatórios e de requisições de pequeno valor, há mais de dois anos, e não sacados pelos seus destinatários.

A proposta já havia sido aprovada pela Câmara, onde alterações importantes foram introduzidas, entre as quais a necessidade de que 20% do total cancelado sejam aplicados pela União na manutenção e desenvolvimento do ensino. Obviamente que o carimbo social que a alteração impõe para parte dos recursos “recuperados” não reduz a polêmica da medida.

Isoladamente, a notícia poderia provocar em um algum incauto, de férias pelas belas paisagens brasileiras, a incorreta sensação de que os problemas relacionados aos precatórios estariam localizados no desinteresse dos seus beneficiários em receber aquilo que lhes é devido.

Antes fosse. É notória a via crucis que precisa ser trilhada pelos que, bem sucedidos judicialmente, precisam aguardar o efetivo pagamento da quantia que lhes é devida pela Fazenda Pública.

O tormento que caracteriza os precatórios está antes na espera a que se sujeitam os credores e não no seu eventual desinteresse ou letargia em resgatar valores depositados pela fazenda pública devedora.

Proposta legislativa deste jaez provocaria e de fato provocou dissenso.

Entre seus críticos, houve quem a rotulasse como confisco.

Nas palavras da senadora Vanessa Grazziotin (PC do B-AM), não poderia “o poder público chancelar um projeto de lei, à velocidade da luz, para confisco quase de imediato de precatórios e de RPVs, ainda pendentes de levantamento, quando é esse mesmo poder o vilão causador de longa e árdua espera, que agora pretende ver resolvida instantaneamente às custas do sacrifício de direitos de partes sabidamente inocentes”.

Seus apoiadores, com destaque para os senadores Romeró Jucá (PMDB-RR) e Fernando Bezerra (PSB-PE), que se posicionaram formalmente pela sua constitucionalidade, a aplaudiram entendendo que a medida contribui para a acerto das contas públicas, adicionando o argumento de que os valores constantes de contas bancárias, se não resgatados, propiciam ganhos apenas às instituições financeiras.

Até o momento em que este artigo era preparado, os veículos de notícias não repercutiam com a intensidade que a matéria exige a questão. Afinal, está a se desconstituir, na prática, a obrigação de efetuar pagamento imposta por decisão judicial por decurso de tempo.

Some-se a isso a constatação de que se pretende aplicar de forma retroativa a regra. Vale dizer, valores já depositados há mais de dois anos quando da entrada em vigor da norma serão revertidos aos cofres públicos.

Devo confessar que, atordoada pela avassaladora notícia, duvidei que estivesse a ler corretamente. Mas, considerando não apenas a redação do PLC 57/17, como os argumentos dos defensores da medida que aludem à crise atual e à escassez de recursos que hoje atormenta o poder público, conclui-se que, de fato, a pretensão é de atacar os valores já disponibilizados.

Deve ser salientada a apresentação de emenda pela já mencionada senadora Vanessa Grazziotin, cujo propósito era ver notificados pessoal e inequivocamente os beneficiários diretos do crédito ou, na falta deles, seus sucessores legítimos. Assim, a senadora propôs que o prazo de dois anos somente começasse a fluir após o primeiro dia útil subsequente à juntada aos autos do comprovante da ciência inequívoca, emitida pelo Poder Judiciário, ao beneficiário ou, na sua falta, a seus sucessores legítimos. A emenda foi rechaçada. Uma vez mais, salvo um desacerto cognitivo que pode ter me vitimado, a vindoura regra produzirá efeitos imediatamente, produzindo o desabastecimento das contas em prol dos cofres públicos federais, se já decorridos os dois anos. Editada a lei, a solução estaria nas mãos do Poder Judiciário, que, acionado, poderia vir em socorro dos credores.

O maior argumento contrário à pretensão, para além da imoralidade, está na insegurança jurídica. Alterar bruscamente as regras do jogo, promovendo o cancelamento de precatórios e RPVs, sem prévia notificação ao credor ou a seus sucessores e sem lhes oportunizar a adoção de conduta que iniba a perda (ainda que temporária) dos valores é a antítese da essência do Estado de Direito.

É fato que a proposta prevê a expedição de novo oficio requisitório, a requerimento do credor, se cancelado o anterior pelo decurso do tempo. A nova RPV e o novo precatório conservarão a ordem cronológica do requisitório anterior e a remuneração correspondente ao período. Ainda preservando uma chance para se recuperar o crédito, é indiscutível que a percepção efetiva dos recursos não ocorrerá da noite para o dia. Logo, nova espera será imposta ao credor. Uma vez mais soa absurda a proposta.

Também interessante apontar, no cenário dos precatórios, embora sem o caráter novidadeiro da deliberação legislativa acima mencionada, as discussões sobre os comandos da Emenda Constitucional 94/2016.

O regramento constitucional dos precatórios já passou por importantes mutações.

A Emenda Constitucional 62/2009 admitiu o pagamento dos precatórios judiciais no curso de 15 anos. Ocorre que por meio das ADIs 4.425 e 4.357, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos decisões que, indiretamente, impulsionaram o advento de nova Emenda Constitucional, qual seja, a EC 94, de 16 de dezembro de 2016. O art. 101 do ADCT, após a redação atribuída pela EC 94/2016, está assim redigido:

“Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, em 25 de março de 2015, estiverem em mora com o pagamento de seus precatórios quitarão até 31 de dezembro de 2020 seus débitos vencidos e os que vencerão dentro desse período, depositando, mensalmente, em conta especial do Tribunal de Justiça local, sob única e exclusiva administração desse, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de pagamento, em percentual suficiente para a quitação de seus débitos e, ainda que variável, nunca inferior, em cada exercício, à média do comprometimento percentual da receita corrente líquida no período de 2012 a 2014, em conformidade com plano de pagamento a ser anualmente apresentado ao Tribunal de Justiça local.”

A Emenda 94/16 prevê, como pilar, o pagamento do estoque de precatórios até o ano de 2020 (ou seja, pagamento total em 48 meses).

Percebe-se que a ideia central é fixar limite temporal para quitação de todo o estoque da dívida, exigindo-se depósitos mensais, estabelecendo-se piso mínimo para as 48 parcelas mensais, a saber, a média do comprometimento percentual da receita corrente líquida no período de 2012 a 2014.

Ao indicar montante mínimo e ao utilizar a palavra “variável” quer nos parecer que a regra não determina que as prestações mensais espelhem valores idênticos. O intuito é estabelecer planejamento cujo foco final é o pagamento integral dos precatórios, permitindo-se certa liberdade para a pulverização do montante devido pelo lapso temporal, cumpridas as exigências quanto ao valor básico.

Todavia, alguns tribunais têm entendido que os devedores devem efetuar pagamentos mensais que espelhem a divisão do montante correspondente aos precatórios estocados pelos anos e meses, pelo que a prestação mensal haveria de ser una, repetida mês a mês.

Não nos parece possível concluir pela obrigatoriedade de parcelas rígidas. Há valor mínimo a ser respeitado, mas é possível que, para além desse valor, oscilem as parcelas, observando-se a necessidade de que tudo seja pago até dezembro de 2020.

Se de um lado deve-se atentar para que o resultado final seja alcançado, em especial diante da situação que aflige os que legitimamente querem receber o que lhes é devido, por outro lado não há como retirar da regra aquilo que ela não oferece.

Curiosamente, as duas questões que perpassam a questão dos precatórios abordam de forma oposta a difícil relação entre credores e devedores. Se por um lado a proposta legislativa abordada no início deste texto soa absurda por cancelar precatórios pelo decurso do tempo, por outro a pretensão dos tribunais de Justiça não pode asfixiar o planejamento que há de ser desenvolvido pela Fazenda Pública.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

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